Por algum motivo estranho, já que das decisões do Supremo Tribunal Federal não cabe recurso – nem, dentro do regime democrático, haja a quem recorrer – defensores de condenados no processo do mensalão lançaram-se ao estudo das obras de um jurista alemão, Claus Roxin, cuja teoria do “domínio do fato”, seja lá isso o que for (este colunista só entende de Direito que o advogado defende e o promotor acusa), teria sido amplamente utilizada no julgamento.
Um grande jornal publicou entrevista com o jurista alemão de 82 anos, na qual ele analisava o julgamento do mensalão e dizia que a decisão precisava ser provada, não bastando que houvesse indícios de que tivesse ocorrido. Na semana seguinte, o mesmo jornal informou que Roxin, ouvido pelo defensor de um dos réus, manifestara interesse em participar de sua defesa.
Estranho – até porque o julgamento se encerrou. Defesa diante de que tribunal? Enfim, a notícia saiu. Mas, segundo informou o próprio Roxin, era tudo falso: não tinha dado qualquer opinião sobre o mensalão, falando apenas a respeito da teoria do “domínio do fato”; não tinha dito a frase citada, “que é inclusive juridicamente duvidosa”: e, além de não ter tido contato com qualquer defensor de qualquer dos réus, não teria o menor interesse em participar da defesa de nenhum deles. Na carta enviada por três de seus alunos brasileiros, publicada no portal especializado Consultor Jurídico, consta a seguinte frase: “As palavras do professor, que se referiam apenas a aspectos gerais da teoria por ele formulada, foram, segundo ele, transformadas, por conta exclusiva do referido veículo, em uma manifestação concreta sobre a aplicação da teoria ao caso conhecido como ‘mensalão’”.
Complicado, não? De acordo com o professor entrevistado, ou houve má-fé ou absoluta incompetência da reportagem. Em ambos os casos, jornal e jornalistas ficam em situação difícil. Devem explicações. A íntegra da carta está aqui.
De barriga em barriga
A adaptação das informações à versão que se considera correta tem ocorrido com grande frequência nos meios de comunicação. A interpretação do repórter ganha peso tão grande quanto os fatos (e é apresentada como se também fato fosse). Não só a interpretação do repórter: também o que foi publicado em outros veículos de comunicação vira verdade imediata, pelo efeito manada. Se um touro sai correndo na frente, o resto da boiada vai pelo mesmo caminho.
Um caso interessantíssimo aconteceu há pouco tempo. Uma grande revista, citando documentos a que tivera acesso com exclusividade, informou que Marcos Valério, condenado no caso do mensalão, teria dito a terceiros que certa vez fora chamado por um ministro para acertar o pagamento a um empresário que o estaria chantageando a respeito do assassínio do prefeito de Santo André, Celso Daniel. OK, a revista acreditou em seus informantes, nos quais certamente deposita confiança.
Mas os demais meios de comunicação, que não tinham informação nenhuma, nem conseguiram acesso aos documentos que embasaram a reportagem da revista, nem chegaram perto de ninguém de confiança que comentasse o caso, aceitaram a história como verdadeira. Pode ser; e pode não ser. No entanto, foi engolida pelos demais veículos que se precipitaram para, no jargão profissional, “repercuti-la”, e empurrada aos consumidores de informação como verdade verificada, o que não era. Passou um boi, passou a boiada.
Vários jornalistas, comentando esse tipo de reportagem, alegam que os promotores disseram aquilo que foi publicado como fato indisputável. OK; e os advogados certamente disseram o contrário. Por que acreditar no acusador, sem provas, e não no defensor, também sem provas?
Verbas torradas
Uma mesma empresa, que finge editar jornais, tomou fartas verbas publicitárias dos governos federal e paulista. Os anúncios foram pagos mas os jornais não existem: não estão nas bancas, nenhum jornalista os conhece, ninguém jamais ouviu falar neles, a sede se localiza num imóvel abandonado. De verdade, só o dinheiro público, que nós pagamos em troca de rigorosamente nada.
Mas se, em vez de não publicar seus jornais, a empresa os publicasse? Não faria diferença: o dinheiro continuaria sendo desperdiçado. E se, em vez de anunciar numa empresa duvidosa, os anúncios tivessem sido colocados em grandes veículos de comunicação? Nada: o governo continuaria desperdiçando dinheiro.
Este colunista é inteiramente contrário à publicidade oficial. Qual a vantagem de saber que, em determinado governo, era “tudo pelo social”, ou “gente cuidando de gente”, ou que o objetivo é “fazer bem-feito”? Um banco, uma fábrica de automóveis, um cartão de crédito, tudo bem: ele precisa proclamar suas virtudes para que o público o prefira aos concorrentes. Mas qual é o concorrente do governo? Alguém tem o direito de escolher o policiamento que vai usar, o mais eficiente, o menos custoso, entre diversas ofertas concorrentes? Não temos sequer o direito de escolher se vamos votar ou não. Então, para que a publicidade?
É inútil, pois. E propicia todas essas irregularidades a que estamos assistindo. Tivesse o governo uma pequena verba publicitária, apenas com fins informativos – na semana que vem haverá vacinação contra tal doença, para pessoas de determinada faixa etária, nos seguintes locais – não haveria tanto campo para espertalhões enfiarem a mãos nos recursos públicos que fazem falta em outras áreas.
E, por favor, não venham com aquela bobajada de que o governo tem de ser transparente e mostrar o que está fazendo. Mostrar o que o governo está fazendo é tarefa dos meios de comunicação e tem de ser desempenhada gratuitamente, como parte integrante do jornalismo; e cada cidadão é perfeitamente capaz de perceber se há ou não ações oficiais que melhorem sua vida. Mas, se fosse apenas para mostrar o que é que os Governos fazem, por que a verba oficial de publicidade costuma multiplicar-se em anos eleitorais?
Este colunista não consegue imaginar um anúncio governamental americano da chegada do homem à Lua, tipo “NASA: Yes, we can”. Nos tempos de guerra, ainda houve propaganda pró-alistamento, o “Uncle Sam wants you”. Mas é só. Pense no presidente François Hollande anunciando que, graças ao esforço militar notável de seu país, a África ficou livre de mais um ditador. Ou um anúncio de indústrias de Defesa (que nome fantástico, não é?): “Nossas armas matam mais por um custo muito menor”.
Propaganda que enaltece um monopólio porque fornece aquilo que foi criado para fornecer é coisa de país pobre. País pobre, mas com dirigentes e amigos que conseguem ficar muito ricos á custa dessa pobreza.
Covardia anônima, não
A época dos anônimos valentes, que usam a internet para insultar e difamar, protegidos por pseudônimos, está começando a acabar: o juiz Thomaz de Souza e Mello, da 5ª Vara Cível do Rio de Janeiro, determinou ao jornal eletrônico Brasil 247 que identifique os leitores que ofenderam o autor da ação, o banqueiro Daniel Dantas. Diz o juiz, após elogiar o papel da internet na livre divulgação de informações: “Contudo, por vezes é a internet utilizada também como instrumento de disseminação de informações ofensivas e desabonadoras, extrapolando seu caráter social, informativo, cultural e democrático. Por ser um instrumento relativamente novo, os seus usuários ainda não se deram conta da repercussão que um simples comentário, mensagem ou notícia pode alcançar (…)”.
De acordo com a sentença, a liberdade de manifestar-se não é tocada; mas também ao atingido cabe o direito de saber quem o ofendeu.
O jornal foi condenado a pagar R$ 2 mil e a fornecer os dados de quem fez o comentários julgados ofensivos. Dantas poderá então processá-los e a Justiça determinará se houve ou não ofensa.
É uma boa notícia: que cada um diga o que quiser na internet, da maneira que quiser, e que se responsabilize por isso.
Livro precioso
Um dos grandes sociólogos brasileiros, Gilberto Freyre (Casa Grande & Senzala) escreveu um único livro de poemas, dedicado a um dos maiores poetas do país, Carlos Drummond de Andrade. O livro, Talvez Poesia, saiu há 50 anos. E porque se passaram 50 anos e porque este livro é essencial, muito bom, a Global Editora o relançou (a R$ 42,00 – é até barato pelo excelente conteúdo). O prefácio é de outro excelente poeta, Ledo Ivo. Mas dois comentários de poetas maiores da língua portuguesa definem melhor o livro de Gilberto Freyre:
>> “Dê um passo à frente, leia o livro Talvez Poesia e trave relações com o poeta. Ficará espantado ao saber que esse poeta é sociólogo” (Carlos Drummond de Andrade).
>> Comentando o poema Bahia de todos os santos e de quase todos os pecados: “Teu poema, Gilberto Freyre, será minha eterna dor de corno. Não posso me conformar com aquela galinhagem tão gozada, tão sem vergonhosamente lírica, trescalando a baunilha de mulata asseada. Sacana!” (Manuel Bandeira).
Quem toma conta?
Tudo bem, agências de turismo e empresas aéreas são parceiras preferenciais dos meios de comunicação. Além dos anúncios que põem, os cadernos de Turismo não se fazem sem elas: é tudo a convite (e, portanto, tudo oba-oba). Basta verificar: não há um hotel ruim, as viagens são sempre maravilhosas, os locais visitados apresentam belezas inenarráveis (tanto que frequentemente não são narradas).
Mas crime é outra coisa e, apesar das vantagens da, digamos, parceria, não podem ser ignorados. A filha da jornalista Rose Vitaly foi para os Estados Unidos, para trabalhar e estudar, e suas malas foram violadas; alguns objetos foram roubados. Tá bom, acontece. Mas a STB, a agência de turismo, diz que não tem qualquer representante nos Estados Unidos que possa acompanhar o caso. Em português claro como uma sentença do Supremo, não podem ajudar em nada (e provavelmente também querem incluir-se fora dessa). A American Airlines, transportadora, alguns dias depois do evento ainda não tinha se manifestado. Pode ser que, entre o dia em que esta coluna é escrita e aquele em que é publicada, aconteça alguma coisa.
Mas não é hábito: sempre que este problema ocorreu, no Brasil, houve uma tremenda má-vontade em resolvê-lo. No exterior sempre foi mais fácil.
Como…
Num grande jornal nacional, uma entrevista com o presidente do Comitê Turco para as Olimpíadas, na qual compara o Rio, sede dos próximos Jogos, e Istambul, que pleiteia realizá-los:
** “Istambul é a única porta entre a Europa e a Ásia. Uma Olimpíada, uma cidade, dois continentes”.
E o Rio, que é que tem com isso?
…é…
De um grande jornal nacional, relatando a chegada da presidente Dilma Rousseff ao Palácio de Congressos de Cadiz:
** “Minutos depois de saldar o rei Juan Carlos (…)”
Quanto será que custa saldar um rei? Cordiais saldações! E uma sauva de palmas!
Ou será “çauva”?
…mesmo?
De um grande jornal, que chegou a ser referência por sua precisão em assuntos econômicos:
** “A maior perda será da Chesf, de R$ 6,138 bi para R$ 3,936 bi – cerca de 60%”.
Jornalista continua odiando números. A perda citada é de 36%. Mas pode ser que o erro não seja da porcentagem: também pode estar na receita anterior, também pode estar na receita atual. Apostem, senhores: qual dos três números estará errado? Ou serão os três?
Um assíduo e culto leitor desta coluna cita o lorde John Maynard Keynes: melhor estar vagamente certo do que totalmente errado.
Mundo, mundo
Às vezes a notícia serve perfeitamente para deixar o consumidor de notícias totalmente confuso. Por exemplo,
** “Mulher admite ter esquartejado e congelado ex-marido e amante”
Analisemos: esquartejou e congelou duas pessoas, o ex-marido e o amante? Ou tratava-se de uma só pessoa, o ex-marido que virou amante e se tornou vítima de reincidência específica?
E eu com isso?
Está difícil acompanhar os meios de comunicação. No setor de política, trata-se de assuntos jurídicos e policiais; no setor econômico, de novas maneiras que foram encontradas para burlar as leis. O crime saiu há tempos da reportagem policial. Fiquemos naquilo que é certo e indisputável, que agrada a todos e não provoca tensões:
** “De meia-calça arrastão, Paula Fernandes mostra as pernas em show”
** “Christina Aguillera reaparece com quilinhos a mais em premiação”
** “Famosos curtem o domingo no teatro”
** “Após briga, Bieber e Selena saem de mãos dadas de premiação”
** “Famosos vão ao show do Kiss em São Paulo”
** “Rihanna exagera nos gastos de sua turnê”
** “Ildi Silva mostra novo visual loiro”
** “Britney Spears paparica os filhos durante o fim de semana”
** “Wanessa usa roupa bem colada em show”
** “David Beckham confere jogo de basquete e desmente ida para a Austrália”
** “Cássio Reis toma sorvete com o filho no Rio”
** “Filha de Bon Jovi não será processada”
** “Danielle Winits curte a praia com o filho e o namorado”
** “Irmão de Ariel Winter diz a verdade sobre briga familiar”
O grande título
E que títulos!
Comecemos com uma manchete de página e o texto que a acompanha:
** “Preço de alimentos puxa inflação nas lojas paulistanas em setembro”
Texto: Alimentos sobem menos, e IPS-S desacelera, diz FGV
Talvez puxem a inflação para baixo, pode ser. Pena que os preços não mostrem em nossos bolsos esse fenômeno tão interessante.
Há um título que deve exigir que o leitor conheça os meandros internos da redação, para saber o jargão que usam por lá:
** “Mais de 100 mortos em Gaza desde o início da operação israelense (médicos)
Uma manchete de portal da internet chama a atenção:
** “Mou matricula filha em escola de Londres e pode estar de mudança”
Expliquemos: Mou não é o apelido de José Mourinho, técnico do Real Madrid, mas é a parte do nome que coube no espaço. E a notícia é de que, tendo matriculado a filha em Londres, perto do estádio do Chelsea, talvez esteja pensando em voltar para o time que já dirigiu com sucesso.
São bons títulos. Mas nenhum se compara a este, de um grande portal noticioso da internet:
** “Inter diz Andra Gutierrez pode levar máquinas para o Beira Rio um dia contrato”
Alguém deve saber do que se trata.
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[Carlos Brickmann é jornalista, diretor da Brickmann&Associados]