No clássico final de um filme clássico, Casablanca, um oficial alemão é morto a tiros quando tentava impedir a decolagem do avião que levava a deslumbrante Ingrid Bergman e Paul Henreid (no papel de líder da resistência tcheca ao nazismo). O chefe de polícia, interpretado por Claude Reins, tinha visto o herói do filme, Humphrey Bogart, matar o oficial alemão. Mas poupou-lhe a vida: determinou aos policiais que prendessem os suspeitos de sempre.
O clássico final de um filme clássico se transformou num hábito: haja o que houver, os culpados são os suspeitos de sempre. Os meios de comunicação, simultaneamente, apoiaram o PT e seus aliados e ficaram ao lado dos inimigos do PT nas manifestações dos últimos dias; ambos os lados hostilizaram a Rede Globo e tentaram impedir o merecidamente respeitado Caco Barcellos de fazer a cobertura de um dos protestos, a polícia feriu 15 jornalistas (um está seriamente ameaçado de perder a visão de um dos olhos, outra levou um tiro de bala de borracha no rosto e, ao que tudo indica, só não ficou cega porque os óculos que usava lhe ofereceram alguma proteção). A repórter Giuliana Vallone, que levou o tiro no rosto, estava totalmente identificada, com crachá e tudo; outros fotógrafos usavam todo aquele equipamento que caracteriza os fotógrafos, o que inclui colete cheio de bolsos, com tiras refletivas, e imensas câmeras. A PM os atacou assim mesmo.
Um carro da Record e um do SBT foram incendiados, dois carros da Bandeirantes foram depredados. A Globo preferiu fazer a cobertura com base em imagens de seus helicópteros, com repórteres em lugares protegidos.
Vândalos, bandidos? Sim, havia esse tipo de gente misturado às manifestações (tanto que, quando tiveram oportunidade, invadiram e roubaram lojas), mas não eram os únicos inimigos da imprensa. A paranoia chegou a tal ponto que, no Facebook, houve quem acusasse a Globo de “ser petista”, de ser “notoriamente petista” e de estar “a serviço do PT”. Patrícia Poeta, que ancorou boa parte das reportagens, foi classificada de “petista radical”. E também havia quem atribuísse o viés antigovernista das manifestações ao “trabalho golpista da imprensa” e defendesse a censura – quer dizer, uma lei de controle social da mídia. Ou, em bom português, “Ley de Medios”, copiando servilmente até o nome do esquema argentino de censura adotado pela presidente Cristina Kirchner.
E daí? Daí que todos os lados deixaram de perceber que sua maior garantia de segurança, nos confrontos, era exatamente o trabalho dos meios de comunicação. Bloquear o trabalho da imprensa equivalia a bloquear seu próprio acesso aos meios para transmitir à população os pontos de vista de sua facção; pior, equivalia a entrar nos confrontos sem testemunhas, no escuro, sem a proteção da transparência e da publicidade dos fatos.
Enfim, isso é coisa antiga. O problema é que, em manifestações que pretendem mudar o Brasil, esse velho ranço mostra que o moderno ainda vai demorar a chegar.
O ridículo
E, veja só, a tônica da cobertura das manifestações, passada a perplexidade dos primeiros momentos, foi o entusiasmo, um entusiasmo daqueles de Galvão Bueno ao transmitir um jogo da Seleção brasileira. Frases como “veja que beleza”, “multidão pacífica”, “a avenida tomada por pessoas que só querem se manifestar em paz” foram mais repetidas do que o “nunca dantes nesse país” em discursos de Lula. Confrontos? Sempre, sem exceção, eram promovidos “por grupos minoritários”, “repudiados pela maioria dos manifestantes”, “indivíduos interessados apenas em baderna”.
Crime organizado nos saques? Imagine! Isso sequer foi citado.
Mostrava-se a cena do arrombamento de uma loja, mostrava-se a fuga dos bandidos com coisas roubadas, entrevistava-se o pequeno empresário que chorava ao narrar que todo o seu patrimônio tinha sido gatunado, mas ninguém sequer levantou a hipótese de que integrantes do crime organizado, que já confrontou mais de uma vez a Polícia paulista, tenham aproveitado a oportunidade para, infiltrados na massa de manifestantes, promover seus assaltos sem que os policiais os incomodassem. Naqueles momentos, afinal de contas, a Polícia tinha de concentrar-se em outros lugares e preocupar-se com outros problemas.
Ficou a impressão de que os meios de comunicação, preocupados com a hostilidade que encontraram nas mais diversas alas de manifestantes, procuraram demonstrar que são bonzinhos, que acham quase tudo bonito (exceto o vandalismo e os excessos), que mesmo que não concordem com todas as manifestações defendem a todo custo o direito de realizá-las.
Este colunista não conseguiu, claro, acompanhar toda a cobertura, por todo o tempo. Mas nas horas que passou diante da TV, ouvindo o rádio, buscando informações na Internet, conversando com integrantes do Facebook, não viu, não ouviu e não leu nenhuma informação sobre os prejuízos causados por uma série imensa de manifestações em dia de semana, tumultuando a vida normal das cidades. Horas de trabalho perdidas, combustível desperdiçado, negócios adiados, investimentos externos reestudados (isso quando não abandonados de vez), nada disso foi calculado. São coisas importantes, integram o custo da manifestação, concordemos ou não com ela.
E o pior é que não adianta. Os meios de comunicação só merecem crédito quando publicam informações a favor. Se publicarem uma análise segundo a qual o Bayern de Munique é melhor do que o Íbis, serão vassalos do imperialismo alemão e bem pagos para ter essa opinião (ou censurados, sabe-se lá por quem, para denegrir o futebol brasileiro). Basicamente, jornalista é o portador de más notícias, até porque boas notícias não são notícias.
E quem gosta de portadores de más notícias?
Essas vítimas não se emendam
Quem é o culpado pelo crime que cometeu? A vítima, claro: se é mulher e foi estuprada, estava com roupa inadequada, movia-se de maneira provocante, dava a entender que estava disponível. Se é homem, exibia objetos que poderiam despertar o interesse dos bandidos, ou reagiu ao assalto, ou não sabia o caminho e acabou entrando em área de risco. Se é criança, usou um celular caro num lugar em que podia ser vista, correu do bandido. Qualquer pessoa pode ser assaltada e morta ou por ter dinheiro ou por não ter dinheiro.
A polícia já distribuiu muitas instruções a respeito de como se comportar para não despertar a cobiça dos bandidos (e pouquíssimas a respeito de prender os bandidos para que cada um possa comportar-se como quiser, dentro dos limites da lei). Até aí, vá lá: estamos acostumados. O duro é ver que a imprensa também tende a culpar as vítimas, não os criminosos – sempre levados para o mau caminho pelo comportamento inadequado das vítimas.
Em São Paulo, à porta de um excelente bar, três homens foram mortos a bala, num crime com todas as características de ter sido encomendado: estavam na calçada quando três atiradores, armados com fuzis e pistolas, desceram de um carro preto, dispararam e fugiram. A notícia começa corretamente, com essa informação. Mas poucas linhas mais tarde informa-se que uma das vítimas já teve um imóvel lacrado por fiscais de uma subprefeitura paulistana. Que é que isso tem com o assassínio? Ao que se saiba, nada; e que há de tão terrível numa punição imposta pela Prefeitura, há uns dois anos, que possa explicar um crime encomendado? Outro usava um distintivo falso com a identificação de um policial civil exonerado. OK, talvez isso possa vir a ter algo com o crime – mas por que se divulga o fato, sem qualquer menção a ligações possíveis com o assassínio? Não se sabe: a matéria poderia dizer também que o local do assassínio fica razoavelmente próximo ao apartamento onde morou uma moça que matou o namorado. É verdade; mas também não tem nada a ver com o caso.
Para a família dos mortos, tem: perdem o parente, vítima de homicídio, e ainda têm fatos que talvez preferissem não divulgar publicados pela imprensa.
Como já se disse nesta coluna, muita gente não gosta de jornalistas. E, por mais que isso nos doa, às vezes temos de entender o motivo.
A verdade bem dita
Atenção:
1. – Não existe “preço da tarifa”. Tarifa é o preço cobrado por um serviço. Preço da tarifa seria algo “preço do preço cobrado por um serviço”.
2. – Milhão é milhão, bilhão é bilhão. Imaginar que se construa um porto com R$ 2,4 milhões, como publicou um grande jornal na semana passada, é bobagem. Já R$ 2,4 bilhões é bem mais provável. E, no caso, é a informação correta.
Leitura essencial
1. – Elias Knobel, médico conceituado, diretor da Terapia Intensiva do Hospital Israelita Albert Einstein, SP, lança na quinta-feira (27/6) Vivências e Confidências, com histórias de sua carreira. Na Livraria da Vila, Shopping JK, em São Paulo, a partir das 18h30.
2. – O grande Maurício de Souza acaba de lançar, com a Turma da Mônica, Uma viagem a Portugal. O livro é uma bela mistura de turismo, com lugares típicos nem sempre conhecidos por quem só segue o conselho de agentes de viagem, com as peculiaridades da língua falada em Portugal. Peúgas, por exemplo, quantos brasileiros conhecem? E retrete? Ou, talvez, telemóvel?
3. – Ruth Salles, premiada poeta, dramaturga e tradutora, lança no dia 27/6 O telefone está só regando as plantas, livro de crônicas, com histórias de sua vida, de sua família, paródias musicais. Na Livraria da Vila, Rua Fradique Coutinho, 915, em São Paulo, a partir das 18h30.
Como…
De um grande jornal impresso, conceituadíssimo (mas que agora, depois de tantas demissões, já está cometendo seus erros):
** “(…) PT esboça aprovar 20% sobre o faturamento da empresa (…)”
Trata-se de uma alíquota. E se fosse mesmo de 20%, não sobraria empresa aberta no país. Ainda bem que é de 2% – altíssima, mas dá para sobreviver.
…é…
De um grande jornal impresso, de circulação nacional, comentando o jogo entre as seleções da Nigéria e do Taiti:
** “A torcida, que apoiou a seleção da Oceania desde o início do jogo, foi graça na goleada sofrida para a Nigéria”
Deve querer dizer alguma coisa.
…mesmo?
De um grande jornal impresso, especulando sobre maneiras de cobrir a alta dos subsídios à tarifa de ônibus:
** “(…) o chamado 'subsídio cruzado', onde seriam deslocados recursos financeiros da CIDE incidente sobre a gasolina para investimento no transporte público”.
Seria ótimo, se:
a) fosse mesmo investimento – na verdade, o subsídio, cruzado ou não, é despesa;
b) a Cide, Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico, já foi reduzida a zero pelo governo, para manter estável o preço da gasolina e estimular o transporte individual.
Frases
Do jornalista Cláudio Tognolli:
** “Tudo ao contrario: Dilma quis comprar a Fifa e levou Afif.”
Do professor Renato Janine Ribeiro:
** “O apagão de lideranças no Brasil é mais contundente do que os cassetetes da PM paulista.”
Do jornalista José Eduardo Mendonça:
** “Eu não tinha a mínima ideia que se jogava futebol no Taiti. E não se joga mesmo.”
De Itiberê Muarrek, especialista em informática e redes sociais:
** “Cheio de gente dizendo que a Direita está se apropriando do MPL. Perdi alguma coisa? Quem se apropriou de Collor, Maluf, Renan, Feliciano não foi a Esquerda?”
De Adriana Vandoni, jornalista:
** “ “Tem gente que estava doidinha pra participar da manifestação, pensou em ir, deve ter bolado até uns cartazes, mas teve que desistir quando soube que um dos temas era o combate à corrupção.”
E eu com isso?
O país fervendo, mas aqui a ferveção é outra: será que Barbara Berlusconi, a namorada de Alexandre Pato (e filha do magnata e político italiano Silvio Berlusconi), está grávida? Pode ser. Acontece. Barbara e Pato tinham terminado o namoro, voltaram, e veja só:
** “Grávidos? Pato beija barriga de Barbara”
E há muito mais notícias nos mesmos lugares em que saiu esta:
** “Gisele Bündchen pratica ioga com a filha”
** “Filhos de Kate Winslet também farão viagem ao espaço”
** “Famosos se divertem cantando e dançando em churrascaria do Rio”
** “Robert Pattinson se encontra com Mindy Kaling em hotel de Los Angeles”
** “Bruna Marquezine vai à clínica de depilação no Rio”
** “Candice Swanepoel platina os fios”
** “Zeca Pagodinho toma cerveja em quiosque da Barra da Tijuca”
** “Brad Pitt contou que daria uma festa no fim do mundo”
** “Isabeli Fontana usa decote profundo em evento de cabelos”
** “De smoking e pulseira luxuosa, Madonna vai à première”
** “Lutador Vitor Belfort e Joana Prado se exercitam na praia”
O grande título
A disputa é acirrada: na luta para dar a notícia antes dos outros, e com tanta coisa acontecendo uma em cima da outra, os títulos é que apanham. Às vezes, um simples erro de digitação deixa uma matéria bem atraente:
** “Tesão no protesto em São Gonçalo, RJ”
Era para ser “tensão”.
Há um press-release muito bem feito, com um título melhor ainda:
** “Vai Dar Redondo”
Não, não pergunte. A resposta pode ser pior do que a pergunta.
E um título imbatível ocupa o portal noticioso de uma grande emissora de TV:
** “Polícia fecha a avenida Paulista nos dois sentidos para evitar que manifestantes fechem a avenida Paulista”
Desse jeito, quem precisa de manifestantes?
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Carlos Brickmann é jornalista, diretor da Brickmann&Associados Comunicação