Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Nada mais que a verdade

Um dos chavões da cobertura policial, “a confissão é a rainha das provas”, é posto em dúvida por qualquer investigador razoavelmente treinado: mesmo admitindo-se que a confissão tenha sido obtida limpamente, sem o tradicional hábil interrogatório que muitas vezes a antecede, nem sempre retrata o que aconteceu de verdade. Na melhor das hipóteses, revela aquilo que o depoente acredita ter acontecido. Na memória, misturam-se fatos, crenças, emoções fortes a ponto de encobrir a realidade (e é por isso que a prova testemunhal também falha: uma testemunha de boa fé e excelentes intenções continua sendo alguém depondo sobre um fato que lhe provocou forte emoção).

Este problema se transfere para o universo das pesquisas. O entrevistado nem sempre responde aquilo que acha, mas aquilo que, imagina, se espera dele. Foi assim que o lançamento do Ford Edsel, nos Estados Unidos, se transformou num monumental fracasso, embora tenha sido construído rigorosamente de acordo com as pesquisas de mercado: um carro sóbrio, silencioso, bom para a família, confortável, tendendo mais para a economia do que para o desempenho. O que o entrevistado queria, na realidade, era um muscle car, possantíssimo, com cromados e muito barulho, para que todos o vissem e invejassem. Como isso não se diz em pesquisa, os especialistas montaram uma série de cruzamentos de informações, exatamente para filtrar aquilo que se diz mas que não é o que se quer.

E temos aí as pesquisas que os governos espalham como publicidade por todos os meios de comunicação. Já é desperdício de dinheiro público gastar com propaganda; se as informações forem boas, os meios de comunicação brigarão para divulgá-las antes dos concorrentes. Slogans como “São Paulo trabalhando”, comerciais com passageiros felizes do metrô explicando como viajam confortavelmente (há sempre homens e mulheres, brancos, mulatos e negros, um ou outro oriental, criancinhas simpáticas e animadinhas, para simular o mix da população), ou “gente cuidando de gente”, tudo isso é propaganda eleitoral fingindo-se de interesse público. E tem o mesmo valor informativo de um anúncio mostrando como se ganha dinheiro com pirâmides.

A história do programa Mais Médicos é mais ou menos assim. O governo a defende por motivos errados (imagina que a presença de médicos em lugares onde não há sequer água não contaminada para beber vá fazer algum efeito na saúde pública), boa parte dos médicos a condena por motivos errados, corporativistas, a opinião pública se divide por motivos errados: quem é contra o governo é contra o programa, quem é a favor do governo é a favor do programa, e os fatos que se danem. E as pesquisas com números soviéticos favoráveis à iniciativa do governo seguem o mesmo tom: foram elaboradas para dar os resultados encomendados.

Imagine o caro colega, sofisticado, capaz de matizar as opiniões, respondendo à pergunta “você é a favor de mais médicos?” Sim, claro – ter mais médicos é ótimo, desde que tenham condições de trabalhar e não se limitem a curar um bicho de pé e a mandar o paciente curado voltar descalço para casa. “Você é favorável a enviar médicos para lugares ainda não assistidos?” Mas a pesquisa não permite essa nuances – e, portanto, o caro colega é colocado no balaio comum do Fla x Flu partidário que rege a disputa em torno do programa.

Outra questão pesquisada é das faixas exclusivas de ônibus em São Paulo. É um programa defensável (e já vem sendo defendido há anos por profissionais sérios, de alta qualidade, como Jayme Lerner), mas exige estudos. Melhorar o transporte é mais difícil do que jogar tinta no chão – se não fosse assim, todas as cidades do mundo teriam resolvido este problema. Pintar faixas sem estudos de impacto é propaganda eleitoral. Fazer pesquisa perguntando se o entrevistado é favorável a melhorar os transportes, a privilegiar o transporte público e não o individual, a permitir que a parcela mais sofrida da população perca menos tempo e tenha mais conforto quando vai e volta do trabalho é desnecessário: quem dirá que é contra? Já perguntar aos compradores de carros que tiveram acesso ao mercado graças aos créditos de longo prazo o que é que acham de privilegiar o transporte coletivo talvez dê resultado diferente – e é por isso que não são pesquisados.

Os governos gastam nosso dinheiro em publicidade (e, de quebra, agradam os veículos de comunicação, cuja receita agradece). A imprensa embarca na onda, publicando as informações de maneira totalmente acrítica – a tal ponto que, se a velocidade noticiada dos ônibus em São Paulo subir mais um pouco, será preciso contratar Nelson Piquet e Emerson Fittipaldi para pilotá-los.

Uma das mais importantes funções dos meios de comunicação é desconfiar das informações oficiais. Nossos meios de comunicação, em vez de desconfiar, confiam. E quem paga para ter informação confiável fica obrigado a desconfiar.

 

Enfim!

É uma primeira página totalmente editorializada; mas, pela criatividade, pelo aproveitamento da possibilidade de cruzar duas notícias, é um achado. A capa do Estado de Minas de sexta-feira (20/9) é a prova de que há grandes jornalistas buscando e encontrando novas possibilidades nos jornais impressos, em vez de apenas lamentar os novos tempos que surgem com os jornais virtuais.

Na capa, o jornal chama a exposição do holandês Marits Cornelis Escher (1898-1972), artista cujas magníficas obras enganam o olhar. E junta as informações com a decepção que o jornal experimentou com a decisão do Supremo Tribunal Federal de aceitar os embargos infringentes numa esplêndida manchete: “O pai da ilusão no país da desilusão”. Beleza.

 

Quem faz a pauta

Neste Observatório, o sempre preciso Rolf Kuntz faz excelente artigo sobre a deficiência de cobertura do setor mais dinâmico da economia brasileira, a agricultura (ver “Imprensa esnoba o setor mais dinâmico“). E lembra que o agronegócio vem crescendo apesar de problemas que já deveriam ter sido resolvidos há muitos anos, na área de infraestrutura.

É exatamente o que ocorre: para os meios de comunicação, agricultura é uma espécie de patinho feio, agronegócio é quase um palavrão. E infraestrutura é boa pauta apenas quando se fala em coisas charmosas como aeroportos. Porto, que coisa menos sexy!

E há muitas coisas de que os meios de comunicação poderiam se ocupar, lembrando que as exportações de safras crescentes esbarram no gargalo logístico. Seria interessante para os meios de comunicação fazer algumas perguntas (e, feitas as perguntas, até que não seria difícil chegar às respostas):

1. Foi construída uma pista magnífica da Rodovia dos Imigrantes, que liga o maior polo econômico do país, São Paulo, ao principal porto do país, Santos. Mas essa pista não foi projetada para caminhões. Portanto, nada tem a ver com o escoamento das safras. Gastou-se muito para não resolver boa parte do problema.

2. A prefeitura de Cubatão, SP, doou um grande terreno para a construção de um pátio regulador de cargas, com capacidade para 3.500 caminhões (e, considerando-se que os caminhões entram e saem, serão atendidos 10 mil por dia). Seria suficiente para absorver com folga todo o gigantesco congestionamento que tanto prejudicou (e prejudica) o acesso ao porto, e que nunca passou de 3.500 caminhões por dia. Aliás, o congestionamento não prejudica apenas as exportações e o acesso ao porto: também atrapalha o turismo, já que os turistas que querem ir à praia também ficam retidos no caminho.

3. Há informações (é preciso comprová-las) de que houve concessão de crédito a juros excelentes para a construção do pátio regulador de cargas. No entanto, só uma parte do terreno foi utilizada para isso. É verdade que houve a concessão do empréstimo? Se houve, como foi utilizado?

4. O afastamento do PSB do governo federal mostrou, com toda a clareza, que a Secretaria dos Portos é cargo de negociação entre partidos e a Presidência. O objetivo da escolha do ministro que ocupa o posto não é dar aos portos a maior eficiência possível: é garantir apoio no Congresso às iniciativas presidenciais. Que é que a Secretaria dos Portos faz que a Antaq, Agência Nacional de Transportes Aquaviários, não possa também fazer?

São boas perguntas, não? E fazê-las já garante uma excelente reportagem. Se houver respostas, então, a reportagem será melhor ainda.

 

Inculta e já não bela

Houve tempo, pode acreditar, que os grandes jornais cuidavam do texto com todo o carinho. Texto descuidado era coisa de jornal pequeno, daqueles de espremer e tirar sangue. E pensar que os jornais mais baratinhos acabaram impondo seu texto aos veículos de qualidade!

A regência praticamente desapareceu: as pessoas que recebem ajuda de alguém “o agradecem”, ou “vão lhe encontrar”, aquelas construções de deixar perplexo o professor Pasquale. E há frases notáveis: referindo-se ao grande roubo de armas na sede de uma empresa desativada, informa um grande veículo que “O depósito pertence à empresa Capital Serviços de Vigilância e Segurança, que não foi encontrada pela reportagem”. De duas, uma: ou procuraram alguém que falasse em nome da empresa (e não é o que diz a frase) ou procuraram a própria empresa (e no caso a encontraram, já que o roubo ocorreu em sua sede). Mas para que procurar uma empresa, se pessoas jurídicas são mudas e só se manifestam quando uma pessoa física funciona como porta-voz?

 

Quem sabe, sabe

Nota num grande jornal informa:

“Numa conversa a sós com Dilma Rousseff na segunda-feira passada, Renan Calheiros perguntou-a sobre que explicação Barack Obama dera ela a respeito da espionagem americana sobre o Brasil”.

“Perguntou-a” é de doer. Talvez o redator quisesse dizer “perguntou-lhe”, como se usa em Português. “Dera ela” deve ser “dera a ela”, ou “dera para ela”. Mas há um outro detalhe curiosíssimo nessa nota: se Renan Calheiros fez a pergunta a Dilma numa conversa a sós, como é que a informação chegou ao repórter? Dilma não deve ter sido a fonte, porque não gosta de conversar com jornalistas; e Renan teria sido imprudente a ponto de revelar detalhes de uma conversa cuja única fonte possível seria ele mesmo? Renan não chegou ao ponto a que chegou sendo imprudente.

 

Infringente do Direito

Um jornal regional paulista noticia da seguinte maneira a aceitação, pelo Supremo, dos embargos infringentes:

** “STF aceita novo juri no caso do Mensalão”

Esqueçamos o acento que não houve em “júri”. E lembremos que a informação é falsa:

1. Os embargos infringentes serão apreciados pelo STF e não por um júri.

2. Não pode haver um novo júri porque o Mensalão foi julgado diretamente pelo STF. Se não houve júri anterior, como o júri de agora, se houvesse, seria “novo”?

 

Como…

De um grande jornal impresso, de circulação nacional:

** “(…) uma placa teutônica se desloca longe dos olhos da maioria (…)

Que é que os alemães andam fazendo com suas placas? Ou será alguma pequena confusão com “placa tectônica”, alguma das doze grandes plataformas de rocha que sustentam continentes e oceanos?

 

…é…

De um grande portal noticioso, chamada:

** “Corpos de jovens desaparecidos há 40 anos são achados em lago nos EUA”

Do mesmo portal noticioso, material interno:

** “Corpos de desaparecidos há 50 anos são achados dentro de carros em lago nos EUA”

 

…mesmo?

De uma grande revista de economia, na chamada de capa:

** “Itens opcionais de segurança obrigatórios no exterior ficam de fora dos carros nacionais”.

Pois é: os tais itens de segurança são opcionais ou obrigatórios?

 

Frases

Do consultor de marketing Arão Sapiro: “A votação do Supremo foi apertada, deu 6×5. Será que cabem aí também os embargos infringentes?”

Do articulista Gaudêncio Torquato, novo membro da Academia Paulista de História: “Quem consegue recitar o nome de metade dos ministros?”

Do colunista Cláudio Humberto: “Cineminha logo mais naquele apê em São Bernardo (SP): ‘Doze homens e nenhuma sentença’.”

Do jornalista Fred Navarro: “O ministro Lewandowski está como o gato de Alice, que desaparece aos poucos e fica só o sorriso no ar.”

Da colunista Cora Rónai: “Se eu tivesse uma pizzaria, criaria imediatamente o sabor Embargos Infringentes. Ia ser o sucesso da temporada.”

Da jornalista Adriana Vandoni: “Sugestão minha para o novo Código Penal: ‘Infringente Preventivo’.”

Do colunista Mario Mendes: “Ih, agora aguenta as bi tudo apaixonada pelo Papa. Vão sair da balada direto pra missa este fim de semana.”

 

As não notícias

Um texto nacional, um americano, outro nacional. O primeiro nacional é bem mais rico que o americano: junta não notícias com português não correto. Há supostamente à vontade, há predicado no singular discordando do sujeito no plural, há um “o matando”. Um marco!

“Dois dos suspeitos de assassinar o garoto boliviano Brayan Yanarico Capcha, de 5 anos, morreram na cadeia onde estava. Como supostamente não havia ameaças contra os dois presos, eles não se encontravam em alas separadas. De acordo com os pais de Brayan, o garoto foi ameaçado durante todo o assalto que resultou em sua morte. Por chorar muito, o garoto supostamente irritou os assaltantes que acabaram o matando, mesmo levando R$ 4,5 mil da família boliviana.”

O texto americano, embora seja um bom exemplo de como dar uma notícia sem dizer se ela ocorreu ou não, não alcança a complexidade do primeiro nacional.

** “Katie Holmes teria jantado com Jamie Foxx”

Afinal de contas, jantaram juntos ou não?

E o segundo nacional é fantástico: nada aconteceu de fato. O cavalheiro é suspeito de algo suposto! Mas foi punido mesmo assim.

“Adaílson José Vilas Boas Macedo, auxiliar da ministra Ideli Salvatti, foi exonerado do cargo após o portal (…) revelar suposto envolvimento com organização suspeita de fraudes em fundos de pensão”

 

E eu com isso?

Agora estamos no reino de Oz. O leão é manso, brinca com a menininha, a menininha canta divinamente, o espantalho é feio mas é um sujeito legal, todo mundo curte muito todas as coisas. E há quem acredite que uma estrela, quando usa um vestido transparente sem nada por baixo, é surpreendida de verdade quando um fotógrafo registra a cena. A legenda informa que ela mostrou mais do que queria. Pois é.

Mas como poderíamos viver sem essas informações?

** “Marina Ruy Barbosa escolhe óculos fashion para embarcar em aeroporto”

** “Drew Barrymore deixa estúdio de fotografia com roupa toda estampada”

** “Em festa, Mulher Filé rasga short e acaba mostrando demais”

** “Gwen Stefani vai com roupa toda estampada em chá de bebê”

** “José Loreto e Débora Nascimento vão passar as férias em Paris”

** “Madonna diz que teve sonho erótico com Brad Pitt”

** “Marcos Oliver confessa que após pornô precisou pintar casas”

** “Mel B diz que já beijou todas as Spice Girls”

** “Malvino Salvador diz que está livre, leve e solto”

** “Pattinson diz que nunca quis ser famoso”

** “Juliana Paes curte evento ao lado do filho Pedro”

** “David Beckham tatua o nome da mulher na mão”

** “Rafael Cardoso curte piscina com seu cachorro”

** “Jessie J tem coleção de roupões”

** “Giovanna Lancellotti faz autoescola”

** “Paris Hilton diz que seu reality show é melhor que o de Kim Kardashian”

 

O grande título

Temos algumas manchetes exemplares. Há, por exemplo, aquele tipo de título que necessita de alguma interpretação:

** “Duo do metal quer pôr sexo no ar do Rock in Rio”

Deve ter sentido, claro.

Há coisas esquisitas:

** “Briga por cheiro mata aluna”

E uma grande manchete, aparentemente absurda:

** “Motorista é morto por corpo de homem que fugia de assalto”

O pior é que é verdade. Bandidos colocaram pedras na pista da Rodovia Fernão Dias, que liga São Paulo a Belo Horizonte. O pneu de um carro estourou e o motorista parou no acostamento. Quando percebeu que seria assaltado, correu; na tentativa de fuga, foi atropelado e jogado na pista oposta. Seu corpo atingiu o para-brisas de outro carro e matou o motorista.

É um título notável: conta uma história terrível e mostra ao mesmo tempo como está a segurança pública em nosso país tropical, bonito por natureza.

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Carlos Brickmann é jornalista, diretor da Brickmann&Associados Comunicação