Jornalismo sempre foi maniqueísta. Quando Eduardo Prado escrevia, sabia-se que era em favor da monarquia; Júlio Mesquita era sempre republicano. Samuel Wainer falava bem de Getúlio Vargas na Última Hora, Carlos Lacerda batia em Vargas na Tribuna da Imprensa e na Rádio Tupi. O Estado de S.Paulo nem mencionava o nome de Adhemar de Barros, tratado como A. de Barros; e o Parque Fernando Costa era, para o Estadão, o Parque da Água Branca, para nem mencionar o nome do antigo desafeto.
Nada de novidades, pois. Só que o tempo passa, o tempo voa, o mundo gira, a Lusitana roda, o jornalismo deveria evoluir, mas amanhã vai ser um dia igualzinho a este. E todo dia a imprensa escreve tudo sempre igual.
A mesma seca põe São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro em risco de ficar sem água, e dá cartão amarelo ao suprimento nacional de eletricidade (até apagão já houve). Mas há jornalistas que culpam Geraldo Alckmin pela falta d’água e esquecem Dilma Rousseff pela falta de luz. Há os que culpam Dilma pela falta de luz (especialmente porque ela era apontada como especialista na área) e esquecem os governadores dos estados em que falta água. Há jornalistas que culpam o PSDB de São Paulo e de Minas pela falta de obras que prevenissem o efeito de secas prolongadas mas esquecem o Rio – governado pelo PMDB, que integra a base aliada do Governo Lula.
E ninguém, nem os mais ácidos críticos do governo federal, lembra que o ministro da Fazenda, Joaquim Levy, estava com Sérgio Cabral e o empreiteiro Fernando Cavendish, de memória tão recente, no festim da Turma do Guardanapo, em Paris. Claro: os mais ácidos críticos de Dilma aprovam a política econômica anunciada por Levy – logo, para que lembrar que, embora sem guardanapo na testa, embora só olhando o sassaricar conjunto de empreiteiro e políticos, embora sem usar sapato de sola vermelha, ele estava, sorridente e alegre, na festa de alto luxo com Fernando Cavendish?
Fatos, fatos, fatos
Opinião maniqueísta, automática, sem base, sem articulação, a Internet publica às dúzias – até com adjetivos mais agressivos, já que os adversários são sempre canalhas, sacripantas, coxinhas, reaças, vermelhos, neocomunistas (seja lá isso o que for), boyzinhos, cheiradores, defensores de bandidos etc. Jornalismo não pode se limitar a isso, ou jornalismo não será.
Certas coisas devem ficar bem claras, em qualquer texto jornalístico:
1. A atual seca, acompanhada de muito calor, é um fenômeno raro;
2. Uma seca como esta provoca efeitos diversos, que vão da falta d’água à quebra da geração de energia;
3. Um bom planejamento reduz os problemas, mas não resolve casos extremos. O planejamento leva em conta as médias, não os máximos;
4. Não houve planejamento (nem para os máximos, nem para as médias) na questão da água ou da geração de energia. Há parques eólicos (a vento) parados por falta de linha de transmissão. As possibilidades de pequenas unidades geradoras dificilmente são levadas em conta. O álcool passou anos sendo massacrado por uma política suicida de preços de gasolina (e o álcool não apenas é fonte energética como dá, como subproduto do bagaço de cana, a produção de eletricidade). Hidrelétricas de porte, por um motivo ou outro, saem sempre com muitos anos de atraso.
E, na parte hídrica, basta falar de São Paulo: já em 2002 se sabia que a quantidade de água recebida pelo sistema Cantareira – o maior do estado – era pouca coisa superior à retirada. Era preciso, portanto, buscar soluções para ampliar as fontes de abastecimento, e isso não foi feito. Poços profundos, água do mar dessalinizada, outras possibilidades? Este colunista não tem a menor ideia. Mas Las Vegas, no meio de um deserto, nunca teve problemas de falta d’água. Israel, com muito menos chuva do que qualquer região brasileira, dispõe de água para a população e exporta verduras e frutas. Na Espanha, é nas regiões mais secas que se produzem os melhores melões – e alguém já ouviu falar em “restrição hídrica” (apelido tecnocrático de falta d’água) na Espanha?
Vamos dar nomes aos responsáveis? Em São Paulo, o PSDB e seus dirigentes, óbvio; o partido está no poder desde 1995 e teve tempo para estudar a questão e no mínimo melhorar as condições de abastecimento. No país, o PT e seus dirigentes, óbvio: estão no poder desde 2003. No Rio, o PMDB e seus dirigentes: oito anos com Sérgio Cabral, antes dele Rosinha Garotinho. E, claro, a oposição a eles, que nunca se mobilizou para exigir melhor abastecimento de água e investimentos pesados em saneamento básico.
Culpar um deles, apenas, esquecendo os outros, é fazer política partidária, não jornalismo. Defender algum deles, por mais que se aprecie sua posição ideológica, ou suas iniciativas em outras áreas administrativas, também é fazer política partidária. Jornalismo tem de levar em conta o máximo possível de aspectos. Caso não o faça, seu nome passa a ser Propaganda.
Timing é tudo
Alckmin entrega medalha a um campeão de surfe bem quando o Estado está a seco. Dilma aumenta os impostos no dia do apagão.
Boa notícia
A Folha de S.Paulo colocou on-line, gratuitamente, todo seu acervo desde 1921 – o que inclui Folha da Noite, Folha da Manhã e Folha da Tarde. Endereço eletrônico: http://ln.is/acervo.folha.com.br/2MXuC. Má notícia: a ideia é, mais tarde, cobrar pelo acesso ao arquivo.
Leniência? Então, tá
Os meios de comunicação, em geral, estão aceitando como boas algumas ideias absolutamente irrealizáveis a respeito do relacionamento entre empresas privadas e grandes contratantes públicos. Por exemplo, a de que a contratação de empreiteiras estrangeiras contribuiria para moralizar os serviços – o que equivale a dizer que só brasileiro é ladrão. Colocando as coisas em seus devidos termos, o caso do cartel dos metrôs e trens urbanos envolve preponderantemente empresas estrangeiras. Algumas grandes, algumas pequenas, algumas médias. Mas não se sabe de nenhum caso de empresa estrangeira que, diante do queijo, tenha se recusado a empunhar a faca e chamado a polícia para mostrar seu ultraje.
A outra história para boi dormir é a da leniência. Imaginemos que as grandes empresas façam acordos judiciais em que admitam ter cometido crimes, devolvam as quantias determinadas, paguem multas, respondam a processos e se comprometam a não delinquir novamente, sob pena de perder todas as vantagens obtidas com o processo de leniência.
OK: na hora de contribuir para o bem-estar dos partidos e de seus prepostos, não contribuirão, já que as penas serão substancialmente agravadas pela quebra de compromisso. Acontece que os subornadores não chegam aos contratantes exigindo que aceitem propina. Normalmente, é como num aniversário: não é de bom-tom chegar com as mãos vazias. Digamos que, do lado dos contratantes, haja alguns elementos-chave que, sem o “abre-te sésamo” da propina, encontrarão meios de evitar que o pão-duro participe da concorrência. Sempre haverá, nas instalações da empresa, algum lugar em que o carpete tenha se soltado, ou uma lâmpada esteja queimada, ou a porta do banheiro tenha 51 cm de largura, em vez dos 52 cm regulamentares.
A coisa é mais complicada: é preciso reconhecer, em primeiro lugar, que não há apenas quem ofereça propina, mas também quem a peça. Há, como na Natureza, uma simbiose, em que ambos os lados esperam ter benefícios com sua aliança. A vigilância sobre os contratantes, portanto, precisa ser constante, como o é numa empresa privada. Não pode existir, portanto, a figura do afilhado do político X, ou do amigo do senador Y, nem o cabo eleitoral que, coitado, se não mamar numa teta pública não terá como sobreviver. É difícil, mas factível: para comprová-lo, basta ir a um banco e dizer a um diretor amigo que seu primo não serve para nada e precisa de um emprego, então se for possível pendurá-lo lá você ficaria feliz, e afinal de contas o banco é lucrativo, nem sentiria em suas contas o impacto do salário do primo inútil…
Alguém pensaria em dirigir-se a um banqueiro privado com essa proposta? Não? Então é factível, é plenamente viável. E basta implantar esse sistema de controle nas contratantes públicas, fiscalizando ao mesmo tempo os acordos de leniência das prestadoras de serviço, para que não haja burla.
Cabe aos meios de comunicação mostrar os fatos da vida. Ou todos, contratados e contratantes, são enquadrados na lei, ou não vai acontecer nada. Alguém acredita que um diretor de empresa estatal, nomeado por indicação do senador Z, resistirá a um pedido do padrinho, correndo o risco de perder o emprego, só para defender a moralidade e o dinheiro da Viúva?
Autocrítica
Numa época em que os escândalos se sucedem, alguém sempre acaba prejudicado, na posição de responsável por algum malfeito que não cometeu (ou que cometeu, mas era correto, não malfeito). Quando a verdade se restabelece, o escândalo já é outro, as vítimas e culpados já são outros, e não há qualquer tipo de revisão jornalística de quem foi acusado injustamente. O assunto passou, morreu. E só resta o registro no Google – o registro do noticiário errôneo, que vai afligir o injustiçado pelo resto da vida.
Questão de comunicação
No mesmo dia, três cartas a um grande jornal, as três reclamando de equívocos que consideraram ter sido cometidos no noticiário. Das três, uma é perfeita: o assessor de comunicação de uma grande empresa pública, em linguagem correta e civilizada, expõe as falhas de uma matéria. Duas são inacreditáveis: uma começa xingando o jornal e o jornalista, para depois expor seu ponto de vista (e é assinada por um parlamentar, que não consegue conter seus ímpetos de linguagem nem por escrito – e, numa época em que a internet e até alguns jornalistas de TV banalizaram o insulto, começar um texto com xingações tira a credibilidade que o restante poderia ter); outra, assinada por alto funcionário do governo federal, elogia jornal e jornalista, mas diz que a reportagem é mentirosa. Onde está a mentira? Ele não conta: só diz que as coisas não foram daquele jeito. E como é que ocorreram, na opinião dele? Como na velha piada, “isto jamais saberás”.
Espaço na seção de cartas é precioso: há sempre muito mais material do que será possível publicar. Cabe a quem as envia, portanto, transmitir com precisão e concisão o que deseja, sem se perder em desvios bobagentos.
Fazendo justiça, a carta mais bem feita é assinada por Carlos Alencar, da Sabesp. Esclarece o que considera que tem de ser esclarecido, sem abusar da paciência do leitor com insultos e considerações. Como se deve.
Hem?
Saiu num grande portal noticioso:
** “Vendaval atinge lavanderia e um morre; assista ao flagra”
O vendaval estaria fazendo o que não deve, ao ser flagrado?
Como…
Do portal noticioso de um grande jornal:
Título: “‘Charlie Hebdo’ com Moisés na capa chega ao Brasil na segunda-feira”
Texto: “‘Charlie Hebdo’ com Maomé na capa chega ao Brasil na segunda-feira”
Moisés, Maomé, Cristo – todos líderes religiosos, todos barbudos e cabeludos, todos nascidos mais ou menos na mesma região… confunde, né?
…é…
De um blog de respeitada revista:
** “(…) a Camorra, como a máfia é conhecida na Itália (…)”
A Camorra é uma organização criminosa de Nápoles. E Nápoles é na Itália. Mas a Camorra não é a Máfia, cuja base é na Sicília (e se expandiu para os Estados Unidos, onde é mais conhecida como Cosa Nostra). A Ndrangheta, da Calábria, também é uma organização criminosa, mas também não é a Máfia, nem a Camorra. Em resumo, Camorra é Camorra, Máfia é Máfia. E PCC é PCC, mas essa já é uma outra história.
…mesmo?
Do noticiário de uma TV oficial, sobre a posse do ministro da Cultura, Juca Ferreira:
** “(…) Juca Kfouri já foi ministro da Cultura uma vez (…)”
Juca por Juca, o Kfouri certamente seria melhor.
Frases
>> Do jornalista Vitor Vieira: “Olha aí o Brasil de Dilma: luz, só no fim do túnel.”
>> Do jornalista José Luiz Teixeira: “Depois dos ministros escolhidos e das medidas econômicas adotadas, o governo federal já está até falando tucanês. O apagão foi explicado como ‘restrição na transferência de energia’.”
>> De Vanderlei A. Retondo, em carta ao Diário do Grande ABC: “Marta Suplicy está sendo rejeitada pelo PT como se fosse a primeira fatia do pão de forma. Mas nós sabemos que mesmo a primeira fatia é feita com farinha do mesmo saco.”
>> Do jornalista Palmério Dória: “Pense mil vezes antes de dizer que falta água. O que falta é governo!”
>> Do jornalista Cláudio Humberto: “Devido ao aumento da gasolina, da energia, do salário dos políticos e da corrupção, informamos que a luz no fim do túnel foi cortada.”
>> Do deputado goiano Ronaldo Caiado, DEM, comentando o barulhento silêncio de Dilma, que não fala em público há mais de um mês: “Sei que é uma situação difícil de ser explicada. Mas cadê o coração valente? Amarelou?”
>> Do internauta Hugo A-Go-Go: “É curioso que nesses tempos de delação premiada tantos petistas tenham a língua presa.”
>> Do professor Jacques Marcovitch, ex-reitor da USP, no programa “Gente”, da Rede Bandeirantes de Rádio: “Os intolerantes ocupam os espaços que lhes são abertos pelos tolerantes.”
E eu com isso?
Tratemos de gente normal, enfim. Gente que namora, que passeia, que gosta de festas, que adora fofocas, que exibe os filhos, que vai à praia sempre que pode. Tem problemas, claro: a concorrência é brava e perder o namorado ou namorada é extremamente comum. Mas são todos civilizados e não se tem notícia de incidentes mais graves.
As notícias abaixo devem ser lidas ao som de When you wish upon a star, de Jesse McCartney, trilha sonora do filme Pinóquio:
** “De férias, Bonner é flagrado barbudo em aeroporto”
** “Kristen Stewart quer atuar em filme de super-heróis”
** “Grazi Massafera brinca com Sofia em praia do Rio”
** “Simon Cowell mostra foto do filho de 11 meses”
** “De bigode, Enzo Celulari curte festa em Florianópolis”
** “Lady Gaga não para de publicar fotos sem maquiagem”
** “Juliana Knust vai ao teatro”
** “Jennifer Aniston abusa do decote em premiação”
** “Rafael Cardoso e Igor Rickli passeiam com as esposas e os filhos”
** “Miley está filmando sua vida sexual com Patrick Schwarzenegger”
** “José Mayer passeia tranquilamente pelo bairro de Ipanema”
** “Cheia de glamour, Scarlett Johansson surge de roupão e pantufas em set de filmagem”
** “Bianca Bin pedala pela orla carioca”
** “Amigos de Katy Perry não conseguem acreditar que reatou com John Mayer”
** “Henri Castelli leva os filhos para passear no Estádio do Morumbi”
** “Paris Hilton usa boné de gatinho para passear por Milão”
** “Samantha Schmutz declara: ‘Não finjo orgasmo’”
** “Filha de Beyoncé e Jay-Z encontra filho de Kelly Rowland e Tim Witherspoon”
** “Amanda Françozo prestigia inauguração de restaurante badalado”
** “Thaila Ayala roda bambolê de biquíni e ganha elogios de fãs”
O grande título
Uma semana riquíssima: o país lentamente volta ao ritmo normal (mas o Carnaval está chegando), promotores e juízes voltam de férias e inundam de denúncias os meios de comunicação, as redações continuam em regime de plantão. É a festa do título esquisito.
Alguém imagina, por exemplo, um magistrado usando a linguagem que lhe é atribuída, de índio de filme americano?
** “Juiz da Lava Jato sinaliza que dar penas duras”
A concordância foi, para usar expressões atuais, “deslizada”. Ou “flexibilizada”. Mas definitivamente não é aquela consagrada na Última Flor do Lácio:
** “Cada um dos participantes ficaram em pé no jardim envolvidos por uma espécie de tubo”
Há manchetes que, mesmo para os mais descrentes, soam estranhas:
** “Santoro está tentando conciliar agenda para encarnar Jesus”
Uma, pelo menos, não é de fácil compreensão:
** “Coxinha da Silva não sai de casa com o governo atual”
E uma é, de certa forma, herdada de Walt Disney. Dá forma humana ao que não é humano:
** “Maus hábitos também têm culpa pela água”
Será que dá para multar os maus hábitos?
O grande título está fora dessas fórmulas:
** “Suposta vegetariana há 27 anos, Angélica ataca cachorro-quente em comercial”
O conde Otto von Bismarck, unificador da Alemanha, dizia que quanto menos soubermos como são feitas leis e as salsichas melhor dormiremos à noite. Quem garante que Angélica, ao atacar o cachorro-quente, deixou de ser vegetariana?
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Carlos Brickmann é jornalista, diretor da Brickmann&Associados Comunicação