Num livro tinindo de novo, o romancista (e especialista em Comunicação) Umberto Eco apresenta um manual do mau jornalismo, ambientado na redação de um jornal fictício, na Itália, em 1992 – auge da Operação Mãos Limpas. A época é outra, as circunstâncias são diferentes, o país é outro, mas o livro parece falar do Brasil de hoje.
Tem tudo: um jornal criado especialmente para difamar adversários, chantagear, espalhar boatos, centralizar as operações de montagem de dossiês (lembra alguma coisa?). Tem os mistérios que ficaram esquecidos – no caso da Itália, por exemplo, a P2, uma loja maçônica que se especializou em preparar o clima para um golpe (que acabou não ocorrendo). “Quis contar uma história sobre os limites da informação, sobre como funciona uma máquina de difamar”, disse Eco à revista L’Espresso. “O mecanismo de difamar, de sujar reputações, de lançar insinuações já era conhecido e usado desde os tempos da Inquisição”, completa. Hoje, com as redes sociais, essa forma de destruir reputações ganhou grande força. E acabou gerando monstros políticos do tipo de Sílvio Berlusconi.
Eco trata das lendas urbanas, como a renitente versão de que o papa João Paulo 1º, Albino Luciani, que morreu pouco depois de assumir o Trono de Pedro, foi assassinado (aqui esse tipo de lenda urbana é muito mais forte, a partir da morte de Tancredo Neves e passando pelas conspirações que teriam resultado no assassínio de dois prefeitos, Celso Daniel e Toninho do PT). E do esforço permanente de destruição de quem quer que combata o crime – no caso da Itália, um juiz sofreu forte campanha de desmoralização por algo sem a menor importância, como a divulgação de sua preferência por meias cor de laranja. O livro traz histórias verdadeiras, histórias falsas, histórias mescladas de verdade e fantasia – mais uma vez, caro colega, isso lembra algo?
Um livro que vale a pena. Ou, para quem quiser poupar alguns reais, ler com atenção os jornais – especialmente os recentes, criados para defender pessoas e partidos – e acompanhar as redes sociais, procurando identificar os profissionalmente engajados, será também muito instrutivo.
A verdade como ela é
A propósito, um site engajadíssimo (contra o Governo, contra o PT), O Antagonista, comandado por Mário Sabino e Diogo Mainardi, errou ao prever que o novo presidente da Petrobras seria saudado pela imprensa e pelo mercado financeiro como uma excelente escolha. O quarteto Dilma, Mercadante, Pepe Vargas e Miguel Rossetto conseguiu a façanha de inventar um presidente da Petrobras que nem tinha tomado posse e já estava sendo criticado (e nem precisou assumir para ser investigado: traz seu próprio rastro de suspeitas do cargo anterior que ocupou, a presidência do Banco do Brasil).
Mas, se errou, O Antagonista tinha tudo para acertar. Nossos meios de comunicação seguem a máxima do dramaturgo Paulo Pontes: Brasileiro, Profissão Esperança. Diz O Antagonista:
“Quando Graça Foster assumiu o cargo, a Folha de S.Paulo descreveu-a como uma gerente eficaz e durona, que fixa metas e cobra resultados. O Valor Econômico premiou-a entre as quinze melhores gestoras do Brasil. A BBC Brasil destacou seu foco em metas pragmáticas e absolutamente realistas. A Veja disse que a executiva tinha ferramentas importantes para conseguir inaugurar um novo período de eficiência na estatal”.
Pois é. Quem assume traz sempre um sopro de esperança. E Graça Foster assumia no lugar de José Sérgio Gabrielli. Até este colunista, que nunca viu petróleo cru de perto, despertaria esperanças ao substituir Gabrielli. Mas seria conveniente que os meios de comunicação se embandeirassem menos e estudassem melhor o desempenho passado dos novos gestores. Pois de que adianta saber tudo sobre craqueamento de petróleo pesado se o importante, numa empresa petrolífera, é saber gerir o conjunto do negócio?
Não fala com rico…
Houve época em que a imprensa brasileira ecoava com prazer o racismo que vinha de cima (e em que se cobrava do governo um esforço extra para buscar imigrantes brancos, para clarear a pele da população brasileira). Este colunista já leu coisas do tipo “três assaltantes, sendo um deles branco (…)”. Aceitava-se como normal que o assaltante fosse preto ou mulato; quando era branco, era preciso assinalar a anomalia.
Hoje a coisa mudou de lado: uma grande manifestação em São Paulo contra o governo federal, no ano passado, foi criticada porque só tinha brancos, e os repórteres achavam que todos estavam bem vestidos, o que mereceu (nas matérias) uma série de comentários irônicos. E se faz um grande esforço para mostrar que criminosos, ou suspeitos de crime, são ricos. Frases do tipo “foi apreendido um carro de luxo” significa, em jornalês, que um Honda Civic ou um Toyota Corolla era o carro do cavalheiro. São bons carros, de bom padrão – mas quem acha que são de luxo não conhece um Mercedes, um Bentley, um Lincoln. Em certa ocasião, nas acusações contra um delegado, salientou-se que tinha um Passat blindado. Tinha – um carro de cinco ou seis anos de idade, que o repórter poderia comprar, se quisesse, tanto que o dele valia mais do que esse.
…não dá mão a branco
Há alguns exemplos bem interessantes a respeito do novo preconceito:
** “Estudante morre atropelado por Mercedes”
** “Jovem é atropelado por carro de luxo e morre”
Se o jovem fosse atropelado por um carro popular com doze anos de uso não teria morrido? Caberá ao luxo do carro a culpa do atropelamento?
Há mais:
** “Motorista que fugiu após bater carro de luxo em SP se entrega à Polícia”.
O motorista, que segundo uma testemunha estava bêbado, bateu com o carro, um Volvo S-60 – este sim de luxo – num poste. O poste caiu, os fios pegaram fogo e o passageiro do carro morreu queimado. Mas o detalhe vem em seguida: “O carro está avaliado entre R$ 150 e R$ 200 mil”.
Que diferença faz o preço do carro para a notícia? Se fosse mais barato, não teria havido o acidente? Ou o passageiro (que, aliás, era o dono do carro, dirigido por um amigo) teria sobrevivido? Não: o objetivo é apenas reforçar um preconceito tão nocivo quanto o anterior, de décadas atrás.
Criminoso é criminoso, bêbado é bêbado. Há casos em que a conta bancária influi no comportamento do criminoso, e isso deve ser ressaltado na notícia. Mas, quando a conta bancária nada tem a ver com o evento, por que o esforço em demonstrar que é alta?
Vale a pena ler a coluna ombudsman da Folha de S.Paulo de 1º de fevereiro deste ano (ver aqui), assinada pela jornalista Vera Guimarães. Uma frase: “Certas coberturas passam a impressão de que há ‘licença para zoar’ se o personagem for branco, rico ou conservador”.
Alegrias da fotografia
Os atuais problemas do país têm gerado excelentes fotos. Uma, ótima, de André Coelho, de O Globo, do porteiro parecendo apontar o caminho de saída para a ainda presidente da Petrobras, Graça Foster; outra, que nem precisa de legenda, é de Sérgio Lima, da Folha de S.Paulo. Mostra Eduardo Cunha sorridente – um sorriso sarcástico, talvez? – cumprimentando um desenxabido Aloízio Mercadante. As mãos se encontram, mas apenas num toque: não se apertam. São fotos para ficar na história.
Um cavalheiro andou criticando a foto de O Globo, considerando-a “baixaria e maldade”. Este colunista nunca tinha até agora ouvido falar de alguma foto que, sem modificações eletrônicas, distorcesse os fatos reais gerando baixaria e maldade. Deve ser alguma novidade tecnológica.
Tristezas da fotografia
Um dos grandes repórteres fotográficos brasileiros, Assis Hoffmann, morreu esta semana em Porto Alegre, aos 73 anos. Hoffmann foi astro na grande fase do Correio do Povo, das principais revistas da Editora Abril, cobriu praticamente sozinho, para O Estado de S.Paulo e o Jornal da Tarde, a primeira disputa do Robertão, o torneio que mais tarde se transformaria no Campeonato Nacional. Esplêndido profissional. Gente fina.
Inculta e bela
Ficamos até em dúvida: terá havido novas reformas no Português? Não: a única reforma foi a analfabetização de muitos que deveriam utilizá-lo como instrumento de trabalho. Já não é mais coisa de veículos pequenos, daqueles que não têm como manter boas equipes: o português genérico invadiu grandes publicações. Como diria Miguel Falabella, sai de baixo!
Numa grande revista semanal, que se referia às roupas usadas por modelos em determinado evento:
** “O melhor assessório dela (…)”
Só em matérias frufru? Não! Numa grande matéria internacional, de um grande jornal impresso, há a frase:
** “No primeiro andar fica algum negócio, de venda de assessórios (…)”
E como será o assesso ao primeiro andar? Haverá halguém ajudando na çubida?
Esplendor e sepultura
Será que os textos estão sendo entregues a açeçores para digitassão?
Talvez. Numa TV importante, num programa importante, com importantes imagens de um importante apresentador do passado, aparece a legenda “Cacino do Chacrinha”.
Cacino. Do Xacrinha. Aquele que jogava bacalial para seus adimiradores.
Como…
De um grande portal jornalístico, de um grande grupo de imprensa:
** “Geólogo cria engenhoca em piscina para burlar seca de caixa d’água em SP”
A menos que a palavra “burlar” tenha ganho novo significado, como é que se faz para enganar a seca zombando dela?
…é…
De um grande portal jornalístico, sobre a acusação de doping a Anderson Silva:
** “O lutador não comentarou o resultado”.
Comentarou, do verbo comentarar.
…mesmo?
De um jornal impresso de circulação nacional, citando a opinião de um especialista em investimentos a respeito da Petrobras:
** “Há uma expectativa de reestruturação, que deve passar pela mudança de gestação (…)”
Em outras palavras, para quem comprou ações, toma que o filho é teu.
Frases
>> Do jornalista Fred Navarro: “Dilma disse aos ministros que os ajustes corretivos foram feitos para manter o rumo. Ou seja, vai manter o rumo dando um cavalo de pau.”
>> Do internauta Carlos Cunha: “Do jeito que as coisas vão, o último a sair não precisará apagar a luz.”
>> Do jornalista Lauro Jardim: “Eduardo Cunha é uma espécie de Severino Cavalcanti 2.0.”
>> Do internauta Danilo Mogadouro Calciolari: “Com a gasolina agora no preço que tá, ‘te pego em casa’ é quase um ‘eu te amo’.”
>> Do jornalista Gabriel Meissner: “Com esse aumento da conta de luz o contribuinte está tomando no Aneel.”
>> Do jornalista Marco Antonio Araújo: “Não creio que seja caso de impeachment. Basta uma boa licença médica.”
>> Do jornalista Jorge Moreno: “Com Bendine, tudo cai: quando foi para o BB, as ações também caíram. Vou botá-lo como meu cardiologista pra ver se a minha pressão cai.”
E eu com isso?
Vamos conversar francamente. Que é que melhor: acompanhar os passeios de mulheres lindas, bem vestidas ou bem despidas, com seus respectivos namorados, ou interpretar os encontros entre o Aloízio Mercadante e o Eduardo Cunha? Saber como são as festas de artistas (aquelas em que tentam nos convencer de que as moças quase “mostraram demais”) ou as festas de quem venceu na Câmara, em que moças, se houver, nem se mostram? Frufru, pois! E chega de assuntos sérios, porque não são sérios!
** “Nicole Scherzinger e Lewis Hamilton estão separados”
** “Antônio Fagundes passeia com a namorada”
** “Shakira mostra foto do pé do segundo filho”
** “Cleo Pires faz exercícios na orla carioca”
** “Beyoncé e Jay-Z se mudam para Los Angeles”
** “Mariana Ximenes exibe corpão de biquíni em Fortaleza”
** “Mila Kutney elogia Ashton Kutcher como pai”
** “Marina Ruy Barbosa beija o namorado em foto”
** “Justin Timberlake mostra o barrigão de Jessica Biel”
** “Oscar Magrini revela sua paixão pelo verão”
** “Katy Perry fica ofendida com mensagem de boa sorte de Russel Brand”
** “Thiago Lacerda passeia no shopping com toda a família”
** “Cameron Diaz janta com Drew Barrymore, Nicole Richie e Gwyneth Paltrow”
** “Sidney Sampaio leva o filho à escola no primeiro dia de aula”
** “Johnny Depp mal pode esperar para se casar com Amber Heard”
** “Neymar curte passeio pelo Catar com amigos”
** “Paris Hilton posta selfie com decote ousado”
** “Beyoncé e Jay-Z teriam discutido em restaurante”
O grande título
As redações foram dramaticamente reduzidas (e o trabalho, na melhor das hipóteses, continua o mesmo). Talvez isso explique títulos como os desta semana. Um sem sentido, por exemplo:
** “Kendall Jenner e Delevingne em posam sexy”
Um outro com erro de digitação, claro – mas um erro que não poderia acontecer nesse tipo de matéria, das mais importantes do dia:
** “Jordânia pede prova de dida de refém do Estado islâmico”
Um bastante confuso, permitindo várias interpretações:
** “Caminhonete fica totalmente destruída em batida com um morto a 120 km/h”
Alguém já tinha ouvido falar de um morto tão veloz?
E um que combina várias características, incluindo aquela dose de incerteza de quem não apurou completamente o que aconteceu:
** “Estilista que iria a júri por morte estaria morto”
Está ou não? Da resposta a essa pergunta depende a realização do júri.
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Carlos Brickmann é jornalista, diretor da Brickmann&Associados Comunicação