Os meios de comunicação, com raras exceções (em geral, colunas assinadas), acompanham de longe o debate sobre violência entre torcidas nos estádios de futebol. Faz-se a cobertura declaratória: Fulano diz isso, Sicrano diz aquilo, e a matéria é entregue como se estivesse pronta. Promotores defendem torcida única nos estádios, dirigentes de clubes são contra, já existe uma esdrúxula recomendação que manda vender aos adversários apenas 5% das entradas (e as cadeiras vazias? Vazias continuam, reduzindo a arrecadação das bilheterias), culpam-se as torcidas organizadas pela violência, as organizadas se defendem. E?
E, nada. Comecemos pelas organizadas. Já houve uma série de crimes cometidos ou por torcedores afiliados ou tendo como palco a própria sede das torcidas – inclusive grandes apreensões de drogas. Culpa das organizadas? Este colunista ainda se lembra da torcida uniformizada do São Paulo, famosa por seus gritos de guerra – inclusive o “aleguá”, deturpação do francês “allez goal”, ou algo semelhante. Não havia brigas, não havia crimes, apenas a vontade de torcer juntos, usando o uniforme do time.
Hoje é diferente – mas é diferente, em grande parte, porque há imensas falhas na segurança pública. O sujeito entra no estádio, dentro ou fora de uma organizada (dentro é melhor para ele, que se sente mais seguro), arrebenta cadeiras, ocupa lugar comprado por outro torcedor, urina deliberadamente nos lugares errados, joga objetos pesados para machucar a torcida adversária, usa rojões, sinalizadores. É filmado, gravado, identificado – mas a polícia nada faz por falta de informações.
Vez por outra, alguém paga o pato e vai para a delegacia. Pois está no noticiário da semana passada a história de um cavalheiro condenado a se apresentar à delegacia duas horas antes dos jogos de seu time, e só sair algumas horas depois do apito final. Alguém lhe disse: paga uma pizza e está liberado. Pagou a pizza, foi liberado e nunca mais apareceu.
Há reportagens sobre esses temas? Aquele pessoal que, depois do episódio de Oruro, na Bolívia, foi identificado entre os briguentos que enfrentaram a torcida do Vasco da Gama, que tipo de punição sofreu? Terá a imprensa mostrado, como seria normal, o tipo de incômodo a que foram submetidos? Para os meios de comunicação, o juiz apitou, o jogo terminou, é hora de fazer comentários, repassar os melhores momentos, e o assunto está encerrado. Para que ter o trabalho de investigar quem usa a violência nos estádios?
Para alguns promotores, deve haver torcida única. Para este colunista, a medida é inconstitucional: proíbe um grupo de pessoas de participar de um evento única e exclusivamente por questão de opinião (e a medida viola a grande máxima do grande Millôr Fernandes: todo cidadão tem o direito sagrado de torcer pelo Vasco na arquibancada do Flamengo). É o mesmo que proibir heterossexuais de participar pacificamente da Parada Gay ou vetar a presença pacífica de cristãos católicos em eventos de cristãos evangélicos. E não se alegue que todos têm os mesmos direitos, já que a torcida de um time, proibida de comparecer ao jogo em que o mandante é o adversário, terá sua vez de reinar sozinha no returno. Basta lembrar a frase-símbolo do apartheid sul-africano – “Iguais mas separados”. Não é uma boa lembrança.
E, ainda por cima, a tese da torcida única não funciona. Na Europa, especialmente nos países menos desenvolvidos, a torcida única existe. Na Grécia, os torcedores do Panathinaikos não tinham com quem brigar, brigaram com a polícia. Na Turquia, a torcida única era do Galatasaray. Pois invadiu o campo para bater nos jogadores adversários. Na Espanha, não há torcida única, mas a venda exclusiva para sócios-torcedores faz com que os torcedores dos mandantes sejam maioria esmagadora (e lá a violência é pequena – vale uma análise, por que lá funciona e em outros lugares não?)
Onde a violência foi banida? Na Inglaterra, sem torcida única, sem invencionices. E a violência ali era tão impressionante que os times ingleses estavam proibidos de participar de competições europeias. Os ingleses simplesmente aplicaram a lei: os briguentos (hooligans) foram identificados, julgados e proibidos de assistir aos jogos – isso nos casos mais leves. Nos mais graves, foram para a cadeia. O monitoramento é total: caso um dos condenados não apareça na delegacia algumas horas antes do jogo, passa automaticamente a ser procurado pela polícia, como foragido. As imagens das câmeras são analisadas depois de cada partida, para que torcedores com comportamento indesejado sejam levados ao juiz. A violência acabou – sem apartheid, sem a reinvenção da roda, sem fórmulas mágicas. Utilizou-se apenas, contra a violência, a velha e boa lei. Simples assim.
De novidade, surgiram as câmeras baratas, que gravam tudo a baixo custo e permitem que os bárbaros sejam identificados. E a imprensa britânica fiscaliza: há muita reportagem na delegacia mostrando como é que torcedores fanáticos sofrem ao não poder acompanhar seus times.
A propósito, não adianta ter torcida única se não há como controlar os torcedores enlouquecidos que marcam brigas fora dos estádios – e usam, para isso, até a Internet. Mas identificar os briguentos, investigar os tumultos, localizar de onde partem as palavras de ordem para os embates, isso é possível. E aplicar a lei, entregando os criminosos à Justiça, sempre com acompanhamento dos meios de comunicação, é também neste caso a melhor solução.
A fabricação de consenso
Um fenômeno preocupante prejudica a difusão de informações: a fabricação de consensos. Funciona de todos os lados:
a) Autoridades interessadas em sufocar economicamente uma empresa ou um empresário, e divulgam a cada instante informações nem sempre atuais, nem sempre idôneas, para denegri-los (e com isso conseguem fechar-lhes a porta de clientes e o acesso ao crédito); repete-se sem parar uma informação no mínimo discutível – por exemplo, um fornecedor de insumos é incessantemente chamado de “empreiteiro”, como se empreiteiro fosse. Por quê? Muitas autoridades acreditam que, nos tribunais, não conseguirão condenar aqueles que consideram culpados, e procuram então matá-los moralmente e economicamente, de maneira a garantir a punição mesmo que não haja condições jurídicas para isso.
b) Grupos políticos interessados em denegrir um adversário usam a mesma tática de repetição de inverdades ou meias-verdades, procurando transformá-las em verdades que acabarão por tornar-se fatos indesmentíveis. Em geral, esses grupos procuram utilizar a grande imprensa, dando-lhe “informações exclusivas” – e cuidadosamente selecionadas.
c) Alguém (de preferência uma organização, que tem profissionais contratados, usa robôs, tem uma estrutura de distribuição) cria uma verdade que não precisa ser verdadeira: digamos, que determinados fatos estão sendo ocultados pelos meios de comunicação. Houve época, por exemplo, em que se acusava a imprensa de não noticiar nada sobre o filho da jornalista Míriam Dutra, reconhecido pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Apenas numa das consultas possíveis ao Google, havia algumas centenas de milhares de menções ao fato. Sem problemas: a máquina de fabricação de consenso, movida por profissionais, militantes e robôs, insistiu durante meses em proclamar que a imprensa ocultava o episódio. O objetivo era duplo: atingir Fernando Henrique, de um lado, e a credibilidade da imprensa, de outro. Pois é preciso atingir a credibilidade da imprensa para tornar mais palatável o projeto de censura – ou, na linguagem cifrada do poder, “regulação econômica dos meios de comunicação”.
Agora, provavelmente incluída neste último item, surgiu outra história da carochinha: a de que noticias favoráveis à Petrobras não apenas não saíram nos meios de comunicação como, apesar disso, foram levadas ao Google e apagadas. Em poucos segundos a brincadeira acabou: as matérias sobre a Petrobras tinham saído em Exame, Folha, UOL, Globo, e estavam indexadas direitinho no Google. Uma repórter perguntou a uma das fontes primárias da notícia falsa quais os links das matérias que teriam desaparecido. Não teve resposta. E ninguém perguntou como é que, se a imprensa ocultava as boas notícias sobre a Petrobras, as notícias eram não só publicadas como estavam no Google.
Mas não importa: a tarefa era lançar o boato. E um dos novos trabalhos do jornalista é verificar se esses fatos são fatos mesmo (pois, afinal, podem ocorrer, por que não?) ou apenas um pretexto para atingir algum objetivo não jornalístico (o que é tão grave quanto).
Na verdade, o fenômeno não é novo: nova é apenas a velocidade de difusão de uma notícia que não é notícia. Mas conta-se que, nos tempos em que José Sarney era um promissor líder de esquerda, ídolo de Glauber Rocha, um magnata da imprensa impunha sua vontade a empresários ameaçando divulgar falsas notícias a respeito de seus produtos, algo como “o comprimido X dá câncer”. Até o empresário provar na Justiça que a informação era falsa, o produto seria varrido do mercado, e não haveria indenização suficientemente volumosa para compensar o prejuízo. Era o mesmo fenômeno, só que mais lento.
A grande recortagem
Este colunista se sente orgulhoso: as restrições que faz à “reportagem investigativa” em que a investigação é feita por autoridades e encaminhada, na medida de suas conveniências, a repórteres que “tiveram acesso aos documentos”, coincidem com a análise de um grande jornalista, Nilson Lage, que soma ampla experiência de trabalho em redação ao estudo acadêmico de comunicação. Lage trabalhou nos principais jornais do Rio e deu aulas em três universidades, duas do Rio –UFF e UFRJ – e uma em Santa Catarina, UFSC. Aposentado, continua sendo uma grande referência jornalística.
Aqui, um texto do jornalista e professor Nilson Lage a respeito da reportagem e seus problemas:
“Não existe mais repórter ‘do jornal’. O que existe agora é repórter ‘da fonte’. Atua em um ramo de publicidade não contabilizado – a ‘publicidade contra’.
“Escolhido, pode ser ou não remunerado pela tarefa; atua com a concordância e o apoio do veículo em que trabalha – e que, este sim, fatura de algum modo.
“Assim é com os vazamentos do Lava Jato. E, agora, com os vazamentos de nomes de investidores brasileiros no HSBC.
“O repórter encarregado de ‘vazar’ esses nomes alinha, um por um, os que interessam à fonte com a qual é ou se faz solidário. Vaza aos poucos por motivos mercadológicos e porque sabe que não há competição.
“A garantia do negócio é a falta do contraditório ou da concorrência. No caso, o interesse transparente da fonte, que coincide com o interesse do veículo, é o mesmo da orquestração midiática em curso: visa pessoas ligadas ao governo nacionalista e a empresas nacionais que se pretende desnacionalizar.
“Os outros nomes não importam ou ‘ficam para depois’.
“Chamam a isso de ‘furo’”.
Ou, acrescendo uma frase à análise de Nilson Lage, pode-se também chamar a isso de “fabricação de consenso”.
Acionista x jornalista
Uma bela briga na França, que seria ótimo debater aqui no Brasil. O Le Monde compartilhou seus arquivos com o grupo de jornalistas do ICIJ que divulgou a lista de clientes do HSBC suíço suspeitíssimos de driblar o Fisco. Dois dos acionistas principais do jornal se irritaram com a parceria entre o Le Monde e o ICIJ, Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos. Há alguns anos, quando o Monde esteve perto de fechar as portas, um grupo de investidores o salvou da falência. Um deles, Pierre Bergé, disse em entrevista a uma rádio que não foi para isso que investiu tanto dinheiro num jornal, e que isso que o Monde considerava independência para ele era apenas alcaguetagem. O Monde reagiu dizendo que não aceita nenhuma intervenção na parte editorial e que o papel dos acionistas é cuidar da empresa, e não de mexer nos critérios jornalísticos.
É briga brava. E aqui, por que não acompanhá-la e promover debates sobre isso?
Aritmética inovadora
Sim, se jornalista gostasse de números provavelmente teria cursado Exatas. Mas não precisa exagerar:
1. Uma grande organização multimídia continua confundindo o PIB, Produto Interno Bruto, com a variação do PIB. E dá o seguinte título:
“Mercado prevê PIB zero e inflação de 7,15% para 2015”
PIB zero não existe nem nos países mais pobres do mundo!
2. De um portal especializado em Tecnologia de Informação:
“Apple e Samsung juntas conseguiram abocanhar 102% dos lucros mobile”
É uma façanha: as duas conseguiram dividir mais do que existia. Como é que sobrou alguma coisa para as concorrentes menores?
Gramática inovadora
Antigamente, no tempo em que os animais falavam (hoje estão espalhados em postos de comando em todo o país), temia-se muito um vício de linguagem chamado cacófato, um encontro de palavras que forma um termo chulo, ou que não tem nada a ver com a frase. Algo como “por cada um”. Hoje, que os meios de comunicação já não seguem nem regência e têm a maior dificuldade de acertar a concordância, cacófato virou regra.
Dois casos numa só edição:
** “Marin critica Gallo (…)”
** “Temática gay”
Tudo bem, perderam o medo do vício de linguagem. Mas é preciso ostentar?
Como…
Da versão eletrônica de um grande jornal:
** “Novas dicas de dieta: amamentação e horta”
Alguém, certamente, saberá explicar do que é que se trata.
…é…
Da versão eletrônica de um grande jornal impresso:
** “Pornografia”
Só que não era.Tratava-se de Ponografia, um tocador digital de música de altíssima fidelidade, desenvolvido por Neil Young. Quem manda ter nome parecido?
…mesmo?
De um grande jornal impresso:
As informações sobre o Netflix devem ser importantíssimas – tanto que a mesma notícia foi publicada, no mesmo dia, em duas páginas de dois cadernos diferentes.
Frases
>> Do internauta Alex Solomon: “Seguindo o raciocínio do ‘mas vocês também’, talvez seja o caso de lutar pelo impeachment de Dilma e de FHC.”
>> Da jornalista Vera Cannux: “A vantagem da honestidade é que a concorrência é pequena.”
>> Da internauta Mary Vic: “Aprendi com as Panicats que anabolizante engrossa a voz. Logo, Anderson Silva só pode ser inocente!”
>> Do jornalista Josias de Souza: “Como distinguir um petista de um tucano? Noutros tempos era fácil. Petista tinha barba. Hoje, até Aécio tem barba.”
>> Do jornalista Palmério Dória: “Chega de intermediários. Sérgio Moro para publisher da Folha, Globo, Estado, Veja e assemelhados.”
>> Do jornalista Cláudio Tognolli: “Tá tanto calor que Lula telefonou para Dilma só pra ser tratado com frieza.”
>> Do jornalista Sandro Vaia: “Calma, pessoal, tudo vai melhorar.O João Santana vai voltar.”
E eu com isso?
Vá à feira. Lá, todos dirão a mesma coisa sobre política e o governo: “Ninguém presta”, “é tudo igual”, “esse país não tem jeito”. Mas comece a bater papo sobre a novela, e a conversa vai longe. Todo mundo tem opinião, palpita sobre o desenvolvimento da trama, conhece cada detalhe dos capítulos já exibidos (e dos próximos, que já foram publicados nas páginas especializadas). Ou seja, para a população, novela é mais importante do que política, com a vantagem de que na novela sua opinião é importante. E pode até ser que tenham mesmo razão.
** “Lavínia Vlasak revela que não gostava de seu cabelo em ‘Rei do Gado’”
** “Miley e Patrick juntos em jantar de gala”
** “De bigodão, Gianecchini faz selfie em cachoeira”
** “Taylor Swift ganha estátua de cera”
** “Pitanga e Braga Nunes gravam Babilônia na praia”
** “Victoria Beckham esbanja elegância ao aterrissar em Nova York”
** “Ex-ginasta Lais Souza revela: ‘sou gay há alguns anos’”
** “Ashlee Simpson e Evan Ross descobrem o sexo do bebê que esperam”
** “Anita conta que adora andar nua em casa”
** “Apesar do frio, Kim Kardashian passeia com roupa decotada por NY”
** “Polliana Aleixo almoça com amigas na Barra da Tijuca”
** “Michel Teló não gosta de ouvir sua música na hora H”
** “Isis Valverde faz exercício para o bumbum em aula de pilates”
** “Lady Gaga confunde Ed Sheeran com garçom no Grammy Awards”
** “Ana Hickmann afirma que é dona de casa”
** “Aryane Steinkopf é abordada por americanas na praia de Miami, nos EUA”
** “Casais terão espaço para ‘rapidinha privê’ em camarote do Carnaval de Salvador”
O grande título
Boa safra: a proximidade do carnaval deve ter estimulado a imaginação do pessoal que faz títulos (e a pressa, já que boa parte da Redação está de folga, contribui bem para apimentar o que sai).
Por falar em pimenta, uma manchete sobre restaurante:
** “Churrascaria em Santo Amaro serve saladas que chegam prontas da cozinha”
Ainda bem: e de onde poderiam vir as saladas servidas aos clientes?
E o grande título também tem a ver com alimentação:
** “Apesar de vender salgados, ex-BBB Mariana perde 16 kg”
Afinal de contas, se ela comesse os salgados, como poderia vendê-los?
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Carlos Brickmann é jornalista, diretor da Brickmann&Associados Comunicação