O programa Roda Viva com a entrevista de Ricardo Setti, exibida na segunda-feira (4/5, ver aqui) foi notável por dois motivos: primeiro, pela participação deste colunista (que, na opinião da família e de alguns amigos incondicionais, enriqueceu o programa); segundo, pela demonstração de que pessoas com pensamentos políticos divergentes podem perfeitamente conversar e debater em alto nível, sem insultos, sem agressões. Augusto Nunes, o apresentador do programa, é demonizado por boa parte dos alucinados da internet, por suas posições abertamente contrárias a ídolos do petismo como Lula e Dilma. Ricardo Kotscho é amigo de Lula há quase 40 anos, foi assessor de imprensa em suas campanhas, foi secretário de Imprensa no seu primeiro mandato presidencial. Ricardo Setti é admirador público de Fernando Henrique Cardoso, foi o editor de suas memórias políticas (A Arte da Política). Fernando Morais, que para ser de esquerda gosta até de Nicolas Maduro, só não foi incluído entre os entrevistadores por estar fora do país.
E foi uma conversa agradabilíssima, cada um com seus pontos de vista, argumentos e memórias. Uma delas: quando foi convidado a exercer a assessoria de imprensa da primeira campanha de seu amigo Lula à Presidência da República, Kotscho trabalhava na sucursal do Jornal do Brasil em São Paulo, dirigida por Ricardo Setti. Consultou-o; e Setti não apenas o estimulou a fazer a experiência como lhe garantiu que, terminada a campanha, sua vaga estaria à disposição. Kotscho fez a campanha, voltou para o JB e, nas palavras de Setti (e de Augusto Nunes, que era um dos editores do JB no Rio), continuou a ser o repórter confiável e crítico que sempre foi. Se Fernando Morais estivesse no Brasil, teria contado no programa que Setti fez a leitura crítica de todos os seus livros.
Discutiu-se jornalismo a sério (e, com base no que se debateu, um grande jornalista, que não participou do programa, decidiu exigir um desconto na assinatura de seu jornal, porque tinha pago por um produto e estava recebendo outro, inferior, sem os serviços de boa parte dos profissionais que o valorizavam). Debateram-se erros jornalísticos sem culpar uzianque, a zelite, os infiltrados, a falta de censura estatal – quer dizer, a falta de regulação oficial dos meios de comunicação, sem citar termos referentes a alimentos, como esquerda caviar e coxinha. Há muito tempo não se via um debate entre pessoas de pensamentos tão diversos que gerasse tanto esclarecimento, que não caísse na troca de insultos.
É possível. E vale a pena insistir no formato de debate entre pessoas bem-informadas, inteligentes e capazes de se expor, de contestar, de argumentar, sem num só instante perder a educação.
Repórter ou gravador?
Um excelente jornalista, Cacalo Kfouri, comenta um dos temas abordados por Ricardo Setti no Roda Viva e cita sua própria experiência: “Aquilo que nosso amigo Setti disse delicadamente sobre matérias declaratórias, meras reproduções das bobagens ditas pelas otoridades, sem nenhuma contestação, passei quase nove anos sugerindo aos chefes da Agência Brasil como forma de economizar dinheiro público: que mandassem um motoboy com um gravador para as entrevistas. O resultado seria o mesmo que o obtido por meio dos repórteres”.
O preço e o produto
Cacalo conta também que entrou em contato com O Estado de S.Paulo, ameaçando demiti-lo se não conseguisse um baita de um desconto na assinatura: não concordava em continuar pagando por algo que é hoje muito menos do que o que era quando o assinou. Acabou conseguindo 35% de desconto. É uma boa ideia: já que os veículos reduziram a quantidade de bons profissionais e a qualidade do produto, o preço que cobravam anteriormente não mais se justifica.
Nos dias de hoje
Com a demissão de excelentes profissionais (que por isso ganhavam mais, e por isso acabaram sendo cortados – é a chamada demissão por competência) estão acontecendo coisas notáveis em nossos meios de comunicação. A famosa definição do jornalismo feita por Joseph Pulitzer, “precisão, precisão, precisão” hoje é ignorada – mesmo por quem já ouviu falar em Pulitzer.
** No meio da epidemia de dengue, a imprensa quase inteira informou que o açafrão pode eliminar as larvas do mosquito da dengue, diluindo-se 15 mg por litro d’água. Besteiraça: o açafrão, obtido com a moagem do pistilo de uma flor, é caríssimo. O bom açafrão custa algo como R$ 70 mil o quilo. O Globo foi a exceção: informou que o que deve ser diluído em água para eliminar as larvas do mosquito é a cúrcuma – que, eventualmente, é também chamada de “açafrão da terra” ou “açafrão da Índia”. É mais ou menos como dizer que alguém é dono de quilos de ouro, quando na verdade se refere à pirita, também conhecida como “ouro de tolo”.
** Morreu o professor José Cretella Jr., jurista famoso, mestre do Direito Administrativo e autor de livros de Latim amplamente utilizados. Pois não é que só depois de quatro dias a imprensa despertou e, provavelmente incitada por pessoas que conheciam a competência de Cretella, publicou seu obituário?
** Num grande jornal, que já caprichou no texto, um cavalheiro apareceu com o “torço” nu.
** Em outro, versão online, “Sem concenso, PSDB adia pedido de impeachment”. Claro: cem o concentimento de Çuas Esselênçias, como ajir?
** Há notícias notáveis. “O ex-deputado federal Cândido Vaccarezza, que dividia casa com quatro galinhas-d’angola e 20 galinhas caipiras, também vai deixar o PT”
Alguém terá a mais remota ideia da relação entre a decisão de Sua Excelência e as galinhas que compartilham sua residência?
Pelé, idas e vindas
No mesmo jornal eletrônico, ligado a um grande grupo de comunicação, saíram as seguintes informações, na mesma edição, como se uma notícia fosse continuação de outra:
** “Pelé é internado em SP; é exame de rotina, diz assessoria”
** “Pelé é operado em São Paulo, mas passa bem e deverá receber alta no sábado”
** “Pelé deverá sair do hospital andando”
Na foto, Pelé bem jovem, e a legenda: “1958. 75 gols”
Deve ter algo a ver com a próstata operada outro dia.
Em suma, aquela figura essencial no jornalismo, o editor, que supervisiona o que é publicado, está fazendo cada vez mais falta. E é preciso pensar no que dá sentido ao jornal: exatamente a edição das notícias, sua hierarquização, sua avaliação. Notícia bruta, sem tratamento, existe às montanhas na internet, e a obtemos de graça, praticamente no momento em que ocorre. Para que pagar e receber exatamente o mesmo material sem qualquer tratamento?
A palavra de quem conhece
O jornalista Claudio Ignatiuk Wanderley trabalhou no Jornal do Brasil, no momento em que tinha grande prestígio. Seu depoimento:
“Lendo em sua coluna o texto relativo à função de editor, hoje extinta na imprensa, lembrei-me da importância que dava o Jornal do Brasil ao trabalho do revisor. Participei da equipe de revisores do jornal entre 1975 e 1979, ano este que experimentou uma grande transformação (dita, modernização) em sua estrutura interna, mas acredito que tenha sido o início da escorregada ladeira abaixo.
“Naquela época, o JB dava banho em O Globo em todos os setores da notícia, do esporte com [João] Saldanha, Sandro Moreyra e [José Inácio] Werneck, passando por colunistas como Castello Branco, José Carlos Oliveira, Carlos Drummond de Andrade, Almirante [Henrique Foréis Domingues], entre outros, e pelas editorias nacional e internacional, com o Caderno Especial de domingo sobre política internacional como carro-chefe, verdadeira aula com matérias traduzidas dos grandes periódicos estrangeiros e análises abalizadas dos melhores especialistas nessa área; sem contar o Caderno B, produzindo cultura em todos os setores, notadamente com matérias de exposições de artes plásticas que aconteciam nos principais centros culturais da Europa.
“Bem, em 1978, se não me engano, tive o privilégio de ser um dos selecionados para compor um grupo de revisores que atuou junto aos redatores-copidesques (aliás, só feras de redação), a fim de evitar que erros de grafia, concordância gramatical e normas de redação fossem corrigidos pós-composição nas oficinas. Então, corrigíamos direto dos originais dos redatores e colunistas de todas as editorias, antes de as matérias serem compostas nas oficinas. Ao setor de revisão (que ficava ao lado da oficina) cabia, em sua maior parte, a função de corrigir as trocas de letras ou pastéis, e o trabalho fluía mais rapidamente até a montagem das páginas e a impressão nas rotativas. Com essa nova atividade, fazíamos parte da função do editor, evitando muitos erros e tirando dúvidas diretamente com os redatores. Na época, foi uma revolução que valeu a pena, pois se reduziu bastante o tempo de produção do jornal, até que fosse parar nas bancas mais cedo que de costume. Todos ganhavam com isso, do redator ao impressor, pois iam mais cedo para casa, além, é claro (mais importante), do leitor, que já recebia de madrugada o jornal fresquinho.
“Depois que acabaram com a revisão, textos não só impressos na mídia, como nos sites de notícias ou de qualquer assunto específico na internet, são publicados sem qualquer critério, de forma ou conteúdo. É uma pobreza só. Basta ler qualquer frase no Facebook para constatar isso. Meu consolo é lembrar daqueles tempos de textos maravilhosos, dos colunistas, redatores e copidesques”.
Os primeiros panelaços
Longos e cansativos debates a respeito do panelaço no casamento dos médicos Roberto Kalil Filho e Cláudia Cozer, que tinham como padrinhos, entre outros, Lula e Dilma. Sem discutir os fundamentos filosóficos, deontológicos, semióticos e dialéticos da questão, é preciso lembrar que é difícil atirar a primeira pedra. Quem protesta hoje contra os panelaços adorava quando o alvo era o governador Sérgio Cabral e os manifestantes protestavam em frente ao prédio em que morava; e não protestou nadinha quando houve manifestações em frente ao Copacabana Palace, no casamento da filha do empresário de ônibus Jacob Barata. Se é um pecado, é comum a várias facções político-partidárias. Se não é pecado, não há o que discutir.
Mas o curioso é que, pesquisando as origens dos panelaços, tentando descobrir quando é que se iniciaram no Brasil, o jornalista Ludenbergue Goes localizou um texto de 1926 de Aparício Torelly, intelectual comunista e um dos maiores humoristas deste país (alguns anos depois, na Revolução de 1930, ele adotaria o pseudônimo de Barão de Itararé, em homenagem à grande batalha que não ocorreu na fronteira do Paraná com São Paulo). Aqui está o poema de Aparício Torelly, uma boa paródia do poema Ouvir Estrelas, de Olavo Bilac:
“Ora! – direis – ouvir panelas! Certo/ ficaste louco… E eu vos direi, no entanto,/ Que muitas vezes paro, boquiaberto,/ para escutá-las, pálido de espanto./ Direis agora: – Meu louco amigo,/ que poderão dizer umas panelas?/ O que é que dizem quando estão contigo/ e que sentido têm as frases delas?/ E direi mais: – Isso quanto ao sentido/ só quem tem fome pode ter ouvido/ Capaz de ouvir e entender panelas”.
Bem-vindo ao inferno
Prepare-se para quinta-feira (14/5): num só evento, o lançamento do livro Bem-vindo ao inferno, em que Cláudio Tognolli narra a caçada a Roger Abdelmassih por uma de suas vítimas, Vana Lopes – que o encontrou seguindo o caminho do dinheiro que o mantinha, criando um perfil falso de homem no Facebook pelo qual se tornou amiga de uma funcionária da casa do médico, e finalmente entregando todos os dados que havia reunido à polícia, que fez a prisão. Às cinco da tarde, o juiz Sérgio Moro – o próprio, também prefaciante do livro – faz palestra sobre a localização de um criminoso pela identificação dos caminhos de seu dinheiro. E, a partir das 18h30, o livro será autografado.
O livro é de Tognolli, o prefácio é de Sérgio Moro, mas as atenções devem voltar-se à cidadã que, corajosamente, dedicou anos à busca do criminoso que tanto prejudicou sua vida, e de tantas outras mulheres: Vana Lopes.
Local: Livraria Cultura, Conjunto Nacional, São Paulo. O livro mereceu chamada de capa da Veja desta semana. E a versão em e-book já está disponível aqui.
Os segredos da Abin
Praticamente ao mesmo tempo, Cláudio Tognolli lança outro livro: desta vez, sobre a Abin, Agência Brasileira de Inteligência, sucessora do Serviço Nacional de Informações, e sua apuração de documentos sigilosos. A data exata ainda não está marcada, mas será no final de maio ou início de junho.
Bom trabalho, doutor
Mais um trabalho de fôlego de um jornalista de sucesso: a tese de doutoramento de Hugo Studart, Em algum lugar das selvas amazônicas: a memória dos guerrilheiros do Araguaia, foi escolhida pelo Departamento de História da Universidade de Brasília como a melhor de 2014, e representará o programa de pós-graduação da UnB no Prêmio Capes, que escolhe as melhores teses do Brasil.
Bom e sem custo
Música de alta qualidade, executada por gente de primeiro time? E de graça? Marque na agenda: o Círculo Macabi (Avenida Angélica, 634, São Paulo) convida para o concerto “Jerusalém eterna – cidade de paz” no domingo, 17, às oito da noite, entrada gratuita. Participam a Orquestra de Cordas Laetare e os corais Canticorum Jubilum e Vox Aeterna, regidos por Muriel Waldman. No programa, Gerusalemme, de Verdi; Le Shaná Habaá, de Shlomo Carlebach; Bashaná Habaá, de Nurit Hirsh; músicas hassídicas, pot-pourri de músicas referentes a Jerusalém, a Hora, de Hanoch Jacoby, Yerushalaim Shel Zahav, de Naomi Shemer, By the Waters of Babylon, baseada no Salmo 137, de Benedetto Marcello. Leve os amigos!
Como…
De uma publicação esportiva on-line, ligada a um grande grupo noticioso, citando uma entrevista com o dirigente atleticano Jorge Kalil:
** “(…) ele negou que tenha tentado acessar o vestiário. Negou, ainda, que não pensa em renunciar à vice-presidência”.
Se ele negou que não pensa, isso quer dizer que pensa?
…é…
De um grande jornal impresso, um dos que mais zelo tiveram com a qualidade de seu texto:
** “Escola do Rio suspende jubilação de estudantes que reprovam duas vezes”
O tempo passa, o tempo voa. Este colunista é da época em que só professores reprovavam. Os estudantes se limitavam a ser reprovados.
…mesmo?
De um dos maiores portais noticiosos do país:
Primeira página: “Suspeito morre em perseguição policial (…)”
Página interna: “Criminoso morre e dois são presos após sequestro relâmpago (…)”
Deve ser um recorde mundial: de suspeito a criminoso em apenas um clique do mouse.
Frases
>> Do tuiteiro Hugo-a-Go-Go: “Ministério da Saúde do Uruguai adverte: o uso prolongado de maconha pode causar excesso de sinceridade.”
>> Do jornalista Ricardo Melo: “Usar o Ministério Público e a Polícia Federal como donos absolutos da verdade equivale a terceirizar o ofício do jornalismo. Mas é o que está em voga nesta fase policial da nossa democracia.”
>> Da jornalista Carla Sehn: “Alguém ouviu a UNE protestar contra o corte de grana pro financiamento estudantil?”
>> Do jornalista Cláudio Humberto: “Com a filiação da senadora Marta Suplicy, o PSB já pode ser chamado de Partido da Sobretaxa Brasileira.”
>> Do jornalista Palmério Dória: “Veredicto de Eduardo Cunha sobre processos e investigações que correm contra ele: ‘O culpado é inocente’.”
E eu com isso?
Esqueça os panelaços: aqui, no noticiário frufru, panela serve apenas para preparar pratos finíssimos (ou recomendados pelas dietas da moda, sem glúten, sem lactose e sem gosto). Casamento de Roberto Kalil Filho e Cláudia Cozer? Vejamos apenas o vestido da noiva, a organização da festa, as opiniões das celebridades presentes. Nada de escândalos: é tudo bonito. Por exemplo, “Val Marchiori apresenta seu novo Porsche”. E mais notícias agradáveis:
** “Priscila Fantin curte passeio com o filho”
** “Brooklyn Beckham cria perfil no Twitter”
** “Fernanda Lima exibe decote generoso”
** “Mariah Carey usa vestido decotadíssimo e novo penteado em show no Caesar Palace”
** “Com vestido ousado, Rita Cadilac vai a festa de TV”
** “Jennifer Lopez usa look provocante para ir ao American Idol”
** “Alessandra Maestrini repete o casaco na festa dos cinco anos do canal Viva!”
** “Marina Ruy Barbosa sorri para fotógrafos na saída do jantar”
** “Babás do filho de Justin Timberlake são gays”
** “Vanessa Lóes faz compras com a filha”
** “‘É um falso ídolo’. Atriz Natalie Portman diz não saber onde está o Oscar de Cisne Negro”
** “Nicole Richie quer que Hilary Duff fique longe do seu marido”
** “Nívea Stelmann curte almoço entre amigos no Rio”
** “Com apenas 11 anos, filha de Gwyneth Paltrow já pega roupas da atriz emprestadas”
** “Ellen Cardoso e Naldo Benny vão com Maria Victória a restaurante”
** “Miley Cyrus fala sobre sua orientação sexual: ‘Não quis ser nada’”
** “Nicole Bahls soube pela Internet que estava solteira”
O grande título
Sempre surgem novas vertentes de manchetes exóticas. Por exemplo,
** “Reality tem filho do cantor Moacyr Franco”
E este colunista sequer sabia que reality show ficava grávido!
Entre os exotismos, grassa uma certa confusão entre o que se diz e o que se queria ter dito:
** “Ronaldo Fenômeno admitiu que o término da relação entre ele e a apresentadora Daniela Cicarelli terminou de maneira conturbada”
O término terminou de maneira conturbada. De que maneira o início se iniciou?
E, entre o exotismo e a confusão, nasce uma grande manchete:
** “Ex-miss se afasta do governo por atrito com secretário”
É estranho: geralmente esse tipo de atrito aproxima, em vez de afastar.
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Carlos Brickmann é jornalista, diretor da Brickmann&Associados Comunicação