A posse do ministro Gilmar Mendes na presidência do Supremo Tribunal Federal, na semana passada (23/4), em Brasília, foi um evento bastante concorrido, que contou com ampla cobertura da imprensa brasileira. Os jornalões destacaram as fotos do encontro de três de ex-presidentes (Fernando Henrique, Fernando Collor e José Sarney) com o atual titular do cargo, Luiz Inácio Lula da Silva. De fato, as fotos ficaram boas, especialmente a publicada na Folha de S.Paulo com a legenda ‘Cada cabeça uma sentença’, em que os três ex-presidentes aparecem lado a lado, curvados e olhando para baixo.
Evidentemente, além de render os habituais mexericos para as colunas sociais e de notinhas políticas, a posse de Gilmar Mendes rendeu também pelo discurso do novo presidente do Supremo Tribunal Federal. O jornal O Estado de S.Paulo, por exemplo, deu um bom destaque para o assunto na edição de quinta-feira (24/4), em matéria assinada por Ruy Nogueira e reproduzida abaixo (os grifos são meus).
Democracia ganhou autonomia
Em discurso, ministro repele ações do MST
‘A democracia brasileira adquiriu autonomia funcional’, mas ‘a agressão aos direitos de terceiros e da comunidade em geral deve ser repelida imediatamente com os instrumentos fornecidos pelo Estado de Direito, sem embaraços, sem tergiversações, sem leniências’. O diagnóstico do estado da democracia brasileira e o remédio para casos como as invasões dos sem-terra são do novo presidente do STF, ministro Gilmar Mendes.
Na opinião do ministro, o País, da Constituição de 88 para cá, já estabeleceu a ‘crença’ de que ‘as vias democráticas de conciliação têm-se mostrado mais lucrativas que o conflito e a ruptura’. Essa avaliação da vida política nacional abriu o discurso de posse de Mendes no comando do Poder Judiciário. Na platéia, os ex-presidentes José Sarney (1985-1990), Fernando Collor de Mello (1990-1992) e Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), os três antecessores do atual presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, que estava sentado ao lado do ministro Mendes.
O presidente do STF lembrou que os últimos 20 anos são o ‘mais longo período democrático’ vivido pelo Brasil republicano. Com Collor e Sarney a poucos metros dele, o ministro acrescentou que a Constituição funcionou porque esse período foi vivido com tranqüilidade institucional, ‘não obstante a inflação descontrolada (no governo Sarney) e os desvarios da desordem econômica por ela causada, e os sérios casos de corrupção no estamento político (governos Collor – impeachment – e Lula – mensalão)’.
Para o ministro, ‘as forças políticas não colocam em xeque as linhas básicas do Estado de Direito, ainda que alguns movimentos sociais de caráter fortemente reivindicatório atuem, às vezes, na fronteira da legalidade’, disse. ‘Nesses casos, é preciso que haja firmeza por parte das autoridades constituídas, (mas) os direitos de reunião e de liberdade de opinião devem ser respeitados e assegurados’, acrescentou.
O novo presidente do STF disse que a ‘independência do Judiciário’, a ‘capacidade regulatória da Constituição’ e ‘o exercício simultâneo e harmonioso do poder por diversos agentes políticos’ explicam o atual ‘equilíbrio institucional’ do País.
Não fossem os trechos em vermelho, a matéria estaria correta. E não é preciso ser especialista para entender o que aconteceu, pois o restante da reportagem revela que Gilmar Mendes falou muita coisa, mas sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra não disse palavra. Quando chegou mais perto disto, Mendes citou ‘movimentos sociais de caráter fortemente reivindicatórios’. Ora, ou Ruy Nogueira, além de competente repórter, agora é também um craque na telepatia e conseguiu captar especificamente a quem o ministro se referia, ou o texto do jornalista foi devidamente editado na redação, em São Paulo.
De fato, é até provável que o novo presidente do Supremo, nomeado para o tribunal por Fernando Henrique Cardoso, realmente reprove a ação e o caráter do MST, em particular, e dos movimentos sociais, de forma geral, no que teria a total concordância da direção do Estadão. Reza o bom jornalismo, porém, que se retrate os fatos e não suposições ou os desejos da direção do jornal. Está incorreto o texto do lide da matéria e ainda mais errado está o subtítulo, que traz a referência explícita ao MST. No fundo, se o Estadão tivesse suprimido as duas referências aos sem-terra a matéria estaria correta e o pensamento de Mendes seria entendido praticamente da mesma maneira.
Ao forçar a mão, quem editou a matéria acabou sendo mais realista que o Rei. Sandro Vaia, ex-diretor de Redação do jornal, escreveu uma vez que o maior problema do Estadão era o ‘Mesquita que está dentro de cada um de nós’. Deve ter sido este o caso na edição da matéria sobre a posse de Gilmar Mendes.