Em memória de Alberto Dines
São caboclos querendo ser ingleses. A frase é do Cazuza, a realidade nossa. Aquilo que o brilhante poeta de letras diretas, apaixonantes e personalidade singular nos disse em inflamadas performances se estende por mais décadas do que talvez o próprio Agenor de Miranda Araújo Neto acreditaria.
Meados de 1980: o militarismo se vai, as eleições diretas chegam, agora o Brasil melhora. Agora teremos menos desigualdades e a “fétida burguesia” não vai mais ditar tudo sozinha. Mais educação, mais saúde, mais emprego… Não foi assim.
Resquícios de uma elite atrasada, dominadora e parasita ainda existem no Brasil. Uma elite oligárquica, herdeira do velho e apático coronelismo da Primeira República, entre 1889 e 1930. Aquela que cultua o estrangeiro e se desfaz do Brasil. São caboclos querendo ser ingleses. No Brasil, o jornalismo e a grande mídia em geral também tem suas raízes fincadas em terras onde o elitismo foi semeado.
De acordo com a Constituição da República Federativa do Brasil, no capítulo V, uma emissora só pode operar com o aval do Poder Executivo, através de uma concessão que é sabatinada pelo Congresso Federal:
Art. 223. Compete ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão, permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, observado o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal.
§ 1º O Congresso Nacional apreciará o ato no prazo do art. 64, §§ 2º e 4º, a contar do recebimento da mensagem.
O artigo diz ainda que esta concessão tem prazos pré-determinados: 10 anos para emissoras de rádio e 15 para as de televisão. Ainda no Capítulo V, o artigo 221 da Constituição diz que para as emissoras produzirem conteúdo elas devem obedecer a alguns critérios, já que a comunicação e o acesso à informação é um direito de todos os cidadãos e depende do espaço aéreo, que é protegido e regulamentado pelo Estado. São eles:
I – preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;
II – promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação;
III – regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei;
IV – respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.
Creio, amigo leitor, que assim como eu, você também se questiona e sem me aprofundar nas inúmeras questões que envolvem o cumprimento daquilo que está determinado na Carta Magna de nosso país, percebemos que o texto está muito distante do que é colocado em prática.
O Brasil fala oficialmente português, idioma nativo de Portugal, obviamente por ter sido colonizado por portugueses e ter tido extrema influência cultural daquele país. Nosso idioma é um misto de português, palavras africanas e indígenas, uma verdadeira mistura que revela o quão multiculturais e multiétnicos nós somos.
O Brasil não tem o inglês como idioma oficial. Do inglês temos palavras absorvidas oriundas do consumo. São multinacionais que vendem seus produtos que possuem termos em inglês e que naturalmente, são agregados ao nosso cotidiano: “play”, “stop”, “ok”, “no break” e por aí adiante. E esta influência no idioma “nacionalizando” palavras da língua inglesa são muito mais por conta dos Estados Unidos do que da Inglaterra, diga-se de passagem.
Nosso primeiro jornal em circulação, o Correio Braziliense era editado e impresso em Londres; o Reino Unido teve participação no processo de independência do Brasil (porque tinha seus próprios interesses nisso, obviamente) e até o fim da escravidão teve a mão inglesa. Tivemos expedicionários, pensadores, padres e desbravadores que por aqui resolveram aparecer e trouxeram um pouco da cultura e infraestrutura. As influências inglesas no Brasil são tão poucas e tão despercebidas no dia-a-dia, que não justificam uma emissora brasileira dar tanto espaço a um casamento real inglês.
Nós não somos como Canadá, a Austrália ou Nova Zelândia que tem a Rainha Elizabeth como líder de Estado, ainda que de maneira diplomática e simbólica. Qual o interesse da Rede Globo em cobrir de maneira tão ampla um casamento real inglês? No sábado, dia 19 de maio de 2018, às 10h48, as 13 primeiras reportagens do site G1 eram sobre o assunto: vestidos usados, chapéus, celebridades que estavam presentes, ex-namoradas do príncipe. Cansativo, não? Pior que isso. Desnecessário e preocupante, afinal, qual a relevância para o público brasileiro assistir ao vivo, em pleno sábado a tarde um casamento tão distante fisicamente e culturalmente?
Historicamente o Brasil tem sim uma tímida ligação com os ingleses. Além do que citado anteriormente, as imigrações no Sul do país ou até mesmo o apreço pelo futebol. Mas não seria suficiente para a emissora mais popular do país, líder em audiência e de investimento em tecnologia, logística, recursos humanos e que mais gasta seu orçamento com jornalismo, transmita ao vivo uma cerimônia de uma família real britânica.
Trata-se de mero entretenimento: ocupar a metade do Jornal Nacional do dia 18 de maio de 2018 com o assunto, transforma o jornalismo em espetáculo, algo que nosso mestre, Alberto Dines, combateu, por entender que o jornalismo tem obrigações com a sociedade.
As empresas de comunicação, muitas vezes não cumprem o que a Constituição diz e usam do jornalismo para isso. Usam de um espaço cedido pelo Estado para promover valores e tendências que não condizem com os anseios do povo brasileiro e muito menos agregam algum tipo de conhecimento relevante. Não faço apologia ao nacionalismo cego, mas, precisando de respostas para questões bem mais importantes.
Temo em cair nas máximas das teorias da conspiração com isso: sinto-me como se estivessem querendo me distrair! Distrair por qual motivo? Com qual finalidade? O que querem nos impor? A sensação que me passam, ao transmitir um casamento real inglês é de futilidade banalizada. E ainda dizem que só o futebol é “pão & circo”. Sigamos como o Mestre Dines: observando e combatendo, usando a escrita como arma.
A burguesia ainda fede.
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Guilherme de Carvalho Lucas é jornalista formado pelo IESB- Brasília.