Eduardo Portella e Lêdo Ivo são dois grandes intelectuais aos quais o Brasil muito deve.
O primeiro, ex-ministro da Educação e ex-presidente da Biblioteca Nacional, é um ensaísta criativo, que formulou aproximações muito pertinentes sobre nossas letras, esclarecendo suas ligações de fogo entre os livros e a realidade brasileira.
O segundo é poeta, narrador e também ensaísta. Os dois são imortais da Academia Brasileira de Letras, polêmica instituição que já elegeu Getúlio Vargas e o general Aurélio de Lyra Tavares, entre outras estranhezas, para compor seu pleno.
Quais as obras literárias de Vargas e do general subscritor do AI-5? Tais máculas são indeléveis pelo próprio caráter da ABL, que confere imortalidade a seus pares. É, prezado leitor, nenhuma força estranha impôs o ditador e o general. Eles foram eleitos por seus pares!
No caso de Eduardo Portella e de Lêdo Ivo, a conversa é outra. Os dois são escritores de verdade. As opiniões sobre a qualidade das respectivas obras podem variar, mas ninguém negará que sejam escritores e, tendo suas respectivas obras reconhecidas, estão na ABL sem injunções de nenhuma outra espécie que não sejam os livros que escreveram.
Claro que outros escritores também poderiam estar na ABL e talvez no lugar deles, mas essas são conjecturas praticadas em terreno marcado por limites frágeis e por fronteiras móveis. De minha parte, acho que Eduardo Portella representa muito bem a ensaística brasileira e que Lêdo Ivo é um de nossos grandes poetas.
Semana passada eles freqüentaram a imprensa, que lhes deu destaques e espaços. Mas que destaque e que espaço?
Uma voz, um rosto
O editor da Topbooks, José Mario Pereira, que acabara de lançar Poesia Completa, de Lêdo Ivo, 1.099 páginas, deve estar com alguma melancolia. A imprensa não deu destaque algum a seu feito. Não sabemos se ainda vai dar, mas por enquanto o que aparece é a briga que o autor travou com o colega na festa de aniversário do presidente da ABL, o escritor Ivan Junqueira.
Talvez possa soar rebarbativo qualificar como escritores os membros da Academia. Mas é imprescindível, pois como nos hospícios, nem todos os que lá estão, são, e nem todos os que são, estão.
São de Lêdo Ivo estes versos:
‘É só vivendo que aprendemos,/ à custa de dores e lágrimas,/ que a vida tem de ser mudada./ Roupa suja lava-se em casa./ Para emendar o que está torto/ basta não ter cera no ouvido/ e escutar, nas filas e feiras:/ ‘vamos, povo, mudar a vida’./ Vamos, povo, mudar a vida,/ que ela merece ser mudada./ Vamos mudar em borboleta/ a pobrezinha da lagarta’. ( do poema É preciso mudar a vida).
Eduardo Portella, entre tantos ensaios, tem um de que gosto muito, apresentado na 2ª Bienal Nestlé de Literatura, em 1984, e publicado na revista Tempo Brasileiro (número 150, julho-setembro de 2002). Seu tema é um gênero muito praticado no Brasil e presente diariamente na imprensa – a crônica. Diz ele lá pelas tantas, comentando a modernidade fragmentária:
‘A modernidade secular, descrente e insegura, viu-se obrigada a deixar de lado – não raro nostalgicamente – a ilusão da cidade solar, a uma só vez luminosa e plena. A opacidade, os pedaços, os restos, começaram a recortar, enfaticamente, os seus contornos. A essa dispersão teria de corresponder uma voz, quando não um rosto. A crônica veio a ser a construção citadina que realizou desinibidamente a fragmentariedade da vida moderna’.
Ler os dois
Mas na semana que passou, o ensaio e a poesia apareceram na imprensa por ínvios caminhos. A título de exemplo, veja-se a Veja desta semana (nº 1880, 17/11/2004, pág. 146), seção ‘Gente’. Lá estão Eduardo Portella e Lêdo Ivo sorridentes – os editores souberam escolher bem as fotos, vale um belo ensaio a ilustração da pequena notinha – com as respectivas fotos assim legendadas: ‘Ivo, o poeta, e Portella, o cabeludo: mais um round na contenda’.
A cor vermelha aparece na camisa do poeta e na gravata do ensaísta. A legenda é maldosa. Se a principal qualificação de Portella é a cabeleira, a de Ivo, por analogia, não poderia ser a de poeta.
Que pena! A maior revista brasileira ignorou o esforço editorial da Topbooks, que lançou a poesia completa de Lêdo Ivo. O poeta, oito anos mais velho do que seu desafeto, tem 80 anos, 64 de poesia, pois estreou em 1940. O prefácio é de Ivan Junqueira e é intitulado ‘Quem tem medo de Lêdo Ivo?’ Não é que não devesse ter dado a nota da briga – afinal a vida literária tem desses dissabores e o leitor precisa saber dos bastidores para melhor entender o contexto de autores e livros –, mas por que não aproveitou a ocasião, sumamente pertinente, e não convidou dois intelectuais isentos para escrever sobre a obra de cada um dos contendores? Os leitores ganhariam mais.
O prefaciador conclui assim o seu estudo introdutório:
‘Quem tem medo de Lêdo Ivo somente o tem por temer a poesia, uma poesia que desceu às raízes do ser e ao horror da existência. Mas o horror, como nos ensina Eliot, nada mais é do que um passo rumo à glória. Não há por que temê-lo, leitor, mas antes reverenciá-lo no limiar de sua eternidade’.
Horror, mesmo, ‘divertido horror’, como diria Nelson Rodrigues, é o que às vezes vemos, pelas frestas de festas e eventos, em nossa vida literária. O povo tem mais respeito e é mais autêntico. Em poucos botecos teria acontecido o que foi relatado. Nos botecos, briga é briga, não é farsa, não.
Ainda bem que os imortais não puxaram as espadas. Pareceu rinha em que a Bahia enfrentou Alagoas. Nós, os leitores, fiquemos com a obra de cada um. Vale a pena ler os dois, o poeta e o ensaísta, e saímos de seus livros ganhando muito e não como agora nessa tal briga, em que todos perdem.