Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A história eu conto como a história foi

Manhã do dia 13 de dezembro de 1968. Os primeiros jornalistas do Jornal da Tarde chegam à Redação e são surpreendidos com uma notícia inacreditável: o Estadão, o invulnerável Estadão, o poderoso diário O Estado de S.Paulo, tinha sido proibido de circular por ordem da Polícia Federal. Indignação: só dois policiais tinham ido às oficinas e, embora em absoluta inferioridade numérica, haviam sido obedecidos.

Lembremos o clima da época: ao contrário das lendas hoje circulantes, a ditadura começou mesmo, com força, com o Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968. Até então houvera atos violentos, mas esporádicos; houvera tortura, mas não ainda como prática sistemática; houvera atos bárbaros, como a prisão do líder comunista Gregório Bezerra; houvera prisões, mas nada como o que ocorreria mais tarde. Ainda havia espaço para manifestações políticas. O que caracterizava aquilo que, na época, se chamava ‘ditamole’, era a impossibilidade de escolher o presidente da República e os governadores. Quem escolhia eram os militares e seus aliados – e pronto.

Quando o Jornal da Tarde, já no meio da manhã, começou a sair das rotativas, apareceram outros dois policiais federais e informaram que a distribuição estava proibida. Vários jornalistas desceram à rua para conversar com eles: este colunista, Ewaldo Dantas Ferreira, Guilherme Miranda, Décio Pedroso, Fernando Morais, Rolf Kuntz, Fernando Portela, Mário Lima, Anélio Barreto, Sandro Vaia, Moisés Rabinovici, o hoje ministro Miguel Jorge, muitos colegas – como lembrar todos? O diálogo foi inútil. Em dado momento, um jornalista se irritou: ‘Quantos de vocês estão aqui?’ A resposta: ‘Nós dois’. Tréplica: ‘Então saiam da frente que os caminhões vão sair. Quando chegar mais gente vocês façam o que quiserem’.

O JT começou a circular. Algum companheiro, mais esperto (nunca soube quem foi), articulou a manobra seguinte: reativar a saída da madrugada, que era usada pelo Estadão, dobrando a esquina, em que os caminhões paravam e os fardos de jornais já caíam na caçamba. Quando chegaram os reforços da Polícia Federal para interditar o jornal, foi só mudar a saída. Passava gente pela rua e, vendo a aglomeração, queria saber o que estava acontecendo. A gente informava: estão proibindo o jornal de circular. As pessoas não acreditavam: ‘Como, se está saindo do outro lado?’ Aí o transeunte era chamado de lado e ficava sabendo da história. Todos saíam rindo.

Enfim, não podia durar muito. A Polícia Federal acabou descobrindo o truque e mandou dezenas de carros de banca em banca, para apreender o que já tinha sido distribuído. Os jornaleiros acharam jeito de esconder alguns exemplares para os clientes fiéis. Essa meia-vitória que foi uma meia-derrota foi o último ato de liberdade de imprensa em muitos anos. Ela só voltaria, no caso da S/A O Estado de S. Paulo, no dia do centenário da empresa, em 4 de janeiro de 1975.

Foi um movimento espontâneo de jornalistas, sem nada combinado, sem chefia, sem consulta ao comando da empresa. Talvez por isso, o caro colega pode procurar o registro desse fato em qualquer história do período. Como não houve envolvimento patronal, o registro simplesmente não existe.



Plágio

O título da coluna lhe parece familiar? É: foi praticamente copiado do livro de Paulo Cavalcanti, O caso eu conto como o caso foi (Editora Guararapes, 1980). Para que forçar a cabeça quando um título tão bom já foi criado?



Destino

Fernando Portela, jornalista de boa memória, lembra que Fernando Morais, preso outro dia no aeroporto de Madri por ter sido confundido com um traficante português, é reincidente. Há alguns anos, foi fazer uma reportagem no interior do Maranhão, acompanhado pelo fotógrafo Alfredo Rizzuti, e os dois acabaram presos pelo Exército, acusados de terroristas. Mais tarde, soube-se o motivo: os militares achavam que eram guerrilheiros do Araguaia tentando ampliar o movimento – do qual não havia ainda notícia no resto do país.

Cá entre nós, dava mesmo para desconfiar: o hoje nédio Fernando Morais, a prosperidade estampada na barba bem feita e nas boas roupas que certamente é sua mulher que escolhe, na época era um pouco diferente. Usava cabelo comprido, aquela barba de mineiro, ralinha!, e roupa cáqui. Quando viram que era só o jeitão, soltaram. ‘Ser confundido com outro e preso deve ser carma dele’, explica Portela.



O horror, o horror

Adib Muanis, o excelente chefe de reportagem da TV-TEM de Rio Preto, SP, manda um bilhete que precisa ser transcrito:

‘Escrevo porque estou em dúvida: o mau gosto venceu? A estupidez venceu? Perdemos a noção do ridículo, do mórbido? Optamos pelo mundo cão?

‘Estas perguntas têm por base a seguinte proposta feita por um portal da Internet – um portal de notícias:

‘Retrospectiva. Morte de Isabella ou Seqüestro de Eloá. Vote no crime do ano.’

‘Como assim? Vamos eleger o Crime do Ano usando quais critérios? Vamos ver o que é mais cruel: manter uma moça seqüestrada por cem horas e depois atirar contra ela? Ou atirar uma menina de cinco anos pela janela?

‘Francamente…’

Muanis, no meio do furacão que é dirigir a reportagem de uma emissora de TV, mantém a lucidez, a dignidade, a capacidade de pensar. Talvez os pouca-práticas que bolaram o concurso não tenham pensado no que fizeram. Mas há editores; os portais têm direção, têm superintendência, têm donos. E ninguém se mexe? Repetindo o que disse Adib Muanis, francamente…



O seu, o meu, o nosso

A imprensa deixou passar praticamente em branco (com exceção de um ou outro blog, que tratou do assunto de maneira rápida) uma história que mereceria ser bem contada: o patrocínio da Eletrobrás, R$ 14 milhões anuais, ao Clube de Regatas Vasco da Gama, do Rio. Há dois motivos para discutir o assunto:

1. O Flamengo, que esteve entre os clubes que disputaram o título de campeão brasileiro, recebe apenas um pouco mais de sua patrocinadora, a Petrobras: R$ 16 milhões. O Vasco, com grande tradição e torcida, acaba de ser rebaixado.

2. A Petrobras, que patrocina o Flamengo, disputa o mercado de combustíveis e lubrificantes com grandes empresas nacionais e multinacionais há muitos anos na praça, como Shell, Ipiranga, Esso. Precisa, portanto, anunciar. A Eletrobrás não disputa mercado. Quem vende energia são empresas a ela subordinadas, mas que não utilizam sua marca. A Eletrobrás não tem qualquer motivo para anunciar seu produto – aliás, que produto? E com o seu, o meu, o nosso dinheiro?

É um bom tema. O ministro das Minas e Energia, Edison Lobão, que cuida de Petrobras e Eletrobrás, poderia explicar por que o Flamengo, que disputou o título e tem torcida maior, ganha só um pouquinho mais do que o rebaixado Vasco.



As manias

Houve época, nos meios de comunicação, em que a palavra ‘vender’ foi abolida: o termo era ‘comercializar’. E ninguém punha preço nas coisas, nem cobrava: ele ‘praticava’ preços, ‘praticava’ juros. Houve época, também, em que repetir palavras era crime inafiançável. Tombava um caminhão de bananas e ‘as musáceas’ ficavam espalhadas pela rua. Café era ‘rubiácea’. Soja, ‘leguminosa’. E amendoim, ‘papilionácea’. Jogo duro, companheiros.

Hoje a palavra proibida, lembra a ótima jornalista Regina Helena Teixeira Alonso, é ‘fazer’. As pessoas não fazem mais nada: só realizam. ‘Os estudantes vão realizar a prova no domingo’. Fazer a prova, jamais. O técnico ‘vai realizar o treino pela manhã’. ‘As pessoas estão realizando as compras de Natal’. Fazer compras? Que coisa mais antiquada!

É como ‘tomar medidas’, também fora de moda. Em todos os meios de comunicação, as medidas são ‘implementadas’ – desde que, naturalmente, o governo ‘disponibilize’ recursos. O publicitário Ricardo Freire, que escreve colunas deliciosas, jura que não aceita nada que lhe seja ‘disponibilizado’. Tem razão. E, se a empresa ‘vai estar disponibilizando’, então fuja depressa!



Como…

Título de um grande portal noticioso:

** ‘Incêndio em prédio no Maracanã faz duas vítimas’

Texto: ‘(…) o acidente teria acontecido no segundo andar, matando duas pessoas: uma mulher e seu sogro (…) nenhuma pessoa ficou ferida gravemente’.

Tudo bem: quem morreu, morreu. Quem não morreu, ficou ferido levemente.



…é…

Também de um grande portal noticioso:

** ‘Ator holandês morre após recorrer à eutanásia’

Eutanásia, ou ‘boa morte’, é a abreviação da vida de quem está sofrendo. As pessoas que recorrem à eutanásia costumam mesmo vir a falecer.



…mesmo?

A informação é de uma grande revista econômica internacional, que já teve até edição no Brasil:

** ‘Suri Cruise é a criança mais influente do mundo’

Suri é filha de Tom Cruise e Katie Holmes. Sua idade: dois anos.

Mas essas coisas podem acontecer. Há alguns anos, conta-se, o governador de um importante estado brasileiro era totalmente dominado pela esposa. A esposa, por sua vez, fazia tudo o que seu decorador mandava. O decorador tinha um namorado, a quem deu casa, carro, dinheiro e carinho, conhecido pelo carinhoso apelido de Gasolina.

E Gasolina, analfabeto de pai e mãe, em última análise era quem mandava no estado. Por que não uma menina de dois anos, que também deve ser analfabeta?



E eu com isso?

Um jornalista de longa carreira e profundamente especializado, Ethevaldo Siqueira, nos traz continuamente as últimas novidades em telecomunicações. Equipes de técnicos competentes e dedicados mantêm os computadores das redações funcionando corretamente. Os provedores investem, a banda larga fica a cada dia mais rápida (se bem que ainda oscilante e caríssima), especialistas definem as ondas em que opera cada tipo de equipamento e procuram regulamentar a convergência tecnológica, em que os clientes podem telefonar pelo computador, assistir a programas de TV pelo telefone, mandar e-mails por aparelhos de videogame – fantástico.

É graças a isso que temos notícias como essas no momento em que ocorrem – na linguagem de hoje, online, em real time:

** ‘Hernanes vai a prêmio de chapéu’

** ‘Nicole Kidman se exercita em Londres’

** ‘Kate Moss vai às compras carregando bichinho de pelúcia’

** ‘Nome do filho de Ashlee Simpson é eleito o mais feio’

Este colunista se lembra do grande Capitão, volante eficiente, bom marcador, que jogou até avançada idade na Portuguesa de Desportos. Capitão se chama ‘Oliúde’. E seu filho, ‘Oliúde Jr.’ Será que o filho de Ashlee Simpson é páreo?



O grande título

Para este colunista, o melhor título é o de Clara Ant, uma das principais auxiliares do presidente Lula. Como a burocracia odeia coisas simples, Clara Ant (ela própria uma pessoa descomplicada, sem frescuras) é ‘chefe do Gabinete-Adjunto de Informações em Apoio à Decisão do Gabinete Pessoal do Presidente da República’.

Mas o espírito da busca do grande título é outro. E há um imbatível:

** ‘Polícia suspeito de `roubar o próprio carro´’

Deve ser coisa importante. Se a gente entender, então, melhora muito!

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Jornalista, diretor da Brickmann&Associados