Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

A hora de discutir o imposto que se foi

Pela primeira vez em mais de dez anos, estamos livres da CPMF, o imposto do cheque, que durante sua vigência transferiu uns 200 bilhões de reais do nosso bolso para o governo. Livrar-se da CPMF foi uma batalha; e, exatamente por isso, não houve discussão construtiva sobre os impostos no Brasil. A imprensa narrou cada lance, cada cooptação, cada troca de insultos. Houve espaço para tudo, menos para um debate esclarecedor. Talvez seja a hora de iniciá-lo.

Por que não pensar no imposto do cheque como imposto (quase) único, como propôs, de sua tribuna na Folha de S.Paulo, o professor Marcos Cintra, da Fundação Getúlio Vargas? Seria o imposto destinado a arrecadar o dinheiro necessário ao funcionamento da União, Estados e Municípios. Outros poucos impostos – exportação, importação, produtos cujo consumo deve ser desestimulado – teriam função regulatória. Cigarros, por exemplo, ou bebidas alcoólicas, merecem um imposto especial para encarecê-los (ao contrário do que ocorre hoje, em que o consumo de cigarros é subsidiado).

Acabaria o imposto de renda, acabariam os inúmeros impostos, taxas e contribuições que infernizam pessoas físicas e jurídicas. O contador voltaria à sua função original de analisar o desempenho da empresa, em vez de passar o dia lendo novas portarias e calculando os impostos de seus clientes. E a Receita Federal, celeiro de gente preparada e competente, poderia distribuir boa parte de sua equipe pela área administrativa do governo, ajudando a modernizá-la e dinamizá-la.

Este colunista entende de impostos tanto quanto de física quântica. Mas gostaria de um imposto automático, sem declaração, sem perda de tempo. Os especialistas que definam alíquota, forma de cobrança, efeito sobre a renda. E a imprensa que abra espaço para debater o tema, sem insultos, contribuindo para a criação de um sistema tributário mais justo e menos chato. Há jornalistas que entendem muito de economia e conhecem fontes de todas as tendências, e podem tocar o debate em frente. É pedir muito?



Fumaça nos olhos

Há alguns anos, o cigarro pagava algo como 49% de IPI, imposto sobre produtos industrializados. Num daqueles períodos de relaxamento da vigilância da imprensa, entre o Natal e o Ano Novo, o presidente Fernando Henrique mudou tudo: o maço de cigarro passou a pagar IPI fixo, hoje de 0,619 centavos, seja qual for seu preço. Um maço de 5 reais paga pouco mais de 12% de IPI, em vez dos 49%, que já eram insuficientes para inibir o consumo. De acordo com estudos da Trevisan, o Tesouro já perdeu 12 bilhões de reais com essa mudança. A Organização Mundial da Saúde recomenda mais impostos, e não menos, sobre o cigarro.

Caros colegas, aqui está a pauta. Se alguém quiser o estudo, esse colunista terá prazer em oferecer-lhe uma cópia. O que a imprensa não pode é ficar silenciosa enquanto 12 bilhões de reais são transferidos do Tesouro para empresas privadas.



Bola dentro

Os repórter Eduardo Reina e Emilio Sant’Anna, do Estado de S.Paulo, foram fundo na história do incêndio do Hospital das Clínicas, em São Paulo: dos 16,9 milhões de reais reservados para manutenção e reequipamento do HC, só 3 milhões de reais tinham sido empenhados até 18 de dezembro. O secretário da Saúde garante que, no finzinho do ano, aplicaria o resto. Exato: aquilo que não foi aplicado em 352 dias seria gasto nos 13 dias restantes. O secretário disse isso!

A reportagem é impecável: não faz juízos de valor, não usa adjetivos, só narra fatos. E deixa absolutamente clara a causa do incêndio no Hospital das Clínicas.



Quem é quem

Para o governo estadual paulista, o pior de tudo é não poder jogar a culpa nos antecessores. A imprensa tem esquecido esse tema, mas o fato é que o governador José Serra entrou no lugar de Geraldo Alckmin, que entrou no lugar de Mário Covas, todos companheiros de PSDB. E, em certo sentido, não se pode sequer falar em apenas 13 anos de governo tucano: desde a gestão de Franco Montoro, iniciada em 1983, é o mesmo grupo político que ocupa o Palácio Bandeirantes. Alguns romperam com outros, mas em certo momento estiveram todos juntos. Serra foi secretário de Montoro, e Orestes Quércia, o vice, foi o governador seguinte; Luiz Antônio Fleury Filho era secretário de Quércia e seu vice, Aloysio Nunes Ferreira, é o homem-forte do secretariado de Serra. No total, são 25 anos. Ninguém pode falar de herança maldita.

Já os meios de comunicação preferem nem tocar nesse assunto.



O horror, o horror

A decisão da Justiça italiana, de emitir 140 mandados de prisão contra torturadores e assassinos latino-americanos (entre os quais há vários brasileiros), dificilmente terá efeitos práticos: muitos crimes já prescreveram, há a Lei de Anistia, vários dos acusados já morreram. Se algum dos acusados viajar para fora do Brasil, pode ser preso e enviado à Itália; mas este pessoal já está velho, dificilmente terá disposição para ir ao exterior, ainda mais sabendo dos riscos.

Mas, mesmo que não haja efeitos práticos, vale a pena discutir pelos meios de comunicação o que aconteceu no Brasil no período da Guerra Suja. É preciso que os fatos se tornem de conhecimento público. Há livros, como o impecável Autópsia do Medo, de Percival de Souza, que narram acontecimentos de arrepiar. Mas o conhecimento dos fatos não deve ficar restrito aos leitores de livros. É preciso difundi-los ao máximo, até para que nos mantenhamos em alerta, até para que não se repitam.

O Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul, com excelente trabalho, pesquisa permanentemente o assunto. Gente que torturou e gente que foi torturada está viva, em condições de falar. E isso, a propósito, não vale apenas para a repressão: barbaridades cometidas por grupos armados também merecem a atenção da imprensa.



À frente do tempo

Vale a pena ler a entrevista do empresário Henry Maksoud a Guilherme Barros, da Folha de S.Paulo, na edição da véspera de Natal. Maksoud tem múltiplas facetas: é fulgurantemente inteligente, é teimoso, é obcecado, é dono da verdade, é estudioso, sabe aproveitar as oportunidades para ganhar dinheiro, soube desistir de boa parte de seu patrimônio para lutar pelas idéias em que acredita. Há quem diga que a diferença entre ele e Deus é que Deus nunca pensou que era Henry Maksoud. Pode ser um chato (como o era, naquele programa Henry Maksoud e Você, pela Rede Bandeirantes); pode ser agradabilíssimo. E, com frequência, diz coisas interessantes, como nesta entrevista [para assinantes].

Um detalhe: Maksoud foi pioneiro na luta contra as empresas estatais, na defesa da privatização, no combate aos excessos do governo (que, na época, era um governo militar). Antiesquerdista convicto, teve papel importante quando o então comunista Rodolfo Konder teve de fugir do país. Mantinha uma relação tempestuosa com os funcionários de suas empresas, especialmente a revista Visão, mas não mandou embora nenhum de seus adversários ideológicos (que acabaram saindo, mas sempre por iniciativa própria, com convites de outras publicações).

Até quando perdeu dinheiro Maksoud esteve à frente de seu tempo. Lançou um serviço, Telenotícias, de informações econômicas em tempo real, transmitidas por telex. Não deu certo por dois motivos: os empresários brasileiros ainda não estavam convencidos de que precisariam ter notícias em cima da hora, e a falta de linhas telefônicas manteve o equipamento longe de muitas empresas. Faltava privatizar a telefonia, mas isso viria muitos anos depois.



Atenção, atenção

Erros online não são aceitáveis, mas são mais fáceis de explicar: é tudo feito em alta velocidade, o texto é mexido rapidamente e jogado na tela, e muitas vezes as mudanças no substantivo não são acompanhadas pelo adjetivo. Mas, num grande jornal, é duro. E ‘coalização’, para falar da aliança liderada pelos americanos que ocupa o Iraque, é ruim demais.

Uma outra notícia, em veículo importante, fala do ‘tráfico intenso’. Sim, existe tráfico, e é extremamente intenso. Só que a matéria se referia ao trânsito nas vésperas do Natal. Alguém ditou ‘tráfego intenso’ e o redator comeu bola.

E o noticiário esportivo, então? Veja que delícia: ‘Kaká arrenbenta o pobre Boca’. Talvez seja algum problema de computador fanho: foi também no noticiário esportivo que um cidadão foi chamado de ‘endiondo’.

E, num grande jornal, houve a notícia de um determinado produto cujo preço caiu 400%. Alguém poderia fazer a conta e ver qual o preço final do produto?



Como é…

Toda a imprensa registrou o caso mas deixou a frase histórica passar em branco. No depoimento de um parlamentar, a juíza o enquadrou com a seguinte frase: ‘Fique calado e responda às perguntas’. Como poderia ele cumprir simultaneamente as duas ordens?



… mesmo?

Frase de um portal da internet:

** ‘Descolados comemoram aniversário juntos no hotel Fasano do Rio’.

Juntos ou descolados?



E eu com isso?

Pense bem, caro colega: existem profissionais como nós que estão de plantão, trabalhando longe da família, sonhando com os banquetes de que participaram, agora submetidos à Lei de Lavoisier e transformados em almoços. E para quê? Para que o público não seja privado de notícias absolutamente essenciais, razão de ser do jornalismo:

1. ‘Keanu Reeves passeia com afilhada em Los Angeles’

2. ‘Hugh Jackman passeia a bordo de Kombi na Austrália’

E, se você pensou que a história de Keanu Reeves esconde alguma malícia, daquela do tipo ‘Fulano fotografado com sobrinho’, esqueça: é afilhada, mesmo.



O grande título

Este é imbatível:

** ‘Americano é acusado a 170 anos de prisão por abusar de adolescentes’

Este colunista nunca tinha ouvido falar de alguém ser acusado à prisão.

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Jornalista, diretor da Brickmann&Associados