Faz muitos, muitos anos, no tempo em que as máquinas fotográficas tinham filme e o papel-carbono era essencial para quem queria uma cópia do texto. Num domingo, o trânsito em São Paulo estava muito mais terrível do que de costume. Por que? O chefe de reportagem sabia: o SBT tinha trazido da Disneyworld a Easter Parade, a Parada de Páscoa, com Mickey, Pateta, o Pato Donald, Pluto. A marcha era conduzida pelos astros da emissora, Sílvio Santos, Hebe Camargo, Gugu, Carlos Alberto de Nóbrega. As avenidas estavam cheias de gente desde o aeroporto de Congonhas, na Zona Sul da cidade, até o SBT, na Zona Norte.
O chefe de reportagem sabia do que se tratava – mas não tinha mandado fazer matéria, nem antes, prevendo no mínimo o caos no trânsito, nem depois, apesar do sucesso da Easter Parade. SBT, entende, não era coisa chique, entende? Leitor de jornal, sabe, não dá bola para Sílvio Santos, entende?
O público consumidor de notícias não entendeu, não. Houve uma avalanche de cartas à Redação, protestando contra as poucas notícias que foi possível apurar depois do fim do acontecimento.
E daí? Daí que há dez anos tivemos um apagão, atribuído a um certo raio que atingiu Bauru, no interior de São Paulo, num dia quente, seco e sem nuvens. Dez anos depois, temos outro apagão, agora motivado por certos raios que atingiram Itaberá, também no interior de São Paulo, também num dia em que nem choveu na cidade (na qual, a propósito, também não houve apagão). Os meios de comunicação, como no caso da Easter Parade, até sabiam que havia coisas erradas, porque especialistas importantes – entre eles alguns tradicionalmente ligados ao PT e ao presidente Lula, como Ildo Sauer – diziam que os problemas estavam em marcha; mas, como no caso da Easter Parade, não iam cobrir um tema assim chato.
Na hora em que o país parou, na hora em que os eletrodomésticos de seus consumidores de informação correram risco de queimar, aí sim correram para descobrir o que havia.
Havia, por exemplo, um terrível aperto nas verbas do Ministério de Minas e Energia e da Aneel, Agência Nacional de Energia Elétrica. Esse aperto vinha desde a substituição de Dilma Rousseff na pasta (pelo jeito, era seu prestígio com o presidente Lula que garantia a manutenção das verbas), e não havia segredo: tudo estava lá, naqueles demonstrativos de contas públicas que o site Contas Abertas costuma pesquisar. Há problemas de gestão: embora os meios de comunicação tenham divulgado o festival de nomeações da família Sarney nas Minas e Energia, ninguém foi atrás dos nomeados para saber como estavam dando conta do serviço. Parece que não estavam: boa parte das críticas ao apagão se refere à descoordenação entre os diversos setores do ministério.
E os estados? Descobriu-se, por exemplo, que São Paulo não tem até hoje um serviço centralizado para enfrentar crises desse tipo. Não houve sequer quem determinasse a circulação extra de ônibus para atender aos passageiros do metrô que, sem eletricidade, acabaram ficando na rua.
A imprensa, para mal dos pecados, parece ter aderido ao clima de final de campeonato. Se o jornal é contra Lula, a culpa do apagão é inteiramente dele; e problemas em São Paulo, cujo governador deve ser o candidato de oposição à presidência da República, não existiram. Se o jornal é a favor de Lula, o apagão foi apaguinho, o de Fernando Henrique foi maior. Foi, nas imortais palavras de Tarso Genro, um ‘microincidente’. E São Paulo, sim, é que não soube garantir o abastecimento de água mesmo sem energia elétrica para bombeá-la.
Os meios de comunicação devem ter posição; isso é bom. Mas não devem permitir que sua posição atropele os fatos. Se os jornais se limitam a transcrever argumentos da situação e/ou da oposição, por que gastar dinheiro para comprá-los?
O tom da guerra
Do jeito que a coisa vai, se um tucano e um petista disputarem uma corrida e o tucano vencer, a imprensa situacionista noticiará que o petista chegou em segundo e o tucano em penúltimo. E, se o presidente Lula caminhar sobre as águas, a imprensa oposicionista dirá que Lula não sabe nadar.
As pernas à mostra
O caso Uniban, em que uma jovem foi perseguida e insultada por colegas que não gostaram de suas roupas (que, aliás, nem eram assim tão ousadas), também mereceu cobertura superficial dos meios de comunicação. Debateram-se os assuntos mais visíveis: a barbárie de pessoas que deveriam ter um mínimo de sofisticação, já que são estudantes universitários, a omissão e o vai-vem de providências da escola, insinuações a respeito de adolescentes que não gostam de mulher de pernas de fora e algumas cartas, não muitas, exigindo mais modéstia no trajar e elogiando a universidade por lutar pela moralidade.
Acontece que esta é uma discussão bem mais ampla, que vem sendo travada no mundo inteiro. A França, por exemplo, proibiu o uso de símbolos religiosos nas salas de aula – símbolos que vão de um broche em forma de crucifixo até as roupas exigidas pelos fundamentalistas muçulmanos (que, na verdade, são o verdadeiro alvo das restrições). É uma violação da liberdade individual? Na opinião deste colunista, é: cada um deve ter o direito de vestir-se como quiser. Nos Estados Unidos, cada um se veste como quer – até mesmo rapazes que vão às aulas com roupas femininas, seios postiços e salto alto. Vontade de aparecer? Talvez, embora nem sempre – mas, e daí? Se alguém se sente bem de salto alto, por que impedi-lo de vestir-se como gosta? Se um rapaz acha que depilar as pernas é legal, cera quente nele. O importante é que aprenda o que a escola tem a ensinar.
Perdeu-se, enfim, a oportunidade de debater um tema importantíssimo: a tolerância – que, por definição, é a tolerância com quem é diferente. E de fazer reportagens pelo mundo mostrando como é que funciona a questão do traje escolar, a questão da tolerância, a questão da diversidade cultural e religiosa. Se o cacique Raoni foi mundialmente aceito com aquele imenso beição, por que uma jovem não pode se vestir de acordo com a moda, a cultura de sua etnia, do jeito que gosta?
Viagens de sonho
Pegue qualquer jornal e faça o teste: não há sequer um destino turístico que não seja maravilhoso. As restrições são mínimas: em países onde os hábitos alimentares sejam muito diferentes dos nossos, há indicações de locais onde a comida seja mais próxima daquela a que estamos acostumados.
Naturalmente, todas as viagens são boas porque nenhum meio de comunicação gasta dinheiro com sua editoria de Turismo. Os repórteres e fotógrafos sempre viajam a convite (e, portanto, não ficaria bem falar mal de quem pagou a conta). Como viajaram a convite, certamente serão levados aos melhores lugares, terão tratamento VIP, diferente do dispensado ao turista comum. Os guias serão sempre simpáticos, pacientes, profundos conhecedores dos lugares a visitar.
Traduzindo: aquilo que nas outras editorias daria demissão, na área de passeios e viagens é regra – e regra ruim – imposta pelas empresas.
Má notícia
Um dos jornais mais antigos do país, o Monitor Campista, de Campos (RJ), deixou de circular no domingo (15/11), aos 175 anos (mais antigos que ele só o Diário de Pernambuco e o Jornal do Commercio, ambos com sede no Recife, PE). O Monitor Campista pertencia ao grupo dos Diários Associados, cujos principais jornais no país são o Correio Braziliense, o Estado de Minas e o Jornal do Commercio, do Rio. O Monitor Campista foi o primeiro jornal do país impresso em máquina elétrica.
Há forte mobilização em Campos para reverter o fechamento do jornal. Mas a direção dos Associados até agora não respondeu aos pedidos.
Liberdade tem limite
O Tribunal de Justiça do Rio manteve a decisão que proíbe a Rede TV! de fazer qualquer referência à filha de Xuxa, Sasha, de 11 anos. Sasha, há alguns meses, escreveu uma palavra no twitter com grafia incorreta, e por isso se transformou em alvo de sátiras no programa Pânico na TV. Segundo o desembargador Gilberto Dutra Moreira, em algumas dessas sátiras a menina é apresentada como retardada.
Não há o que discutir: da mesma forma como a atriz Carolina Dieckman teve reconhecido pela Justiça seu direito à intimidade, violado pelo mesmo Pânico na TV, Sasha tem direito a não ser importunada. Além disso, é uma criança, o que exige ainda mais cuidado nas referências a ela. E, cá entre nós, quantas pessoas importantes não cometem erros de grafia mas são poupadas porque mexer com elas dá problema?
Revendo o Brasil
Um novo livro retoma o tema da ditadura brasileira e sua cooperação com as ditaduras militares do Sul da América Latina: Retratos do Exílio, de Marlon Gonsales Aseff. Marlon relembra a vida na fronteira do Brasil com o Uruguai, especialmente nas cidades gêmeas Santana do Livramento e Rivera, onde basta atravessar a rua para mudar de país. Muita gente escapou por ali da tortura e da morte; e, exatamente por isso, aquele local da fronteira abrigou uma grande concentração de espiões, policiais, torturadores, tanto brasileiros quanto uruguaios. Embora seja uma dissertação de mestrado, é também um livro emocionante, em que se torce o tempo todo pelos perseguidos. É uma boa leitura.
Audálio de volta
Um excelente jornalista, um excelente escritor. Audálio Dantas foi essencial, há mais de 40 anos, para o lançamento do bom Quarto de Despejo, da favelada Carolina Maria de Jesus, que havia sido personagem de uma de suas reportagens; teve atuação corajosa e firme como presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, na época da prisão e assassínio de Vladimir Herzog; escreveu dois ótimos livros sobre Graciliano Ramos, alagoano como ele. Audálio lança agora, como está na moda, seu livro sobre o presidente da República: O Menino Lula, resultado de uma longa conversa com Lula, em julho último, e de uma convivência de muitos anos, na época em que ambos eram dirigentes sindicais e, mais tarde, se lançaram ao mesmo tempo à política. O livro tem xilogravuras de um importante gravador nordestino, Jerônimo Soares, famoso como ilustrador de livros de cordel. São 120 páginas, R$ 26,90. Prefácio de Ricardo Kotscho.
Como…
De um grande portal de Esportes, ligado a uma imensa rede de comunicações:
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‘Ramon, sobre novo uniforme: `Não vou dar para ninguém´’
…é…
De uma coluna esportiva de grande prestígio na Internet e na TV:
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‘Belluzzo responde ao árbitro: `Não vou fugir do pau!!!´’
…mesmo?
De um dos maiores portais noticiosos do país:
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‘Homem puxa ônibus pelo cabelo’O ônibus deve ser de alguma empresa do senador Wellington Salgado.
E eu com isso?
Há muitos e muitos anos, na época em que os galãs da Globo eram Antônio Fagundes, Tarcísio Meira e José Mayer, havia um jogo de salão chamado Cultura Inútil. Só valia perguntar coisas cujo conhecimento nada significasse em termos de remuneração – por exemplo, qual o biólogo de renome internacional que era também um dos grandes compositores brasileiros (resposta: Paulinho Vanzolini). Ou qual a principal característica de Diane Palmer, a namorada do Fantasma, quando era desenhada por Ray Moore (resposta: não tinha umbigo). Ou ainda, qual a semelhança entre Flash Gordon e Roy Rogers? Resposta: os dois tinham mulheres chamadas Dale.
Há algum lugar para buscar cultura inútil melhor do que o noticiário frufru?
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‘Britânica sofre de medo de vegetais’É fobia, mesmo: quando vê vegetais no prato, ela sua frio, seu coração dispara. O medo de vegetais chama-se lachanofobia. Completemos: existe gente com fobia de gatos – sofre de ailurofobia. O gato pode ser daqueles gordos, pacíficos, apreciadores de um bom colo, mas o ailurófobo o teme assim mesmo.
Mas nada se compara à fobia de uma jovem (este colunista não conhece mais ninguém com este problema) que fica em pânico ao aproximar-se de queijo mineiro. E seus irmãos jamais perderam a oportunidade de colocar uma fatia de queijo mineiro nos seus ombros.
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‘Nervosismo pode desencadear uma crise de hipertensão no dentista’Aí a cultura é não apenas inútil como errada: o dentista não está ameaçado por uma crise de hipertensão. Quem pode sofrê-la é o paciente nervoso, daqueles que preferem o som do senador Suplicy cantando Blowin` in the wind ao ruído tão mais melodioso e agradável daquele motorzinho de odontologia.
O noticiário frufru também nos mostra que fazer o bem nem sempre traz consequências agradáveis:
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‘Estudante ajuda vizinho durante assalto e acaba preso no interior de SP’E ele foi preso por causa da denúncia do ladrão, que o acusou de ameaçá-lo com uma arma. No Brasil, a regra é aceitar o crime. Combatê-lo dá galho!
Há também informações notáveis: um grande jornal revela que o futebol profissional é praticado por profissionais, com fins profissionais.
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‘Corinthians joga por dinheiro’E a gente aqui pensando que Ronaldo Fenômeno se submeteu àquele monte de operações, faz sacrifícios para perder peso, aguenta repórteres perguntando se seu objetivo é a vitória, exclusivamente porque gosta de bater bola debaixo do sol de verão, no domingo às três da tarde!
Há o noticiário francamente bizarro:
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‘Americano é preso por ligar para polícia e pedir sexo para telefonista’Explica-se: ele queria passar a noite com alguém, mas não tinha mais créditos no celular. Então, ligou para a polícia, já que o telefonema era gratuito. Sexo ele não conseguiu, mas garantiram-lhe a hospedagem gratuita durante a noite numa boa cela. Ele até teve sorte: há quem diga que, no Brasil, ele também teria muito sexo durante sua estada na cadeia.
E há o frufru propriamente dito, que sempre é uma delícia.
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‘Veado é flagrado nadando em piscina de condomínio por 15 minutos’**
‘Megan Fox quer ajudar crianças e pessoas carentes’**
‘Casal vai festejar aniversário e encontra Madonna’**
‘Inglês é preso no Galeão ao tentar embarcar com mil aranhas vivas’**
‘Mariana Kupfer anuncia que está grávida de uma menina’**
‘Madonna sorri para os fotógrafos na saída de restaurante no Rio’
O grande título
Há coisas interessantes, como móveis que, honrando seu nome, se movem.
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‘Móveis para Secretaria de Segurança somem sem deixar pistaNão deixaram sequer uma impressão digital!
Há os títulos maliciosos (se bem que, como normalmente acontece, a malícia esteja mais na cabeça de quem lê do que no título propriamente dito):
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‘Partido de Clodovil estaria atrás de Ronaldo Ésper’Há aquelas frases que é complicado decifrar:
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‘Tyson flagrado em luta por maconha’Não, ele não estava lutando por maconha. Ele foi flagrado num exame antidoping, após uma luta, por ter fumado maconha.
E há um imbatível, de um livro recém-lançado:
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‘Anencefalia nos Tribunais’‘Honni soit qui mal y pense’, diz a divisa da Ordem da Jarreteira, dos tempos em que a Corte inglesa usava o francês como língua culta. Em francês antigo, é algo como ‘envergonhe-se quem enxergar malícia’. O título do livro se refere, embora isso não esteja muito claro, à maneira como os tribunais costumam tratar do tema ‘anencefalia’.
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Jornalista, diretor da Brickmann&Associados