Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A não-reportagem sobre uma não-informação

O jornalismo brasileiro inaugura a ‘não-reportagem ininformativa’. Trata-se de uma dinâmica inatividade jornalística que se ocupa dos fatos que, se tivessem ocorrido, teriam acontecido. É um desses corriqueiros fenômenos inexplicavelmente fáceis de serem incompreendidos.

Imagine o repórter chegando à redação e o chefe lhe perguntado:

– E aí, conseguiu alguma coisa?

– Nada! – responde animado o repórter.

– Ótimo! – diz o chefe. – Cadê o não-material?

– Tá aqui, ó – entrega-lhe um disquete.

O chefe introduz o disquete no micro, abre o documento e lê, comentando em voz alta:

– Nada sobre a viagem do Zé Dirceu à Bolívia, nenhum detalhe sobre o que ele falou com Evo Morales, nem mesmo sobre o que não falou. Também nenhum detalhe sobre sua possível viagem aos Estados Unidos… Necas de pitibiriba sobre o que fez no México; se é que foi realmente ao México. Nenhuma informação sobre seus não-clientes. Dirceu nega que não se encontrou com Evo…

– Não, chefe – corta o repórter —, ele nega que tenha se encontrado.

– Então ele confirma que não se encontrou. Ótimo!

– É, acho que dá no mesmo.

– Bulhufas sobre o diálogo de Dirceu com Eike Batista.

– Mas, em compensação, a diretoria da siderúrgica EBX, de propriedade do Eike, não confirma nem nega se o Dirceu foi ou é contratado daquela empresa.

– Nesse caso, se ele foi, é ou será colaborador da siderúrgica, pode ter, ou não, viajado no jatinho da empresa.

– Demais, chefe! Só o senhor mesmo poderia chegar a essa conclusão!

– Mas… – o chefe localiza alguma coisa na tela – que empresa é essa aqui?!

– Qual?

– ‘José Dirceu & Associados’…

– Deve ser a empresa à qual o Zé Dirceu se associou. Certamente está no nome de algum laranja. Pelo nome da firma, sem dúvida é um parente, talvez…

– É provável, é provável… Huuummm… Quer dizer que o Dirceu nega que tenha negociado a questão do gás com Evo Morales, em nome do governo Lula?

– Não, chefe, ele não nega!

– Não?!

– Não, mas também não confirma.

– Ah, sei, sei…

– Mas a ministra Dilma Rousseff entregou o jogo.

– É?!

– Tá tudo aí.

O chefe rola a página na tela do monitor e lê a declaração da ministra:

– ‘A relação com os bolivianos é feita por meio de canais diplomáticos, do Itamaraty, do Ministério das Minas e Energia e da Petrobras, no que se refere à questão do gás’.

– Viu?! Eles agem em conluio! – diz o repórter.

– Tá muito bom. Parabéns! Vai para a página policial.

Finalmente, os dois relaxam e mudam de assunto, enquanto tomam um cafezinho.

– Pô, chefe, o Silvio de Abreu bem que poderia ter aproveitado essa matéria para fechar com chave de ouro a trama da novela Belíssima.

– É verdade, é verdade…

– Ia dar o maior ibope!

– Pois é, já pensou?! No final, Bia Falcão, Medeiros, Ivete, Mary Montila, André…

– … a dona Tosca, Valdete, Seu Aquilino, o Alberto…

– Isso, isso! Todos eles entrando, apoteoticamente, no Congresso Nacional…

– Corta para um helicóptero decolando dos jardins do Palácio do Planalto, sobrevoado Brasília e produzindo uma chuva do nosso jornal… Ah! – suspira o repórter.

– Um exemplar caindo em câmera leeentaaa…

– A manchete em detalhe…

O chefe ergue os braços e, com os indicadores e polegares formando ângulos retos, simula o enquadramento da cena e fala pausadamente:

– ‘Dirceu não revela o que foi fazer na Bolívia’

(http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u80175.shtml)

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Escritor, Rio de Janeiro