O jornalismo brasileiro inaugura a ‘não-reportagem ininformativa’. Trata-se de uma dinâmica inatividade jornalística que se ocupa dos fatos que, se tivessem ocorrido, teriam acontecido. É um desses corriqueiros fenômenos inexplicavelmente fáceis de serem incompreendidos.
Imagine o repórter chegando à redação e o chefe lhe perguntado:
– E aí, conseguiu alguma coisa?
– Nada! – responde animado o repórter.
– Ótimo! – diz o chefe. – Cadê o não-material?
– Tá aqui, ó – entrega-lhe um disquete.
O chefe introduz o disquete no micro, abre o documento e lê, comentando em voz alta:
– Nada sobre a viagem do Zé Dirceu à Bolívia, nenhum detalhe sobre o que ele falou com Evo Morales, nem mesmo sobre o que não falou. Também nenhum detalhe sobre sua possível viagem aos Estados Unidos… Necas de pitibiriba sobre o que fez no México; se é que foi realmente ao México. Nenhuma informação sobre seus não-clientes. Dirceu nega que não se encontrou com Evo…
– Não, chefe – corta o repórter —, ele nega que tenha se encontrado.
– Então ele confirma que não se encontrou. Ótimo!
– É, acho que dá no mesmo.
– Bulhufas sobre o diálogo de Dirceu com Eike Batista.
– Mas, em compensação, a diretoria da siderúrgica EBX, de propriedade do Eike, não confirma nem nega se o Dirceu foi ou é contratado daquela empresa.
– Nesse caso, se ele foi, é ou será colaborador da siderúrgica, pode ter, ou não, viajado no jatinho da empresa.
– Demais, chefe! Só o senhor mesmo poderia chegar a essa conclusão!
– Mas… – o chefe localiza alguma coisa na tela – que empresa é essa aqui?!
– Qual?
– ‘José Dirceu & Associados’…
– Deve ser a empresa à qual o Zé Dirceu se associou. Certamente está no nome de algum laranja. Pelo nome da firma, sem dúvida é um parente, talvez…
– É provável, é provável… Huuummm… Quer dizer que o Dirceu nega que tenha negociado a questão do gás com Evo Morales, em nome do governo Lula?
– Não, chefe, ele não nega!
– Não?!
– Não, mas também não confirma.
– Ah, sei, sei…
– Mas a ministra Dilma Rousseff entregou o jogo.
– É?!
– Tá tudo aí.
O chefe rola a página na tela do monitor e lê a declaração da ministra:
– ‘A relação com os bolivianos é feita por meio de canais diplomáticos, do Itamaraty, do Ministério das Minas e Energia e da Petrobras, no que se refere à questão do gás’.
– Viu?! Eles agem em conluio! – diz o repórter.
– Tá muito bom. Parabéns! Vai para a página policial.
Finalmente, os dois relaxam e mudam de assunto, enquanto tomam um cafezinho.
– Pô, chefe, o Silvio de Abreu bem que poderia ter aproveitado essa matéria para fechar com chave de ouro a trama da novela Belíssima.
– É verdade, é verdade…
– Ia dar o maior ibope!
– Pois é, já pensou?! No final, Bia Falcão, Medeiros, Ivete, Mary Montila, André…
– … a dona Tosca, Valdete, Seu Aquilino, o Alberto…
– Isso, isso! Todos eles entrando, apoteoticamente, no Congresso Nacional…
– Corta para um helicóptero decolando dos jardins do Palácio do Planalto, sobrevoado Brasília e produzindo uma chuva do nosso jornal… Ah! – suspira o repórter.
– Um exemplar caindo em câmera leeentaaa…
– A manchete em detalhe…
O chefe ergue os braços e, com os indicadores e polegares formando ângulos retos, simula o enquadramento da cena e fala pausadamente:
– ‘Dirceu não revela o que foi fazer na Bolívia’
(http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u80175.shtml)
******
Escritor, Rio de Janeiro