Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

A tentação fatal das ‘pensatas’

Não é apenas no terreno das previsões sobre papabili que os jornais escorregam feio. Na sexta-feira (8/3), o UOL publicou reportagem em que se estabelecia correlação entre o recebimento do Bolsa Família e o aumento do número de divórcios (leia aqui; acesso sujeito a regras do portal). Dois dias depois, na Folha de S.Paulo impressa, o colunista Samuel Pessôa, professor de economia e pesquisador da FGV-RJ, apresentou evidências de que acontece o contrário.

O pretendido aumento do número de divórcios não tinha como ponto de partida estatísticas razoavelmente confiáveis, mas estudo baseado “em pesquisas qualitativas a partir de entrevistas com famílias e mães beneficiárias” do programa, “evidências anedóticas”, como escreveu Pessôa, usando terminologia técnica mas, quem sabe, brincando também com a acepção comum da palavra anedota.

Maior “independência”

A reportagem supõe que as mulheres, a quem são pagas as mensalidades do Bolsa Família, adquirem com isso maior “independência” (assim mesmo, entre aspas), e que, resumiu Pessôa, “mulheres mais independentes teriam a capacidade de se separar de maridos indesejados, seja por motivo de violência, alcoolismo ou qualquer outra razão”.

O pesquisador argumenta, porém, que o aumento do número de divórcios poderia ter decorrido do aquecimento do mercado de trabalho, caso o fenômeno não tivesse sido exclusivo dos estratos beneficiários do Bolsa Família.

Ele faz isso para mostrar como as conclusões da reportagem foram precipitadas. E condena o uso da evidência anedótica: “Por mais interessante que seja, é exatamente isso, possível anedota que pode ajudar na formulação de conjecturas”.

Menos divórcios

Em contraposição à pensata da reportagem – que pode ser um estalo de presumida genialidade do pauteiro, do editor, do repórter que acolheu acriticamente a fala de determinada fonte –, Pessôa cita trabalhos acadêmicos que chegaram à conclusão oposta: o número de divórcios diminui entre as populações beneficiárias do programa de transferência de renda, quando comparadas com grupos de mesma renda não atingidos.

A explicação para a situação real, o contrário da apregoada no UOL, seria menos linear no jogo de causa e efeito, expõe o pesquisador:

”Provavelmente a mulher conseguiu negociar comportamentos mais produtivos e funcionais de seus maridos ou ainda o fato de o recurso ser vinculado aos filhos aumentou a atratividade aos olhos do pai de viver com eles”.

Valendo a ressalva: “É difícil saber exatamente como se processou a dinâmica no interior da família”.

Difícil, professor? Só se for para o senhor. Para jornalistas intrépidos, motivados por convicções certeiras, nada é impossível. Quanto à chamada realidade dos fatos, paciência. De todo modo, tudo não passa de narrativas.