Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A guerra de um Guerra sujo

Reportagens pouco críticas registraram o lançamento do livro Memórias de uma guerra suja, relato do ex-delegado do Dops e assassino condenado Cláudio Guerra publicado pelos jornalistas Marcelo Netto e Rogério Medeiros. Uma exceção foi Leonêncio Nossa, no Estado de S. Paulo. Leonêncio chama a atenção para o fato de que os crimes aos quais Guerra pretende se associar estão, até agora, cobertos pela Lei da Anistia de 1979.

Há quem veja no episódio uma jogada do “porão” – os militares que executaram as ordens superiores de liquidar, sem medir crueldade e covardia, oponentes do regime – para criar fatos novos que tornem mais difícil a tarefa da Comissão da Verdade a ser instalada proximamente. O desembargador aposentado Walter Maierovitch expressou essa suspeita à Carta Capital.

Covardia e selvageria

Os jornalistas Netto e Medeiros criaram ou aceitaram um título benéfico à narrativa dos militares que protagonizaram o terrorismo da ditadura militar: não houve “guerra” fora da retórica castrense e da cabeça de algumas pessoas iludidas por uma avaliação desesperada da situação política. Houve covardia, selvageria. As raízes dessa truculência são fundas e antigas, mas isso não consola.  

A repressão foi muito além do que seria “tecnicamente” necessário para derrotar os inimigos do regime, ou, como se dizia na época, “combater a subversão”. Esse é talvez o lado mais abjeto dos crimes cometidos contra direitos humanos entre 1964 e 1985. Aconteceu assim na Argentina, no Chile, no Uruguai, na Bolívia. Mais uma vez, a constatação não consola. Até porque a ditadura brasileira foi pioneira, Paraguai à parte.

Forest Gump caboclo

Jornalistas desavisados (preguiçosos?) engoliram um “guerrilheiro” Nestor “Veras”. Nestor Vera foi um dirigente nacional dos trabalhadores na agricultura que integrava o comitê central do PCB quando foi eliminado, em 1975. Uma rápida consulta a fontes como o livro Direito à verdade e à memória: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (Brasília, Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2007) bastaria para evitar o erro.

Também em relação ao “guerrilheiro” Manoel Aleixo da Silva teria sido possível questionar a classificação dada ao militante. Ele era um veterano das Ligas Camponesas que militava no Partido Comunista Revolucionário, adepto da luta armada. Mas foi preso em casa, dificilmente lugar de guerrilheiros. E, a menos que as autoridades – da época e de hoje − tenham se enganado redondamente, quem matou Manoel Aleixo foi um agente da repressão chamado Jorge Francisco Inácio. Está em relatório do delegado do Dops de Recife, José Oliveira Silvestre.

O ubíquo Cláudio Guerra teria executado um homem capturado em Belo Horizonte, Vera, e um fuzilado em Ribeirão, Pernambuco. Por essas e outras Leonêncio Nossa o comparou ao personagem Forest Gump.

Kucinski disseca o horror

Quem estiver interessado em ler um livro sério sobre a repressão do regime militar tem à disposição, desde setembro, K., de Bernardo Kucinski (São Paulo, Expressão Popular, 2011). A irmã de Bernardo, Ana Rosa Kucinski, e o marido dela, Wilson Silva, que pertenciam à Aliança Libertadora Nacional (ALN), foram presos e assassinados. O K. do título é o pai de Bernardo em busca da filha, primeiro, e depois, consciente de que ela fora assassinada, de alguma informação sobre o que ocorreu com Ana Rosa, professora de Química na USP.

Todos os aspectos relevantes do sistema repressivo vigente entre 1964 e 1985 estão nesse volume, magistralmente concebido, de 178 páginas. No capítulo “O livro da vida militar”, um general de quatro estrelas “destituído do comando e expelido do Exército por ter se oposto ao golpe” dá a Bernardo Kucinski os ingredientes do prato frio da vingança moral pela morte da irmã e o sofrimento do pai, e por tantas outras mortes e sofrimentos.