Os comentaristas políticos ainda cobram dos senadores uma reação mais afirmativa à primeira arenga do recém-empossado senador Fernando Collor de Mello, ex-presidente da República.
Mas os jornalistas também estão em dívida. A renúncia de Collor foi um episódio político nos seus desdobramentos, mas seu ponto de partida e a sua sustentação devem ser classificados na esfera midiática.
A entrevista-bomba de Veja com o irmão do presidente deflagrou o processo. A matéria de capa ‘Pedro Collor conta tudo’ (edição 1236, de 27/5/1992) passou ao largo de qualquer procedimento investigativo e de todos os cuidados jornalísticos. Ligou-se o gravador, transcreveu-se o que o desmiolado afirmou e a matéria foi para a impressão praticamente sem qualquer suporte editorial ou reporterístico.
Por sorte, o desmiolado tinha razão. E se não tivesse? E se suas denúncias fossem fabricadas pelo delírio, Veja pediria desculpas ao presidente da República na edição seguinte?
Novo esporte
Em Brasília conheciam-se algumas patranhas de Collor & PC Farias, mas não havia provas. Nem o irmão denunciante preocupou-se em apresentá-las. Todos contavam com o efeito da bola de neve. E a bola de neve, como tantas vezes acontece nos cassinos, parou no lugar certo.
Veja naquela época circulava aos domingos. Já no dia seguinte, segunda-feira, sem qualquer fato novo, contando apenas com a velocidade inercial da revelação, a Folha de S.Paulo colocava o selo ‘Collorgate’ no alto da página da cobertura. Em 24 horas transformava a denúncia de um suposto escândalo num escândalo consumado.
Nos dias subseqüentes e durante todo o mês de junho daquele ano a imprensa apenas ‘repercutiu’, bateu os tambores – alguns mais afoitos, delirantes, outros mais reservados e desajeitados.
Então apareceu a primeira peça efetivamente investigada: a IstoÉ não se importou com a primazia da concorrente e descobriu o motorista Eriberto França, o Fiat Elba e as remessas de dinheiro do caixa 2 para as contas do Chefe da Nação.
A matéria foi publicada em 1º/7/1992. Collor ferrou-se naquele momento.
Os aspectos jurídicos ficam para os juristas, as questões políticas em algum momento virão à tona, mas a imprensa brasileira (jornais e revistas) tem uma dívida com os cidadãos-leitores. Está obrigada a esmiuçar o episódio, verificar responsabilidades, irresponsabilidades. Como exercício retrospectivo e treinamento prospectivo.
Uma coisa é certa: a facilidade com que a imprensa caçou o ‘caçador de marajás’ e obrigou-o a renunciar, fabricou um novo esporte ou modismo: a caça aos presidentes. Este observador (então residente em Lisboa e colaborador do mensário Imprensa com a rubrica ‘Circo da Notícia’) escreveu na época que o jornalismo brasileiro, ao contrário do que se recomenda às sentinelas, primeiro atirava e depois perguntava ‘quem vem lá?’.
Culpa no cartório
Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso e o próprio Lula (como candidato e como presidente) foram vítimas com diferentes intensidades desta alucinada ‘caça ao presidente’. Repórter só se considerava investigativo se conseguisse derrubar alguém muito importante. E começava atirando para cima.
Daí ao ‘jornalismo fiteiro’, aos vídeos produzidos por arapongas profissionais e aos pré-fabricados ‘dossiês secretos’ foi um passo. O Dossiêgate ou Dossiê Vedoin talvez seja o último da série. Explica-se: foi uma granada que explodiu nas mãos dos incompetentes granadeiros.
Collor não foi apenas derrubado pelas denúncias do irmão. Collor caiu porque tinha culpa no cartório. E, evidentemente, não contou com bons conselheiros.
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Collor
Ali Kamel (*) # copyright O Globo, 20/3/2007
Foi chocante a reação do Senado ao discurso de estréia de Fernando Collor na quinta-feira [15/3].
Collor classificou o seu impeachment como uma ‘litania de abusos e preconceitos, uma sucessão de ultrajes e um acúmulo de violações das mais comezinhas normas legais’.
Pondo-se na condição de vítima, atacou a CPI, dizendo que, ‘a partir de uma suposição, criou-se uma infâmia’.
Ninguém se dignou a mostrar que aquela página de nossa história não foi, como quer Collor, um momento de arbítrio, mas, ao contrário, um exemplo de pleno funcionamento de nossa democracia.
O primeiro a falar, Arthur Virgílio, líder do PSDB, disse que não entraria no mérito das acusações e fez questão de eximir o seu partido de culpa: ‘O meu partido — e aqui faço justiça também àquele grande brasileiro chamado Ulysses Guimarães, do PMDB — relutou ao ponto máximo diante da perspectiva do impeachment.’ Tasso Jereissati disse que o PSDB não se arrependia do que fizera, mas sublinhou que o país mudou: fora muito rígido com Collor sem mostrar rigor igual com denúncias recentes: ‘Talvez V. Exa. tenha sido o homem público da história recente do país que pagou o mais alto preço por eventuais erros cometidos — se é que os cometeu.’ Aloizio Mercadante, do PT, disse que a CPI visou a pôr fim a equívocos gravíssimos, mas admitiu: ‘Excessos, seguramente, ocorreram.’ Renan Calheiros, presidente do Senado, ex-aliado e ex-adversário de Collor, último a falar, resumiu o tom da sessão: ‘É forçoso — forçoso mesmo — reconhecer que V. Exa. é hoje maior do que foi um dia.’ Para quem, como eu, trabalhou duro na cobertura daqueles dias, a perplexidade foi inevitável. Será que ninguém ali se recordava do que havia sido demonstrado pela CPI? Relembrando: Pedro Collor, irmão do então presidente, em entrevista à ‘Veja’, denunciou uma sociedade, com fins escusos, entre Collor e PC Farias, ex-tesoureiro da campanha presidencial.
Quando a CPI rumava para o naufrágio, o motorista Eriberto França contou aos brasileiros que pagava despesas da família do presidente com dinheiro sacado de contas de Ana Acioli, secretária de Collor, abastecidas por PC. Rompido o sigilo bancário de Acioli, a CPI confirmou que o dinheiro vinha de contas cujos titulares eram fantasmas, todos ligados a PC: entre as provas dessa ligação, salas comerciais adquiridas por PC e pagas com cheques administrativos comprados pelos fantasmas.
Na página 257 do relatório da CPI, o capítulo ‘O papel dos ‘fantasmas’ nos gastos pessoais do presidente Collor e sua família’ demonstra que as contas de Acioli movimentaram cerca de US$ 2,3 milhões, beneficiando a então mulher, a mãe e a ex-mulher de Collor. A CPI também encontrou depósitos de fantasmas diretamente na conta da mulher (US$ 1,3 mil) e da ex-mulher de Collor (US$ 43 mil). Comprovou-se, ainda, que um Fiat Elba, comprado pelo próprio Collor, fora pago com um cheque administrativo comprado por um dos fantasmas de PC. A reforma da Casa da Dinda, residência do ex-presidente, custou US$ 2,1 milhões, também pagos pelos mesmos fantasmas.
Depois das denúncias do motorista, Collor demorou um mês para alegar que o dinheiro vinha de um empréstimo de US$ 5 milhões, contraído no Uruguai e administrado por Cláudio Vieira, secretário particular da Presidência. O dinheiro, convertido em ouro, fora posto sob a guarda de Najun Turner, um doleiro: à medida da necessidade, era vendido.
Vieira alegou que desconhecia o uso de fantasmas por Turner.
A CPI, ao analisar o contrato de empréstimo e ouvir testemunhas, considerou que havia indícios de que a justificativa fora inventada. No dia 29 de setembro, a Câmara aprovou o impeachment de Collor. No dia 29 de dezembro, o Senado condenou o presidente por crime de responsabilidade, por considerar que ele quebrara o decoro do cargo.
A punição foi a cassação de seus direitos políticos por oito anos, pena cumprida integralmente.
Diante do senador Collor, seus pares preferiram não relembrar esses fatos, esquecendo-se de que os jovens não conhecem essa história.
No processo criminal, e apenas nele, a defesa de Collor alegou que os milhões que o beneficiaram vinham, além do empréstimo no Uruguai, de sobras de doações eleitorais, centralizadas por PC na conta de um fantasma. Não havendo dúvidas de que o ex-presidente recebera dinheiro de PC, o STF debateu se, para condená-lo por corrupção passiva, seria necessário demonstrar que, em troca, algum ato ou omissão de Collor na Presidência beneficiara o ex-tesoureiro.
O Ministério Público não foi capaz de demonstrar essa relação. Cinco ministros entenderam que isso era necessário; três consideraram que bastava provar que o presidente recebera vantagem indevida. Como a maioria dos ministros também considerou plausível a alegação de que os milhões vieram de sobras de campanha, o que, à época, não era ilegal, Collor foi absolvido por 5 a 3. Os responsáveis pela criação dos fantasmas foram condenados por falsidade ideológica. Collor teve de se explicar à Receita por não ter pago imposto de renda sobre o que recebeu, mas a ação penal por sonegação foi extinta porque o MP perdeu prazos.
Há incongruência entre o julgamento do Congresso e do STF? Sidney Sanches, ex-ministro do Supremo, que presidiu um julgamento e participou do outro, em entrevista ao ‘Valor Econômico’, declarou: ‘Pode haver condenação em um e absolvição em outro. O processo de impeachment, sendo político, é julgado por políticos. São juízes políticos sob a seguinte questão: qual o conceito de falta de decoro? (…) É falta de compostura e de vergonha no exercício do mandato. Quem emite conceito político e julga fatos políticos em um ambiente político não são os mesmos que julgam de acordo com o Direito. No julgamento do Collor no STF, o que se julgou foi corrupção passiva. E o tribunal entendeu que não estava configurado o crime de corrupção passiva.’ Este é um país, portanto, em que o decoro pode ser quebrado sem infringir o código penal.
(*) Jornalista