Há vários dias, o mundo vive a expectativa das turbulências causadas pelo voraz apetite do lucro fácil e oportunismo dos ‘donos da decisão’, em Wall Street. É o que diz, majoritariamente, a imprensa. Temos visto os nossos jornais ocuparem boa parte das seções de política, economia e temas internacionais com as repercussões da crise americana. Não faltam analistas apocalípticos, economistas integrados, otimistas e pessimistas de boa-fé. Não que não faltem os de má-fé…
Frente ao pacote de ajuda proposto pelo governo norte-americano, que irá beneficiar as combalidas instituições e os invejáveis salários de seus executivos, os banqueiros clamam por urgência, o executivo clama por bom-senso, o legislativo clama por transparência. Atos, todos esses, largamente noticiados, comentados, apresentados de vários pontos de vista, analisados por ilustres especialistas, que vêm se manifestando sem consenso.
Houve, entretanto, um outro clamor. Um clamor das ruas, daqueles que pagarão, de uma forma ou outra, a conta do desastre previamente anunciado, mas denunciado como ação de alarmistas. Uma parcela da população norte-americana resolveu se manifestar contra a ajuda de US$ 700 bi, saídos de seus bolsos, fruto de seus trabalhos suados ou ‘ar-condicionados’. Foram pelo menos 150 manifestações convocadas em todo o país, entre a última sexta-feira e este domingo (28/9).
Demonstração de desinteresse
Soube dessas manifestações através do Canal 7 argentino, enquanto praticava o exercício do zapping. Não havia visto qualquer destaque nos jornais, busquei nos sites noticiosos brasileiros alguma coisa sobre o assunto e me surpreendi. Surpresa, em primeiro lugar, pelo tratamento da cobertura, minorando as manifestações populares, como se não passassem de um exótico espetáculo periférico ao problema central, o que não criava qualquer elo de coerência com as imagens e comentários vislumbradas rapidamente na TV pública. Surpresa ainda maior foi com o fato da pífia divulgação das manifestações na imprensa brasileira, pelo seu desinteresse em tornar notícia a reação daqueles que passarão a ser, ao fim e ao cabo, os legítimos donos dos prejuízos causados pelas instituições financeiras. Surpresa alguma com a lógica complacente do capitalismo contemporâneo, onde os lucros são sempre privados e os prejuízos socializados.
A melhor demonstração desse desinteresse estava na publicação, em cinco importantes sites noticiosos, encontrados após busca no Google, da mesma sintética matéria, com o mesmo cabeçalho e o mesmo texto da espanhola agência EFE [Correio Brazilense; Vote Brasil; Último segundo; Folha Online; Abril].
Poder de organização
A matéria, publicada sob o título ‘Contribuintes americanos protestam contra plano de resgate dos bancos’, traz, ainda que para uma leitura mais apressada, algumas contradições interessantes. Logo no quarto parágrafo, de apenas duas linhas, o artigo qualifica os protestos públicos: ‘As manifestações realizadas até agora, a maioria convocada por grupos de esquerda, não foram muito grandes.’ Ao que cabe perguntar: além de inexpressivas, as manifestações não contaram com legitimidade por terem sido convocadas por ‘grupos de esquerda’? Que grupos e de que esquerda? Quantas foram as pessoas presentes nestes atos? Nada disto o texto se digna a esclarecer, restando ao leitor o exercício da fé na divulgação comprada à agência que, por outro lado, prevê a possibilidade do aumento da participação nestas manifestações, se confirmado o acordo senatorial sobre os princípios do plano de resgate governamental aos bancos norte-americanos.
De um lado, está no título, ‘contribuintes americanos’; de outro, no texto taxativo, convocados por ‘grupos de esquerda’. O que o leitor deve concluir: que a combalida esquerda americana tem alguma representação sobre os contribuintes norte-americanos? É evidente que não, pois a ‘reportagem’ continua explicando que os senadores, republicanos e democratas, vêm acusando milhares de comunicações telefônicas e eletrônicas diárias de seus eleitores, esmagadoramente protestando contra o bilionário pacote de ajuda governamental com dinheiro público. Igualmente, é certo, não será de se supor qualquer sugestão do texto a um controle dos ‘grupos de esquerda’ na organização destas tele-manifestações, até porque demonstraria um poder de organização muito além do esperado para a esquerda norte-americana.
Muitos adjetivos, pouca explicação
Além disto, aliando as manifestações públicas àquelas dos eleitores, cairia por terra o argumento de que as manifestações ‘da esquerda’ foram pouco significativas. Se as duas ações apresentassem sintomas de articulação, a ‘impressão’ de pequenez numérica desapareceria e o fato não mais poderia ser considerado demasiado pequeno para justificar um diminuto destaque noticioso. É naturalmente notícia o fato grandioso ou a notícia torna importantes os eventos?
O Estadão publicou, na edição eletrônica de 28 de setembro, que o banco belga Fortis foi nacionalizado ao custo de € 11,2 bi; a mesma edição publica a estatização do inglês Bradford & Bingley e que seus ativos serão fundidos aos de outro banco estatizado em fevereiro, esclarecendo que os poupadores e correntistas serão parte do acordo de estatização. Em ambas as matérias, não se percebe qualquer evidência de qualificação de natureza ideológica ou crítica ao princípio adotado – a estatização. As estatizações de instituições bancárias são tratadas apenas como uma emergencial aplicação de recursos técnicos da administração da economia nacional para enfrentar a crise.
Uma manifestação contrária de algum setor da sociedade seria uma iniciativa da esquerda? Um outro lado da dinâmica noticiosa brasileira parece responder negativamente à questão. As poucas notícias divulgadas sobre países como a Bolívia, Equador, Venezuela e Paraguai (este último parca e vergonhosamente coberto quando da posse de Lugo) nos informam cotidianamente da loucura incompetente das ações estatizantes de seus governantes esquerdistas e as dramáticas conseqüências para as suas populações – principalmente para as ‘patrióticas’ oligarquias, que arcarão com os maiores prejuízos. Estatizar no bloco hegemônico de nações, usar o dinheiro público para salvar bancos e banqueiros, é uma legítima política de defesa dos interesses públicos – discordar disto é ser de esquerda. Estatizar em países periféricos sob políticas de autonomização é aventura esquerdizante e o combate a isso é lucidez patriótica. Ao menos é o que se pode concluir pela forma como os temas vêm sendo noticiados pela imprensa. Muitos adjetivos e pouca explicação!
Verbas para espaço publicitário
O que sobra aqui é, mais uma vez, a impressão de que o respeito pelo leitor, digno no seu direito de receber a informação necessária para a construção da opinião, é relegado a um segundo plano pelo jornalismo contemporâneo. Para uma imprensa empresarial e lucrativa, este leitor não está além da condição de receptor passivo, apto à conformação dentro dos liames de textos demasiado opinativos e pouco informativos.
Grupos de esquerda no lugar de organizações da sociedade civil, contribuintes no lugar de cidadãos, afirmações quantitativas sem a apreciação dos números, tudo isso só faz reforçar a já antiga tese de Noam Chomsky, segundo a qual a imprensa se afastou dos seus objetivos iluministas e transformou-se – ao invés de um ativo agente da informação da sociedade – em uma gigantesca máquina de propaganda política em defesa dos interesses das grandes corporações, seus clientes reais, seus maiores anunciantes [ver, por exemplo, de Noam Chomsky, Controle da mídia: os efeitos espetaculares da propaganda, RJ, Graphia, 2003, em co-autoria com Edward Herman, Los guardianes de la libertad: propaganda, desinformación y consenso em los medios de comunicación de masas, Barcelona, Crítica, 2000]. E, afinal, não seriam as mega-corporações financeiras, emblematicamente instaladas em Wall Street, as donas das mais cobiçadas cotas de verbas para a compra de espaço publicitário na grande imprensa?
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Professor do departamento de Multimeios, Mídia e Comunicação – Unicamp, Campinas, SP