Machado de Assis, falando pela boca de Quincas Borba, explicava o motivo do combate entre duas tribos: a conquista de um campo de batatas. E cunhou uma frase memorável: ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas.
A frase é memorável, mas não está totalmente correta. Compaixão, jamais; ódio, um pouco; difamação, total. Moamar Kadafi (por quem este colunista não tem a menor simpatia) está sendo acusado de morar num palácio, como qualquer governante do mundo, de ter uma ampla coleção de roupas, como qualquer governante do mundo, de usar um avião luxuoso, até – pasme! – com “mesa de madeira nobre”. Digamos que o avião de Kadafi é maior, tem quatro reatores, mas há países que conhecemos que dispõem de modelos bem confortáveis, do mesmo fabricante.
As roupas que Kadafi escolheu são, para o gosto predominante, meio esquisitas; mas não deixa de ser estranho que um político brasileiro, sob o sol tórrido da Bahia, do Rio ou do Piauí, use paletós desenvolvidos para climas diferentes. É estranho que um nobre saudita use, em seus palácios com ar condicionado, roupas próprias para beduínos que vivem no deserto. E daí? Daí que Kadafi, um tipo com tantos motivos para ser criticado, vem sendo atacado até por ter um gramado em volta de sua residência. Se não o tivesse, iriam criticá-lo por desmazelo.
Isso já aconteceu com Saddam Hussein e seu curioso hábito de dormir a cada noite num palácio diferente, e de só ingerir comida ou bebida depois que alguém a tivesse provado. Talvez por isso tenha sobrevivido tanto. Já aconteceu com Perón e a coleção de vestidos de sua falecida esposa Evita. Ou com Ferdinand Marcos e a coleção de sapatos de sua esposa Imelda.
Curiosamente, sempre acontece depois que o indigitado perdeu o poder. Antes tudo era bom – do bunga-bunga, as festas de arromba de que Kadafi participou com o primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi, hoje seu grande inimigo, às homenagens ocidentais, da Inglaterra ao Brasil, recebidas por Said al-Islam, o filho playboy de Kadafi. Saddam Hussein, até se envolver na invasão do Kuwait, foi um dos ditadores preferidos do mundo desenvolvido, tanto dos ocidentais quanto dos comunistas. É como a China de hoje: aquele regime repressivo, horroroso, virou bonzinho e parceiro. Mas ai deles se o regime cair: até a Cidade Proibida será mostrada como prova de que, enquanto a população trabalhava por salários ínfimos para atender às exportações, os dirigentes viviam à larga.
E nós com isso? Pois é: quem divulga acriticamente as informações fornecidas pelos vencedores, com fotos, textos, filmes? Quem deixa de aproveitar a oportunidade para mostrar como esses mesmos fatos eram tratados pouco tempo antes, quando os atuais vencedores eram parceiros dos atuais perdedores?
Como não disse Getúlio Vargas, aos amigos e vencedores, tudo. Aos inimigos e perdedores, o rigor implacável da crítica dos meios de comunicação.
Falta dizer
Parentes da esposa do governador paulista Geraldo Alckmin, do PSDB, estão sendo acusados de fraudar a Prefeitura de São Paulo. E por que indicá-los como parentes da primeira-dama? Até o presente momento, o noticiário apontou uma série de irregularidades de que são acusados, mas não mostrou nenhuma evidência de que a primeira-dama ou o governador tenham dado qualquer tipo de apoio aos parentes. Mas é indiscutível que o simples fato de serem parentes de quem são facilita qualquer tipo de atividade a que se dediquem, mesmo que o governador e sua esposa dela não participem nem tenham conhecimento (e, se o tivessem, fariam o que determinasse a lei para coibi-la).
É eticamente correto salientar o parentesco dessas pessoas acusadas de irregularidade com gente importante no governo?
É uma boa discussão, que bem poderia ser travada no âmbito deste Observatório da Imprensa. Na opinião do colunista, é um caso em que a citação do parentesco é inevitável; mas seria interessante receber outras opiniões.
Recordando
1. Alguém pode informar por que outros órgãos de imprensa não procuraram aprofundar a revelação do repórter Agostinho Nogueira, da Rádio Bandeirantes de São Paulo, de que ao menos parte do suprimento de dinamite dos arrombadores de caixas eletrônicos é fornecida por um presidiário de Fortaleza? É feio: no momento em que o governo paulista insiste na tese de que a segurança pública vem melhorando, deixar de lado uma reportagem dessas pode parecer uma decisão partidária, tomada apenas para não deixar mal uma autoridade tucana.
2. Já faz algum tempo, quase um ano, a Polícia Militar paulista deu a medalha “Amigo da Rota” a quatro cervejarias, a Heineken, a Femsa, a Ambev e a Schincariol, “por sua colaboração”. Qual a colaboração que as cervejarias podem ter dado à tropa de choque? Cervejas e refrigerantes? Talvez possam ter colaborado financeiramente, ou com material, armas, munições, veículos, equipamentos diversos; neste caso, a colaboração, aliás inteiramente legal, estará registrada nos livros das empresas e na Secretaria da Segurança. Por que não esclarecem o caso, em vez de fingir que não aconteceu nada?
3. O médico Roger Abdelmassih, condenado a longa pena de prisão por abuso sexual, evaporou-se. Sabe-se até que teve filhos recentemente. E ninguém sabe onde ele se encontra? É tão fácil assim desaparecer no mundo? Então, tá.
4. Noticia-se com frequência a existência de cassinos clandestinos, e na notícia há até os endereços. Há também a informação de que carros de polícia rondam por ali – e, como os cassinos continuam funcionando, ou os policiais não encontraram nada ou encontraram muito. De duas, uma: ou as notícias são falsas, e nesse caso é preciso desmenti-las, ou não são, e nesse caso é preciso reprimir o jogo ilegal. Por que é que nada acontece?
Censura, ainda
A Constituição proíbe a censura, mas a censura continua em vigor. Há quem queira censurar programas de TV, limitando seus horários; há quem consiga censurar jornais (como a família Sarney faz com O Estado de S.Paulo, para que não publique informações levantadas pela Polícia Federal sobre seu império empresarial), há quem consiga censurar um grupo inteiro de comunicação para que não divulgue informações que deveriam envergonhar os protagonistas dos fatos.
A censura atinge agora a Rede Brasil Sul de Comunicações (RBS), o competente grupo gaúcho favorito do público de TV, rádio e jornais do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. O Tribunal de Justiça proibiu a RBS de veicular nome e imagem do vereador Adenir Webber, de D. Pedro de Alcântara, em qualquer veículo do grupo. Motivo: ele foi flagrado usando diárias de viagem não para serviço, mas para fazer turismo em Foz do Iguaçu (o caso ficou conhecido como “A Farra das Diárias”, e provocou o indiciamento de 13 pessoas pelo Ministério Público). A briga é boa: a RBS não pode, mas a Rede Globo, à qual a RBS é ligada, pode, e já botou o caso no Fantástico. Este vereador, que usa dinheiro público para satisfação própria, precisa ser exposto à opinião do eleitorado, que decidirá se deve ou não votar nele outra vez.
Opinião é opinião…
Os meios de comunicação, praticamente em uníssono, cansaram de prever o fracasso do PSD, partido que está sendo criado sob a liderança do prefeito paulistano Gilberto Kassab. As atas eram ruins, as assinaturas falsas, a máquina administrativa funcionava a todo vapor (estranhamente, a máquina administrativa da cidade de São Paulo funcionava no país inteiro), a lei era violada diariamente em quantidades industriais. Este colunista foi um dos poucos a procurar conhecer o mecanismo de montagem do partido e a dizer que tinha tudo para dar certo, já que o trabalho vinha sendo muito bem feito.
…notícia é notícia
Agora, os fatos: o PSD já apresentou, antes do prazo fatal, a aprovação de mais estados do que o mínimo necessário, com mais assinaturas certificadas do que as exigidas. Sua bancada na Câmara Federal deve beirar 50 deputados. E já negocia uma aliança com o PSB do governador pernambucano Eduardo Campos para formar um bloco que terá a segunda bancada na Câmara, com 81 deputados – um a mais que o PMDB, cinco a menos que o PT. PSB e PSD são partidos complementares: onde um é forte, outro é fraco. Pode ser que, no futuro, o bloco acabe virando fusão.
O cofre do Adhemar
A história é fascinante (aliás, as histórias são fascinantes): os astros são Adhemar de Barros, ex-governador de São Paulo, a hoje presidente Dilma Rousseff, Carlos Lamarca, Iara Iavelberg, 2,5 milhões de dólares que mudaram de mãos – e 900 mil, entregues ao embaixador da Argélia, que simplesmente sumiram.
O livro O Cofre do Adhemar, de Alex Solnik, um ótimo repórter, será lançado em 21/9, na Livraria da Vila do Shopping Higienópolis, em São Paulo. Traz de tudo: história do Brasil, incluindo sua estrela principal nos dias de hoje, a presidente da República; fofoca, com amantes diversos, sempre gente conhecida; luta armada; personagens como Carlos Lamarca, Carlos Marighela, Joaquim Câmara Ferreira, Chael Charles Schreier. A base da obra é um depoimento, colhido por Solnik, de Antônio Roberto Espinosa, um dos dirigentes da organização clandestina VAR-Palmares, que reuniu Dilma e Carlos Lamarca.
Foi na VAR-Palmares que Lamarca, casado, contou a Espinosa que estava apaixonado por Iara Iavelberg – justo a Espinosa, que tinha acabado de terminar um namoro com ela. Foi lá, também, que houve uma rumorosa acusação de assédio sexual; e um caso de adultério, na Bahia, que exigiu a intervenção do comando geral, situado em São Paulo.
Na época, conta o livro, Dilma era bem-humorada. Num congresso de militantes, cantou uma paródia de “País Tropical”, sucesso de Jorge Ben: “Este/ é um congresso tropical/ abençoado por Lênin/ e confuso por natureza”. Um admirador de Dilma, comunista e espírita, considerava-a a reencarnação de Nadejda Krupskaya, militante política e esposa de Lênin.
Vale a leitura. É agradável e movimentado como um bom romance policial, é ma aula de história recente do Brasil.
De graça ou pagando?
Internet é uma coisa fantástica – mas como ganhar dinheiro com ela? Os grandes jornais brasileiros, em reunião na semana passada, decidiram cobrar pelo conteúdo, hoje gratuito; mas ainda falta encontrar uma fórmula que convença o internauta, acostumado a receber informação sem custos, a pagar por ela. De qualquer forma, a mudança virá a curto prazo – como já aconteceu em jornais como o New York Times. Talvez os jornais ofereçam gratuitamente parte de seu conteúdo, talvez não; mas é certo que cobrarão alguma coisa de quem quiser consultá-los.
Precisão, mais precisão
Alguém poderia informar aos veículos de comunicação que não existe nenhuma agência noticiosa com o nome de “France Press”? O que existe uma France-Presse. A mistura franco-inglesa “France Press” é uma mixórdia sem sentido. É como o presidente do Senado: um erro (seu “Sarney” é uma corruptela de “Sir Ney”) e só existe no Brasil.
Xingou, paga
Aquela história de xingar os outros em público e pedir desculpas em particular, alegando que os insultos foram consequência “do calor do momento”, pode estar acabando. O ex-presidente do Palmeiras, Luiz Gonzaga Belluzzo, que disse o diabo do juiz Carlos Eugênio Simon, foi condenado a indenizá-lo em R$ 40 mil, por decisão unânime da 9ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Simon, um dos árbitros mais conceituados do país, foi atacado por Belluzzo, em entrevista ao jornal Lance, pela anulação de um gol de Obina contra o Fluminense.
Pois é: o cartola contrata Obina e bota a culpa no juiz por perder o jogo.
Como…
De um grande jornal, de circulação nacional, confundindo nas mesmas frases a possibilidade e a certeza:
** “O ex-senador (…) está entre as fontes da diplomacia americana (…) o embaixador americano Clifford Sobel narrou conversa que teria mantido (…) teria dito (…) citou (…)”
Afinal, “teria dito” ou “citou”? “Está” ou teria estado? É preciso decidir.
…é…
De uma importante agência noticiosa, noticiando um atropelamento:
** “O caminhoneiro espanhol de 40 anos seguia a pé por uma estrada secundária com um grupo, no qual estavam duas tias, também falecidas (…)”
…mesmo?
De um grande jornal, sobre o problema de saúde de Ricardo Gomes, técnico do Vasco da Gama, por muitos anos zagueiro titular, dos bons, da Seleção brasileira:
** “O fato de ter sido ex-atleta ajuda também.”
Como alguém pode “ter sido ex-atleta”?
Mundo, mundo
Um russo de 21 anos conheceu na internet, num portal para homossexuais, um homem de 32 anos. Disse que queria comê-lo e o convidou para um jantar. Mas estava sendo literal: matou o convidado a facadas e passou a comê-lo aos poucos. Durante uma semana, foi cozinhando pedaços de carne, e também preparou croquetes e embutidos. De acordo com a polícia, “seu único objetivo era provar carne humana”. O fato ocorreu em Murmansk, no noroeste da Rússia.
E eu com isso?
Ah, a opinião pública! Quem poderia imaginar que, com guerra na Líbia, com repressão na Síria, com fome na Somália, com ameaça de crise econômica, o traseiro de Pippa Middleton, irmã da princesa Kate, seria o tema principal de conversas ao longo do mundo? Discute-se se o traseiro de Pippa, elogiadíssimo na época do casamento da irmã, estaria mais chato agora em virtude do emagrecimento da jovem ou se estaria turbinado à época por uma calcinha com enchimento.
Mas a irmã da princesa não é o único tema de debates. Há também:
** “Sem Angelina, ator Brad Pitt leva os filhos ao cinema em Londres”
** “Disfarçado de nerd, Anderson Silva atende fãs em pastelaria de SP”
** “Karolina Kurkova foi flagrada com cara de espanto no Rio”
** “Claudia Leitte confirma Ricky Martin e gringo misterioso em seu trio”
** “Miss EUA quer comer pizza e cookies após concurso”
** “Após assumir doença, Marrone passa por avaliações médicas”
** “Schwarzenegger mostra barrigão em parque nos EUA”
** “De vestidinho, Xuxa curte show sertanejo”
** “Bumbum de Gisele Bündchen ilustra capa de livro”
** “Dani Bolina revela que algumas panicats são garotas de programa”
São mesmo; o Pânico na TV é um programa.
O grande título
Podemos começar pelo título-cabeça – aquele que, se fosse filme, daria páginas e páginas nos Cahiers du Cinéma.
** “Biodiesel: o ouro dourado abre caminhos de velhas economias”
Temos também aquele velho probleminha das traduções:
** “CNT, órgano político rebelde criado pela rebelião contra Kadafi”
Sigamos com algo enigmático:
** “Suspeito de roubar Picasso é preso por tentar explodir banco”
E cheguemos ao melhor de todos:
** “Polícia do Rio prende membros de milícias”
As algemas devem ser especiais.
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[Carlos Brickmann é jornalista e diretor da Brickmann&Associados]