Conta o francês La Fontaine que as rãs de um lago viviam bem e em paz, mas algo as incomodava: a falta de um rei, como o tinham outros animais. Pediram então ao deus Júpiter que lhes desse um rei. Júpiter resistiu, mas as rãs tanto insistiram que ele colocou no lago, com manto e coroa, uma cegonha, que comeu as rãs uma a uma.
Ah, a sabedoria de certas fábulas! No Brasil, depois de tantos anos de ditadura militar, em que advogados de extrema coragem lutaram para salvar pessoas perseguidas pela polícia (e em cujos processos jamais faltou um promotor para exigir que fossem condenadas), tinha-se como certa a vitória definitiva dos direitos humanos sobre a barbárie e a opressão estatal. A Constituição brasileira, elaborada nesse período, caprichou: nossa garantia constitucional de direitos individuais é maior e mais detalhada até que o Bill of Rights americano.
O tempo passa, o tempo voa. Hoje, a opinião pública, ou pelo menos a opinião publicada, parece francamente contrária aos direitos individuais – os direitos dos adversários políticos, ressalve-se, que os próprios direitos são defendidos com ferocidade. Quer-se silenciar a imprensa, para que não noticie aquilo que policiais e promotores acham que deve ser silenciado; quer-se transformar a imprensa em cúmplice de inquéritos secretos, de infindáveis grampos telefônicos, de prisões a ser efetuadas. E querem privar os investigados até do direito de saber que são investigados.
Nos países mais adiantados, o suspeito é avisado de que tudo aquilo que disser poderá ser usado contra ele; no Brasil, a matilha patrulheira do pega-e-esfola só se satisfaz quando o suspeito é preso por dezenas de policiais equipados com armas longas, algemado, enfiado no porta-malas de uma perua e alvejado por acusações, suspeitas, adjetivações, trechos soltos de inquéritos e gravações telefônicas (esquecendo-se de que os britânicos, pais da investigação científica dentro da lei, sempre disseram que um cavalheiro não escuta a conversa de outros).
E, quando o suspeito é solto – frequentemente porque a prisão não se justificava – deblatera-se contra o habeas corpus, uma instituição democrática criada há quase mil anos e que, nas ditaduras, é a primeira a ser abolida. Lembre-se: isso já aconteceu no Brasil. Recordemos que, privado da possibilidade de pedir habeas corpus, o lendário advogado Sobral Pinto teve de pedir que seu cliente Luís Carlos Prestes, o líder comunista, mantido preso em péssimas condições, recebesse os benefícios da Lei de Proteção a Animais.
Ah, sim: deblatera-se também contra os ‘advogados bem remunerados’ – como se os acusadores, com salários mensais próximos dos 30 mil reais, com estabilidade no emprego e uma série de vantagens, fossem pobres sacerdotes, que cumpririam na Terra a missão divina e mal paga de perseguir os pecadores.
O detalhe curioso da história é que sempre parte do mesmo princípio: se a pessoa está sendo investigada é culpada, e pronto. Deve ser humilhada, execrada, punida sem julgamento (porque no julgamento há a chance de que saia livre). Defendê-la, apresentar suas razões, exigir que receba o respeito devido a qualquer ser humano, faz parte do crime. Aquele delegado que hoje está no PCdoB disse claramente que quem está sendo investigado é bandido – isso, naturalmente, antes que ele próprio passasse a ser investigado.
É tudo muito bonito quando acontece com os outros. Mas não esqueçamos que todos podem ser vítimas do arbítrio.
O rei das rãs
Uma velha reivindicação democrática acaba de ser aceita pelo Senado: a liberdade de ação política na internet. Pois não é que tem gente reclamando? Nós, jornalistas, sempre condenamos a ausência de debate real nos meios eletrônicos de comunicação. Pois há jornalistas se queixando de que, com a internet livre, como aliás é a vocação da internet, sua sacrossanta telinha de computador continuará sendo inundada por material de que ele preferiria não tomar conhecimento.
É curioso: desde os primórdios do uso do computador pessoal, todos os aparelhos que este colunista manuseou continuam uma tecla utilíssima, ‘del’ – do inglês ‘delete’, apague. Não quer ler o material? Tecle ‘del’. Não gostou da propaganda da loja de eletrodomésticos? Tecle ‘del’. Não quer ver mulheres e homens pelados, não quer saber a opinião dos defensores do senador Fernando Collor? Tecle ‘del’. Não é preciso lamentar-se, nem pedir que haja uma polícia especial de internet para tirar aquilo de que não se gosta: basta teclar ‘del’.
Este colunista prefere lançar no lixo eletrônico todo aquele material que costuma ser irrelevante. Mas, antes de apagá-lo de vez, dá uma passadinha de olhos, daquelas rápidas, para ver se não está perdendo nada interessante. Normalmente não está. Mas já houve ocasiões em que pôde recuperar coisas boas. Por que jogar fora a oportunidade de garimpagem? Por que, mal-humoradamente, exigir um policiamento especial para que alguma Excelência não se sinta incomodada?
Internet é território livre. Se não for território livre, Internet não tem sentido.
As rãs e o rei
Nesta febre de regulamentação que assola o país, há pouca gente mais chata do que os que querem melhorar à força os hábitos dos outros. Não, não se trata de cigarro: o problema do cigarro, acredita este colunista, não é fazer mal a quem o fuma, mas incomodar quem não o fuma e tem o azar de estar por perto. Mas as tribos politicamente corretas estão próximas umas das outras. Uma delas, por exemplo, quer regulamentar o que pode ser anunciado; outra quer determinar nossa alimentação; uma terceira quer proibir o uso de propaganda na venda de alimentos, uma última quer determinar às famílias como criar corretamente seus filhos (provavelmente para que se tornem chatos que nem eles). Os meios de comunicação, a propósito, que se danem: que vão buscar anúncios na indústria de armamento, ou em verbas estatais, que a Viúva está aí para isso.
Terrível! Certa vez, um grupo desses resolveu alvejar nosso Maurício de Souza, o grande desenhista infantil que já ganhou prêmios internacionais por sua luta contra o racismo (e com boas histórias, não com histórias chatas), porque em suas revistas há anúncios de produtos infantis. Que é que queriam, em revistas infantis? Anúncios de Viagra? Alvejaram também essas hamburguerias americanas, que fazem sanduíches com gosto de isopor em todos os sabores, porque num determinado sanduíche vem um brinquedinho junto (a propósito, esqueceram aquele ovo de chocolate, que também vem com brinquedinho).
Estarão essas instituições querendo assumir as funções da família?
Parece: a nova ofensiva, ao que dizem, se refere à quantidade de tempero nos alimentos industrializados. Este colunista, grande apreciador de uma determinada mortadela, parou de consumi-la porque achou que estava salgada demais. Simples assim: ninguém o obriga a comer mortadela salgada. Se os pais acham que os filhos não devem comer hambúrguer, que tomem a decisão e a imponham. Não é preciso, para isso, que tenham a ajuda de ONG nenhuma. Ou daqui a pouco essas ONGs vão querer saber se o garoto é judeu ou muçulmano porque, nesse caso, não poderá consumir produtos que contenham carne de porco.
E há outro problema. Há alguns anos, manteiga fazia mal, margarina era bom. Depois, margarina fazia mal, manteiga era bom. O ovo era o rei dos alimentos, depois passou a ser tolerável só três vezes por semana (depois uma vez apenas), por causa do colesterol. Hoje o ovo é bom de novo. As recomendações alimentares que valiam há alguns anos deixaram de fazer sentido hoje. Que cada pessoa, portanto, cuide de sua alimentação (e que cada família controle a alimentação de seus filhos). Quem disse que pessoal de ONG, por ser de ONG, sabe mais do que nós?
Um é um, outro é outro
O erro é comum, mas se tornou mais comum ainda, até em matérias assinadas por nomes famosos, com a nomeação de José Antonio Toffoli, 41 anos, para o Supremo. Falou-se muito na ‘jovialidade’ de Toffoli, quando se queria falar em ‘juventude’. Jovialidade é alegria, descontração, não tem nada a ver com idade. Jovem é jovem, jovial é jovial. Pode-se ser jovem sem ser jovial, pode-se ser jovial sem ser jovem. Pode-se, também, consultar o dicionário de vez em quando.
Amo ela
Por falar em consultar o dicionário de vez em quando, dar uma relida nos manuais de Redação também é bom. No caso das regências verbais, essencial. Este texto saiu num portal noticioso importante, de muita leitura, referindo-se à cantora britânica Susan Boyle:
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‘Veja ela cantando Rolling Stones’Dói na vista, não é mesmo?
Ídolos e exemplos
Idário, há muito tempo, não ocupava espaço nos meios de comunicação. Claro, importante é aquilo que acontece agora. Mas sua vida, um exemplo de dedicação e amor ao clube, vale sim uma bela matéria – que ainda não saiu.
Idário foi lateral-direito do grande time do Corinthians Campeão dos Centenários (aliás, foi três vezes campeão, em 1951, 52 e 54). Fez parte da lendária linha média Idário, Goiano e Roberto. Não era um Djalma Santos, um Carlos Alberto, um craque de bola; mas lutar como ele, ninguém lutava. Era o jogador que empurrava o time para a frente. Sempre fez questão de assinar contratos em branco: o que queria, explicava, não era dinheiro, era jogar no Corinthians.
No Campeonato Paulista de 1954, decidido em janeiro de 1955, Idário tomou uma bolada na cabeça que o fez desmaiar, desferida por Jair da Rosa Pinto, famoso pela violência de seus chutes. Não quis sair de campo; voltou, mesmo contra a opinião dos médicos. E só dois dias depois se descobriu que tinha outro problema: um eczema na perna que escondia de todos, para disputar o título. Campeão, sambou com a torcida do Pacaembu ao Parque São Jorge, a 22 km.
Idário, o Sangue Azul, morreu no último dia 18. Alô, imprensa! Tirando o Milton Neves, imbatível no acompanhamento dos velhos ídolos, saíram apenas notinhas pequenininhas, com pouco destaque. Cadê a matéria sobre os craques que jogavam por amor à camisa? Idário não era o único (Nílton Santos foi outro: só jogou no Botafogo do Rio, sempre assinou contratos em branco), mas é um símbolo dos torcedores que sabiam também jogar bola e iam para o campo.
Adeus, Sangue Azul!
Como…
De um jornal líder de mercado:
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‘Menina teria morrido em microondas’Afinal de contas, morreu ou não morreu?
…é…
De um jornal nacional, edição online:
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‘Guacamole ajuda a controlar o colesterol e melhora a circulação’Vivendo e aprendendo. Nos velhos tempos, aqui no Brasil a gente chamava ‘guacamole’ de abacate, e vivia muito bem assim. Daqui a pouco estão chamando nossos velhos conhecidos, os pêssegos, de ‘melocotones’. E quando se cansarem de chamar o abacate de ‘guacamole’, passarão a chamá-lo de ‘avocado’?
…mesmo?
De um grande noticioso esportivo:
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‘Ninguém quer dar brecha no Corinthians’Claro: afinal de contas, trata-se do Corinthians!
E eu com isso?
O mundo é belo, como o título do premiado filme de Roberto Benigni (ou parece belo, embora seja feio, como o próprio filme mostra). Veja só quanta coisa edificante:
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‘Mateus Solano: ele diz é que totalmente fiel e apaixonado’**
‘Jonathan Haagensen beija namorada durante show’**
‘Reese Witherspoon vai à ginástica’O mundo é belo, e estranho.
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‘Casal de coelhos é flagrado matando cobras na Austrália’**
‘Polícia sul-coreana investiga elefante por lançar pedra’**
‘Cachorrinha de Jessica Simpson é raptada por coiote’**
‘Chinesa leva susto ao encontrar cobra com uma perna dentro de seu quarto’O mundo é instrutivo.
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‘Brownies com maconha no recheio podem causar doenças’O mundo também pode ser trivial.
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‘Bruce Willis se diverte jogando água nos paparazzi’**
‘Barack Obama faz lanchinho em rua de NY’
O grande título
A disputa é feroz. Começa com a matéria de um grande jornal, de circulação nacional, que dá margem a todo tipo de pensamento malsão:
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‘Por clássico, São Paulo preserva pendurado’É um título ótimo. Mas enfrenta um imbatível:
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‘Sabedoria de Paris Hilton será imortalizada em livro de citações’Pode haver algo mais notável?
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Jornalista, diretor da Brickmann&Associados