Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Censura de volta, cada vez mais aberta

A Constituição proíbe a censura prévia. Mas a censura prévia está aí, à vista de todos. Os tempos da censura disfarçada, fingida, passaram: agora é às claras. E quase toda semana há um caso novo a relatar.

O mais novo (este colunista quase escreveu ‘o último’, mas infelizmente seria impróprio) atinge a imprensa de Mato Grosso do Sul, proibida por ordem judicial de divulgar notícias sobre os processos contra Douglas Igor da Silva Fernandes – cinco vezes réu, acusado de estupros em série.

Sim, muitas vezes a imprensa pesa a mão, transformando em culpado aquele que é apenas suspeito. Mas este mau jornalismo ocorre, na maioria das vezes, com a preciosa colaboração (e incitação) de delegados, promotores, autoridades em geral. E contra isso, uma ação jornalística francamente imprópria, cabe uma série de reações, inclusive com recurso à Justiça, criminal e/ou com pedido de indenização. O que não cabe, nem pode caber, é o retorno à velha censura.

Douglas Igor da Silva Fernandes não pode ser demonizado: é suspeito de crimes, não criminoso (e por isso há processo: se não houvesse a possibilidade de que seja absolvido, nem julgamento precisaria existir); tem o direito de apresentar sua versão dos fatos à imprensa e à Justiça. Tem, em suma, o direito de defesa. Mas não tem o direito, desculpe-nos o juiz, de silenciar a imprensa.

O retorno da censura exige uma reflexão e uma ação dos jornalistas. É preciso contê-la, e já. Não nos impressionemos com a possibilidade de que, sem censura, algum cidadão seja prejudicado. Este cidadão tem outros recursos para se defender. Não podemos esquecer que a censura sempre foi invocada com o objetivo declarado de nos proteger. E deu no que deu.



Lembrando

A censura, no regime militar, era explicada como ação necessária para proteger a família contra a exposição a palavrões e cenas de nudez no teatro e no cinema, e contra notícias deliberadamente falsas, inventadas para beneficiar uma parte em detrimento de outra. E que é que aconteceu? Foi proibida a divulgação de uma epidemia de meningite em São Paulo, o que impediu que a população se protegesse adequadamente. Foi proibida a novela Roque Santeiro (que teve de esperar a redemocratização do país para entrar na TV). As revistas de mulher pelada só podiam exibir um seio nu; dois, não (mas era permitido mostrar os dois seios através de uma camiseta molhada). E, numa definição imortal, era proibido terminantemente mostrar fotos frontais de traseiros.

Ao mesmo tempo, quando uma menina foi estuprada e morta em Brasília, foi proibida a divulgação do nome dos suspeitos: Buzaidinho e Rezendinho, ambos filhos de importantes figuras ligadas à ditadura.



As contas do presidente

A imprensa passou batida pelo discurso do presidente Lula, logo após a derrota, no Senado, da prorrogação da CPMF. Há dois detalhes preciosos:

1. Lula disse que alguém teria de responder por que a Saúde ‘deixou de receber, a partir de 2010, mais de 80 bilhões’. Ninguém fez a conta, que aliás é muito simples: se a CPMF rendia 40 bilhões de reais por ano, como cansou de dizer o presidente, estaria ele prevendo que, nos dois anos que faltam para 2010, a movimentação financeira vai dobrar? Ou estará falando em todo o tempo de prorrogação da CPMF – e mostrando que a saúde receberia pequena fração do imposto?

2. Lula disse ‘em primeiro lugar’, ‘em segundo lugar’, ‘em quarto lugar’. Qual seria o terceiro argumento, que Sua Excelência nos privou de conhecer?



Amigos e inimigos

A imprensa, preocupada com as articulações políticas e a análise do quadro político pós-rejeição da CPMF (que, a propósito, será igualzinho ao anterior) também deixou passar em branco outro desabafo do presidente: ‘Quem votou contra não usa o SUS’.

O fato é que quem votou a favor também não.



O risco do preconceito

A repercussão foi grande nos Estados Unidos; no Brasil, quase nula. Tudo bem, ele é candidato lá, não aqui; mas, se for eleito presidente da única superpotência do mundo, certamente influenciará nossa vida. E, mais do que isso, o que está em jogo não é apenas o destino do senador Barack Obama, que tenta ser o candidato do Partido Democrático à presidência dos EUA: é a luta contra o preconceito e pela liberdade de religião e de opinião.

A história surgiu em janeiro, publicada pela revista Insight. Informava que Obama, de religião cristã, teria sido educado em uma madrassah, escola tradicional islâmica, em Jacarta, na Indonésia. Boa parte das madrassahs é fundamentalista e ensina o ódio ao Ocidente. Logo, Obama seria um candidato perigoso.

A questão foi esclarecida: Obama realmente estudou numa escola primária mantida por muçulmanos, mas não-fundamentalista. Só que o tema voltou num artigo do Washington Post, no início deste mês. É desleal: não havia qualquer informação nova, nada que já não tivesse sido respondido e desmentido. Parece aquelas coisas de alguns promotores brasileiros, que não se importam com desmentidos: repisam sempre a mesma história, tentando transformá-la em verdade.

Mas o problema é outro: e daí se Barack Obama tivesse mesmo estudado numa escola fundamentalista, destinada a ensinar o ódio ao Ocidente? O importante é saber se ele absorveu esse tipo de atitude e de pensamento; o importante é observar como vive e como faz política nos Estados Unidos. Estudar em escola muçulmana não é crime. Se Barack Obama tivesse ódio a seu país, isso seria um bom motivo para não votar nele. Mas, mesmo que isso lhe tenha sido ensinado, se ele não absorveu esse comportamento, que é que lhe pode ser imputado?

A questão é importante, no Brasil, porque aqui temos um forte componente de preconceito religioso. Uma antiga coluna, de jornal dos mais tradicionais e respeitáveis, tinha o título ‘Movimento Religioso’ – e só tratava da religião católica. Os judeus são criticados por proteger as sinagogas, como se não houvesse risco de atentados. Há reportagens sobre o patrimônio de igrejas evangélicas, mas não se comentam os bens da igreja católica. E as religiões de matriz africana são normalmente apresentadas na imprensa como não mais que superstições.

A eleição de um católico para a presidência dos Estados Unidos, John Kennedy, teve de esperar quase 200 anos. O Brasil já teve um presidente protestante, Ernesto Geisel, mas eleito daquele jeito, por seus colegas militares. Nestas eleições, os americanos podem ter um presidente negro, ou uma presidenta – novidades absolutas em sua vida política. É um avanço. Mas o grande avanço ocorrerá mesmo quando sexo e religião entrarem apenas no currículo dos candidatos, sem influência na questão eleitoral.



O novo alvo

Aliás, por falar em reportagens estranhas, o novo presidente do Senado, Garibaldi Alves Filho, foi alvo de uma acusação tão logo seu nome foi escolhido. Garibaldi, diga-se de passagem, faz parte de uma oligarquia, tem boa parte da família em cargos públicos, possuía concessão de rádio em seu nome (o que a lei não permite), essas coisas. Mas a acusação, agora, se refere a um esquema que o Ministério Público investiga a respeito da quitação de dívidas do PMDB na campanha eleitoral de 2002 – quando o peemedebista Garibaldi se elegeu senador.

Só há um probleminha, exposto envergonhadamente perto do pé da tal reportagem acusatória: o nome de Garibaldi não consta na denúncia da promotoria. E a reportagem foi publicada assim mesmo.



Carrão

Em boa parte da frota nacional de ônibus, está a marca Mercedes-Benz. Em muitos carros está a marca Mercedes-Benz. Aquela vizinha é a dona Mercedes. A cantora famosa é Mercedes Sosa.

Por que tantos colegas insistem em chamar o carro de ‘Mercedez’?



They are the world

O projeto de lei de defesa da língua portuguesa, apresentado pelo deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP), já aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, tem seus aspectos ridículos – teremos, por exemplo, de chamar ‘hambúrguer’ de ‘bife hamburguês’? Ou, pior ainda,considerando-se que ‘bife’ vem do inglês ‘beef’, que por sua vez deriva do francês ‘boeuf’, boi, seríamos obrigados a chamá-lo de almôndega achatada, ou coisa semelhante?

Mas há um setor em que obedecer a este projeto será muito saudável: a publicidade. Além dos ‘sale’ (e que diabos se espera que uma loja faça, a não ser vendas?) e ‘off’ que poluem as vitrines, há os slogans dos produtos, macaqueados de alguma língua estrangeira, preferencialmente – mas não obrigatoriamente – o inglês. Há uma empresa alemã com nome francês que define seus produtos em alemão (‘meisterstuck’, obra de mestre, ou obra-prima) e inglês (‘the art of writing’). Há uma empresa suíça, de fala francesa, que usa o slogan ‘good food good life’. Ou fabricantes suecos de caminhões que preferem o ‘driving progress’. Quantos caminhoneiros falam inglês no Brasil?

E que tal um banco brasileiro cuidar de ‘asset management’?

Vale a pena ler, sobre o tema, um comentário excelente, cheio de humor, do colunista publicitário José Roberto Whitaker Penteado. Clique aqui.



Ossos do ofício

Regina Helena de Paiva Ramos, ótima jornalista e dramaturga, comenta a fixação dos colegas na idade dos personagens, tipo ‘idoso é assaltado’:

‘A respeito da palavra `idoso´, tão utilizada pelos nossos coleguinhas, olhe a frase que um jornalista publicou quando da estréia da minha peça: `Septuagenária lança peça no Espaço Promon´. Não é meiga?’



Risonha e franca

Quatro das cinco chamadas das matérias mais lidas no noticiário internacional de um grande portal jornalístico da internet:

1.EUA detêm novamente ex-professora que fez sexo com aluno

2.Professora foge com aluno de 13 anos nos EUA

3.Professora é acusada de dar cocaína e fazer sexo com aluno de 16 anos

4.Polícia detém professora acusada de fazer sexo com aluno de 4 anos

Parece que os alunos de lá têm bons motivos para gostar da escola.



E eu com isso?

A revelação caiu como uma bomba: não fosse a internet, não fosse a inconfidência de um amigo, a sensacional novidade não seria descoberta nem difundida por todo o mundo, como exige a importância transcendental da notícia:

** ‘Esteticista diz que Ricky Martin é gay’

O progresso das telecomunicações também nos permite descobrir fatos que, de outra maneira, não seriam conhecidos, ou passariam despercebidos:

** ‘Segundo coluna, Paris Hilton passará o Reveillon em Florianópolis’

** ‘Ex-BBB Alemão pega onda na Barra da Tijuca’



Os grandes títulos

Há dois títulos realmente notáveis, nesta semana. Um deles até mereceria um comentário de Madame Natasha, a professora de Piano e Português criada por Elio Gaspari:

** ‘Interrupção no serviço acaba em 60% dos dejetos entulhados’

Como explicaria Madame Natasha, 60% do lixo não foram recolhidos.

Mas o melhor, sem dúvida, é outro:

** ‘Morte por embriaguez no trânsito terá pena maior’

Este colunista nem sabia que era crime morrer no trânsito!

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Jornalista, diretor da Brickmann&Associados