Publicado originalmente na Revista de Jornalismo ESPM
A ascensão e queda de Jair Bolsonaro na opinião pública internacional, sobretudo ocidental, pode ser acompanhada com maior distinção nas organizações que o abraçaram como candidato e agora se veem diante de uma realidade distante daquela que anunciaram, quase prometeram, aos leitores.
Do candidato, enfatizavam as promessas de abertura comercial e financeira. Do presidente, com a perspectiva econômica ameaçada, passaram a enxergar e denunciar o extremismo, o despreparo, a incompetência. A última miragem que se mantém, ainda que esmaecida, é a reforma da Previdência Social.
O exemplo é o Financial Times, jornal londrino que foi comprado pelo grupo japonês Nikkei há pouco mais de três anos e vive um esgarçamento editorial, refletindo a crise por que passa a imprensa do Reino Unido. Veículos antes de referência, como The Economist ou The Guardian, estão na mão de grupos estrangeiros ou financeiramente vulneráveis.
Passada a resistência inicial a Bolsonaro e sob o impacto da prisão de Lula, o correspondente do Financial Times despachou texto que serviu de farol para a City, o cambaleante distrito bancário de Londres, na abertura oficial da campanha em junho. O título, sobre o semblante grave do candidato, era “Brasil precisa de uma dose de amor duro”.
O “militar de extrema direita” já liderava. “O que isso pode significar para os mercados?”, perguntou-se o jornal. “Ele diz que segue seu consultor, o banqueiro formado na Universidade de Chicago Paulo Guedes. Os mercados gostam das inclinações fortemente liberais de Guedes. Uma dose de amor duro é definitivamente o que a economia precisa”.
Com variações, foi o tom que caracterizou a cobertura até a vitória e o começo do novo governo. Num momento especialmente infeliz, o Financial Times procurou dividir o novo ministério em “ideológicos” e “tecnocratas”, sendo os segundos aqueles que via com esperança, Guedes, Sergio Moro e o chanceler Ernesto Araújo.
Com os meses, os três se revelaram ideológicos em diferentes graus e protagonizaram confrontos com o Congresso, comprometendo o quadro de poucas realizações e de popularidade em queda. O jornal passou a criticar Bolsonaro e as divisões no governo, transferindo as esperanças para os generais, agora descritos como “moderados”.
Entrando no segundo trimestre, publicou que, “num país com história de vices subindo ao cargo mais alto, analistas se perguntam se o general Hamilton Mourão já não é um presidente em espera”, president-in-waiting, pronto para assumir “papel crucial para a coesão social e a restauração do crescimento”.
Momento de euforia
Um ano antes da eleição, em outubro de 2017, Paulo Sotero, ex-correspondente de O Estado de S.Paulo e hoje diretor de Brasil no Wilson Center, em Washington, alertou que organizações voltadas à política externa americana estavam abrindo as portas para Bolsonaro, sem se importar com a apologia de “tortura, estupro, racismo e homofobia”.
O objetivo da turnê foi normalizá-lo como um adepto da economia liberal, afirmou Sotero, sobre as visitas de Bolsonaro. O ainda pré-candidato foi recebido na Brazilian-American Chamber of Commerce e no Council on Foreign Relations, coração do establishment de política externa, mas a portas fechadas.
A Americas Society/Council of the Americas (AS/COA), voltada à América Latina, foi além e o entrevistou publicamente, para declarações em que prometia abrir a economia e aparentava, ele também, moderação. Na imprensa, poucos seguiram a postura da AS/COA. Uma exceção, festejada então por Bolsonaro, foi o fabulista Alex Jones, do Infowars.
Antes do fim daquele ano, os encontros nos Estados Unidos e principalmente a afirmação nas pesquisas, que o apresentavam muito atrás de Lula, mas já em segundo, começaram a quebrar as resistências nos mercados financeiros nova-iorquino e londrino e, por tabela, em parte da cobertura.
Bolsonaro deu entrevistas para Bloomberg e Washington Post, com ambos enfatizando que tinha o presidente americano, Donald Trump, como modelo, o que acabou se transformando no principal mote do noticiário em torno dele ao longo de um ano e meio, não só nos Estados Unidos, mas no resto do mundo.
Dos veículos de alcance global, o New York Times foi o que mais reagiu à candidatura de extrema direita, ainda que seu novo correspondente no Rio de Janeiro tenha abraçado desde logo o combate à ordem política, com um perfil acrítico de Sergio Moro no segundo semestre de 2017.
Mas o jornal não limitou sua cobertura e, ao longo da campanha – e depois -, recorreu seguidamente a colaborações de jornalistas estabelecidos no Brasil para reportagens críticas, além de artigos de opinião também questionando a ascensão dos militares e do discurso de ódio.
Chegou a publicar um artigo de Lula, então ainda com esperança de sair candidato contra Bolsonaro, sob o título Há um golpe de extrema direita em andamento no Brasil. Os textos do articulista Jorge Castañeda, ex-chanceler do México, hoje na New York University, foram na mesma direção, insistentemente e sem êxito.
Com a eleição, o New York Times publicou editorial lamentando a “escolha triste”. Passados três meses, diante da “comemoração” do golpe convocada por Bolsonaro, seu correspondente voltou a procurar o agora ministro e relatou: “Moro chamou em 2017 a ‘ditadura militar’ de ‘grande erro’. Nesta semana, porém, o ex-juiz se recusou a dizer se o termo ‘ditadura’ é historicamente preciso”.
Também a AS/COA mudou então de sinal, passando a questionar não só Bolsonaro, mas Moro, a partir dos 100 dias de governo. E abriu as portas para Mourão, o vice, em turnê própria pelos Estados Unidos, que passou por outras organizações americanas do gênero, essencialmente de lobby, inclusive a U.S. Chamber of Commerce.
Publicações europeias como Le Monde, Süddeutsche e Guardian se caracterizaram desde o princípio por cobertura e opinião críticas. O francês, diante do resultado, publicou editorial chorando “o suicídio de uma nação”. A Economist passou um ano e meio tratando de diferenciar seu liberalismo clássico daquele de Guedes e do Chile de Augusto Pinochet.
Também o Wall Street Journal, que trocou de editor em junho de 2018, retomou a tradição de jornalismo independente e crítico. De um lado, despachos dos correspondentes no país questionam seguidamente a extrema direita. De outro, na seção de opinião, colunistas festejam, a ponto de dois deles participarem de um jantar para homenagear Bolsonaro em Washington, em março.
Sem interesse pelo Brasil
Na China, que passou os Estados Unidos como maior parceiro comercial do Brasil há dez anos, a cobertura é de desconfiança desde a campanha, quando o candidato tomou o país por alvo. O Huanqiu/Global Times, tabloide estridente ligado ao Partido Comunista, chegou a publicar editorial avisando que eventuais decisões de Bolsonaro contra Pequim poderiam “custar muito ao Brasil”.
A reação chinesa ganhou contornos concretos com a crescente aproximação do país à Argentina, a ponto de fechar acordo para uma usina nuclear, e com a posterior oferta de trocar a importação de produtos agropecuários do Brasil por concorrentes dos Estados Unidos. A proposta, em meio à negociação da guerra comercial sino-americana, foi divulgada na China e ao redor do mundo.
Mas o noticiário chinês tem evitado maior agressividade nestes primeiros meses de governo, acompanhando os sinais de pragmatismo lançados pelo governo do país, através de declarações do embaixador no Brasil, entre outros, defendendo foco na agenda comercial. É também o ponto que tem sido priorizado pelas autoridades brasileiras, via mídia.
No mais, diminuiu largamente o interesse da imprensa chinesa no Brasil, inclusive no South China Morning Post, de Hong Kong, adquirido por Jack Ma, fundador do gigante de tecnologia Alibaba. O jornal vem se estabelecendo desde então como um veículo de alcance global, na categoria de New York Times e Wall Street Journal – e cada vez menos do Financial Times.
Também a imprensa argentina vem perdendo interesse no Brasil. Os principais jornais de Buenos Aires, Clarín e La Nación, acompanharam as reações de pasmo e depois distanciamento do governo de Mauricio Macri, ao ver seu país fustigado desde o ano passado não só por Bolsonaro, mas também por Guedes.
A decisão do presidente brasileiro de fazer as suas primeiras visitas aos Estados Unidos e em seguida ao Chile, não à Argentina, como era tradição até então, consolidou um noticiário hoje permanentemente crítico da parte do vizinho, tanto em relação ao novo governo como à própria economia brasileira, em processo de estagnação.
Um noticiário que começou quando Guedes, mal encerrada a eleição, falou que Argentina e o Mercosul “não são prioridade”. A correspondente do Clarín, Eleonora Gosman, perguntou se o Mercosul seria “desmontado”. Guedes: “Sua pergunta está mal feita. A pergunta é se vamos comercializar somente com a Argentina. Não”.
A debacle da imagem de Bolsonaro e seu governo no exterior acompanha outra, do próprio país. Ela está retratada tanto em tragédias de repercussão, como os incêndios do Museu Nacional ou do Flamengo, no Rio, quanto na derrocada das referências de liderança empresarial, até dois ou três anos atrás saudadas na imprensa financeira no exterior por seus resultados.
Ainda durante os dois anos e oito meses de governo Michel Temer, em maio do ano passado, a nova política de aumento de preço dos combustíveis levou à greve dos caminhoneiros, que levou à queda do presidente da Petrobras, Pedro Parente, e da economia do país – apagando as esperanças de recuperação criadas dois anos antes, quando da derrubada de Dilma Rousseff.
Já neste ano, 2019, foram à lona os brasileiros da 3G Capital, levando com eles o maior investidor e imagem popular do capitalismo nos Estados Unidos, Warren Buffett. Diante da crise na Kraft Heinz, comprada por eles, passou a ser questionado o modelo da 3G de cortes severos de custo, com resultados positivos de curto prazo para os investidores, mas prejudiciais para as marcas tradicionais que adquiriram.
A trajetória do desastre de Brumadinho, apesar dos esforços de relações públicas do comando da Vale, é o caso emblemático. Segue adiante um relato cronológico montado a partir de entrevistas com profissionais envolvidos no processo que, ao final, não conseguiu segurar o presidente, Fabio Schvartsman, nem a imagem da maior produtora de minério de ferro do mundo.
Desastre iminente
Mal desembarcou no dia 25 de janeiro, horas depois do rompimento da barragem, Schvartsman ligou para seu diretor e consultores de comunicação. Correu depois para o war room, como foi apelidada a sala de guerra montada na sede da Vale no Rio, e ouviu tanto a força-tarefa de mídia como os advogados sobre o caminho a seguir.
Desceu para as primeiras entrevistas à imprensa e posteriormente para uma exclusiva ao Jornal Nacional, da Globo, que testaram e firmaram a estratégia de contenção de danos da mineradora. A prioridade desde aquele primeiro final de semana foi evitar os erros cometidos após a tragédia de Mariana, três anos antes.
A maior falha, como discutido no war room, teria sido uma reação pública arrogante, mais atenta às preocupações judiciais do que às de imagem, sem transparência ou anúncio de ações concretas. Nas discussões no 15º andar da sede da Vale no Rio, chegaram a ser abordados outros casos, como o vazamento da BP no Golfo do México, mas o foco foi não repetir Mariana.
No Jornal Nacional de sábado, dia 26, vestindo camiseta preta, Schvartsman se apresentou humildemente: “Desculpas para vocês, desculpas para todo o mundo pelo que aconteceu”. Já no intervalo, entrou no ar o primeiro comunicado, reproduzido nos jornais dominicais, listando respostas que seriam encaminhadas, imediatamente ou no futuro, como o apoio aos resgates.
Os novos anúncios foram produzidos pela agência África, que suspendeu uma campanha publicitária pronta para a mesma Vale e passou a se concentrar nos letterings, como são chamados. Outra agência, a Artplan, se concentrou nas ações de internet, em coordenação com as demais.
Em entrevistas, comunicados e outras produções saídas da sala de guerra, caso de um vídeo do diretor jurídico, foram prometidas medidas como o abandono de barragens semelhantes e divulgados os primeiros resultados de uma sindicância interna. Nos dias seguintes, as promessas de Schvartsman e ele próprio, nominalmente, foram elogiados por editoriais de New York Times e Financial Times.
A estrutura de gerenciamento da crise ocupou, a partir do primeiro fim de semana, quase todo o andar. Na sala de guerra, as reuniões eram comandadas pelo diretor-executivo de Sustentabilidade e Relações Institucionais, Luiz Eduardo Osorio, por vezes com a participação do próprio presidente.
Foi lá que a consultoria estratégica americana McKinsey & Company fez apresentações – que não se restringiram aos aspectos de mídia da crise. Participaram executivos de comunicação, como o diretor Julio Gama e o gerente Guilherme Scarance, no comando de uma equipe de sessenta profissionais da casa, com apoio ainda da agência In Press.
Também consultores, como a jornalista Ana Tavares, que foi assessora de imprensa do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e atende a Vale há treze anos, e o publicitário Nizan Guanaes, que foi procurado seguidas vezes pelo telefone. Todo o esforço acumulado, porém, não foi capaz de conter a reação à nova tragédia nacional.
Um primeiro tropeço de comunicação aconteceu já na segunda, dia 28, quando o advogado Sergio Bermudes, da Vale, deu entrevista afirmando que a empresa não tinha “responsabilidade” pela tragédia. Foi desautorizado de imediato, e a Vale afirmou seu “compromisso de reparação total”.
Mas os problemas explodiram de fato na sexta, 1º de fevereiro, quando a BandNews obteve e divulgou o vídeo do rompimento, que correu mundo. A rede de TV americana NBC descreveu como “muro mortal de imundície”. O New York Times, como “avalanche de lama”. O South China Morning Post, como “aterrorizante onda de lixo”. O canal russo RT, como “apavorante”.
A partir daí, não havia o que fazer quanto à imagem da Vale. A tragédia voltou seguidas vezes às primeiras páginas e aos canais de notícias no exterior. Até que, no dia 3 de março, os correspondentes de New York Times, Wall Street Journal e outros despacharam que Schvartsman e oito executivos estavam de saída, em resposta ao “maior desastre do gênero em mais de cinquenta anos”.
Nem assim a pressão cedeu. O preço mundial do minério de ferro alcançou o maior valor em cinco anos, mantendo o foco de cobertura na Vale, que entrou abril com pelo menos três grupos de investidores europeus, de Alemanha, Suécia e Reino Unido, vendendo as participações na empresa, por “perda de confiança”.
Ao fundo, a agência de notícias Associated Press começou a listar as multinacionais que, depois de décadas, decidiram abandonar indústrias no país, como o laboratório suíço Roche e a montadora americana Ford.
***
Nelson de Sá é jornalista. Escreve sobre mídia e cultura em sua coluna na Folha de S.Paulo.