Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Deixem o Gusmão em paz!

Era inevitável que os ignorantes em matéria de Bartolomeu de Gusmão se ouriçassem com o desaparecimento do padre Adelir Carli, no domingo (20/4). O resultado dessa excitação foram algumas matérias jornalísticas inteiramente fantasiosas que não ajudam a tirar do esquecimento o cultíssimo e inventivo jesuíta nascido em Santos – nem trazem de volta o sacerdote paranaense devotado à causa dos caminhoneiros.

A matéria da Folha de S.Paulo (23/4, pág. C-4, publicada na retranca ‘Memória’) e a da revista Época (edição 519, de 28/4, pág. 14) bateram os recordes de confusão:

** Bartolomeu de Gusmão (irmão de Alexandre de Gusmão, considerado o patriarca da nossa diplomacia, braço direito de D. João V) fez em 1709 uma experiência na corte lisboeta com uma ‘máquina de voar’. Na realidade um balão com ar aquecido, não muito diferente dos que são soltos nas festas juninas no Brasil.

** O objeto subiu alguns metros, deslocou-se e desceu. Gusmão não estava preso a ele. Seu mérito é o da ascensão de um objeto com a ajuda de um gás mais leve do que o ar. Jamais houve exibição popular do invento.

** A notícia espalhou-se por Lisboa e como a censura era rigorosa os comentários vieram sob a forma da gozação e da chacota. Conhecem-se algumas dezenas de versinhos e sonetos ridicularizando o padre brasileiro e a sua pretensão de voar. As troças mais numerosas são da autoria de Thomas Pinto Brandão, satirista oficial da corte (que aliás viveu no Brasil), inseridas posteriormente no seu famoso Pinto Renascido (Lisboa, 1732).

** Os desenhos da ‘Passarola’ são posteriores, apócrifos, fantasiosos, provavelmente de origem italiana.

** Bartolomeu de Gusmão foi sempre prestigiado pelo monarca, nomeado orador na Capela Real e um dos 50 fundadores da Academia Real de Ciências.

** Jamais foi perseguido pela Inquisição.

** Culto e sensível, aberto ao mundo, relacionado com cristãos velhos e cristãos novos, foi influenciado por idéias messiânicas então correntes. Fascinado com elas, arrastou o irmão mais jovem, também religioso, para a Espanha. No caminho, já ‘falto de juízo’, morreu em Toledo (novembro de 1724). Preocupado com as idéias do irmão e a sua cumplicidade numa possível heresia, o jovem João Álvares de Santa Maria, carmelita calçado, apressou-se a apresentar-se à Santa Inquisição de Lisboa para contar a aventura.

** O historiador Afonso de Taunay publicou diversos livros sobre Gusmão, o mais conhecido é A Vida Gloriosa e Trágica de Bartholomeu de Gusmão (São Paulo, 1936). O livro de José Saramago Memorial do Convento é pura ficção, maravilhosa literatura, sem qualquer compromisso com a verdade.

Padre Voador é o merecido cognome do ingênuo e devotado padre Adelir Antonio de Carli, que levantou vôo preso a mil balões.

Bartolomeu de Gusmão deveria ser chamado de Padre Rebelde ou Padre Herege.