Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

E acabamos nos dispersando

Na terça-feira, 21 de abril, completam-se 30 anos de um triste evento que paralisou o país e lançou multidões às ruas: a morte de Tancredo Neves, o político que se elegeu presidente e trouxe de volta o regime civil e democrático, mas que, doente, não chegou a ocupar sua cadeira no Palácio do Planalto.

Esplêndida figura, Tancredo Neves. Um sábio da política, foi deputado, ministro da Justiça, primeiro-ministro no regime parlamentarista, governador de Minas – e jamais foi acusado, mesmo tendo adversários aguerridos, perseverantes, respeitados e competentes como Carlos Lacerda, Magalhães Pinto, Affonso Arinos, de qualquer ato de corrupção.

Avesso a demonstrações públicas de valentia, manteve-se fiel ao presidente Getúlio Vargas até o último instante.

Moderadíssimo, foi um dos poucos políticos importantes a se opor à deposição do presidente João Goulart.

Tranquilo, suave, sem que aparentasse impor sua vontade, comandou a oposição na derrubada do regime militar.

Discretíssimo, virou ídolo popular. Seu enterro levou o povo às ruas, em lágrimas.

Mestre da negociação, aberto a conversas com os adversários – a quem jamais considerou inimigos –, foi implacável na demolição das bases políticas do regime ditatorial. Uma de suas últimas frases foi o apelo à união de todos os democratas, das mais diversas tendências, para consolidar uma Nova República livre de todos os vestígios da ditadura: “Não vamos nos dispersar”.

E não é que nos dispersar foi a primeira coisa que fizemos? A guerra do nós contra eles, o ridículo nível da argumentação política – “reacionários, coxinhas, vão pra Cuba, verde-amarelo sem foice e sem martelo, nós roubamos mas vocês roubaram também” – isso é consequência da incapacidade da elite política brasileira de trabalhar em conjunto pelo país. Cada grupo foi buscar seus objetivos próprios, alguns amplamente descritos no Código Penal. E todos contaram com a cumplicidade preguiçosa da imprensa. todos contaram com alguma cumplicidade da imprensa. Jornalistas contratados clandestinamente foram encarregados de produzir propaganda disfarçada de jornalismo, para distribuição nas redes sociais, tarefa exercida por internautas pagos, militantes apaixonados e robôs, com o objetivo de minar a reputação dos adversários, sem se deter em preocupações menores como poupar as famílias e evitar temas que nada têm a ver com política. E os meios de comunicação não se moveram. Houve jornalistas que mudaram de lado abruptamente e, por coincidência, apresentaram rápido crescimento no padrão de vida. Foi como se nada tivesse acontecido para as empresas jornalísticas: ninguém foi tentar descobrir como é que alguém melhora de renda de maneira tão evidente num tempo tão curto.

Nos últimos anos, só um caso foi revelado: o de um jornalista que prestava serviços propagandísticos ao governo paulista, do PSDB, sob a cobertura de “serviços editoriais”. Sua empresa era contratada há dois anos por uma das agências de publicidade que prestam serviços ao governo Geraldo Alckmin e ele produzia conteúdo de agressão contra os adversários, principalmente o PT e a presidente Dilma Rousseff, para distribuição nas redes sociais e na Internet. O governo, naturalmente, não sabia de nada.

Não sejamos injustos: o jornalista que foi exposto não é o único, nem seu empregador é o único a tentar construir um falso consenso nos meios eletrônicos. A coisa se tornou tão aberta que virou costume.

Voltemos a Tancredo Neves, cujo conselho não conseguimos seguir. A frase “não vamos nos dispersar” está no seu discurso de 15 de janeiro de 1985, logo depois de ser eleito presidente da República. Um trecho atualíssimo:

“Se todos quisermos, dizia-nos, há quase duzentos anos, Tiradentes, aquele herói enlouquecido de esperança, poderemos fazer deste País uma grande Nação. Vamos fazê-la”.

 

Retrato da dispersão

O clima do nós contra eles na política ia acabar levando a isso. O fotógrafo Beto Novaes, do Estado de Minas, é parecido com Lula. Parecido, não igual; parecido o suficiente para fazer brincadeiras, não mais do que isso. Mas, no meio da manifestação contra Dilma e o PT, acabou sendo agredido, apenas por ser parecido com Lula. Outros foram atacados por usar camisas vermelhas, como se isso fosse crime; mas, enfim, a escolha da cor da camisa é pessoal, e foi interpretada como provocação (e se fosse? Por que a violência?) Mas Beto Novaes não tem culpa de ser parecido com Lula. E dificilmente poderia ser confundido com alguém que, a título de provocação, fingisse ser Lula: estava com crachá, perfeitamente identificado, e ainda por cima com aquela roupa de repórter fotográfico, cheia de bolsos com lentes, câmeras diversas, baterias de reserva. Levou chutes, empurrões, e teve de fotografar a manifestação de longe, protegendo-se contra novas agressões.

Não dá: é preciso reduzir o nível de agressividade. Partidos, governos, oposições – e imprensa – têm um papel a desempenhar, um papel moderador. De que adianta protestar contra a corrupção pondo a violência no lugar da ladroeira? Não há programa partidário que dê certo (e admitindo-se, gentilmente, que haja programas partidários) num país que se inciviliza a passos rápidos.

 

Torrando dinheiro

A propósito, voltemos a um tema recorrente nesta coluna: se os governos não tivessem verba de publicidade, boa parte da produção de insultos, perfídias e difamações desapareceria por falta de combustível. Governo é, por definição monopólio; monopólio não precisa ser propagandeado. Que se cortem as torneiras do desperdício. Com o fim do desperdício, com o fim da absurda verba de propaganda dos Governos, morre também um pedaço da corrupção. E nada se perde.

 

O menos que satisfaz

Voltando a outro tema recorrente, a outra frase recorrente: os meios de comunicação continuam acreditando que, diante da retração do público e da propaganda, vão se safar piorando a qualidade de seus produtos. Estão tendo êxito na piora da qualidade – basta ler qualquer veículo impresso para descobrir que as concordâncias foram para o brejo, junto com aquela vaca que tosse, as regências foram esquecidas, os cacófatos proliferam e o texto está péssimo. Assistir à TV permite descobrir que Gisele Bundchen é “incançável”, ceja lá iço o que for. Mas não é oferecendo menos conteúdo, mais mal escrito, despido de qualquer vislumbre de talento, que o público e a publicidade se sentirão tentados a gastar seu dinheiro com eles.

Houve época, há muitos e muitos anos, em que um jornal de grande importância tinha um grupo de pessoas que analisava os erros, descobria se a responsabilidade era dos redatores ou dos revisores, conversava com quem não prestava a atenção devida à qualidade do texto (porque outro motivo não poderia haver: conhecer o idioma era essencial para conseguir o emprego). Hoje este mesmo jornal, premido pela falta de tempo, pelo excesso de trabalho (os repórteres têm de escrever a mesma matéria várias vezes, com textos diferentes, para a agência, a edição on-line, os twitters, e finalmente a edição impressa), aceita publicar, em vez de “por ora”, o “por hora”. Mais que um erro, mais que um erro grosseiro, chega a ser um desrespeito à memória da família que tanto cuidava de seu jornal e o queria como propagador de cultura.

Alguns exemplos notáveis daquilo que acontece quando não há profissionais em quantidade suficiente, ou com qualidade abaixo da aceitável:

Sobre o casamento de Preta Gil, havia um “por cada convite”.

Ainda na área dos cacófatos, o título informa que “Judoca galã que conquistou Grazi Massafera faz sucesso”.

Sobre um crime, “fingir um falso sequestro”. Se alguém finge que o sequestro é falso, terão tido a intenção de dizer que é verdadeiro?

Num título enorme, “Prostesto contra o McDonald’s”. Prostesto será, quem sabe, um protesto mais veemente?

Sobre abastecimento de água, “uma moradora (…) estava cheia de vazamentos”. E ninguém se referia a incontinência urinária, não.

Um exemplo esplêndido do “tudo pela economia” está aqui, num título:

“Cielo fica com a prata nos 50 m borboleta e revela que será pai”.

Que é que tem uma coisa com outra? Nada – mas, publicando junto, quem sabe se gasta menos papel?

O recorde vem do Esporte: em um grande título, informa-se que Dunga, como técnico da Seleção, após sete jogos continua “em victo”.

Há muitos anos, o lendário Lee Iacocca assumiu o comando da Chrysler e sua primeira medida foi colocar, na fábrica, um carro japonês. Os funcionários de todos os escalões puderam examiná-lo e conferir o cuidado com que era produzido. Iacocca costumava dizer que os carros japoneses estavam conquistando o mercado americano pelo simples motivo de que eram melhores. No Brasil, os veículos tentam reconquistar um mercado perdido fazendo o que podem para ser piores.

 

As novidades do texto

Por falar em Gisele Bundchen, este colunista testemunhou há dias dois fatos inacreditáveis, numa só coluna de correção de erros:

** Corrigiu-se o nome de Gisele publicado 25 anos atrás (seu sobrenome tinha sido apresentado como “Lundchen”). Deve ser uma busca pelo Prêmio Guinness de correção mais atrasada de uma falha do jornal;

** O título da nota era “Baiana de 14 anos vence final do Look of the Year”. Este erro não foi corrigido: Lundchen passou a Bundchen, mas a gaúcha Gisele continuou sendo baiana para o jornal e aguardando nova correção – em 2040, talvez, daqui a 25 anos?

 

Como…

De um grande jornal impresso

** “Ibrahimovic marcou duas vezes na vitória por 4 a 0 do PSG sobre o Bastia na final da Copa da Liga Inglesa”.

É verdade: Ibrahimovic fez dois gols e o PSG venceu o Bastia por 4×0. Só que ambos os times são franceses.

 

…é…

De um jornal impresso de grande circulação, comentando o retorno de Luiz Bacci à Rede Record:

** “Marcelo Rezende esculhamba Bacci no ar e pinta o menino de ouro de amarelo”

Só que não: é provável que o autor pense que esculhambar é a mesma coisa que elogiar. Porque Marcelo Rezende só falou bem do colega.

 

…mesmo?

De um portal informativo da internet, ligado a um grande grupo de informação:

** “Baleado na cabeça dirige desorientado”

Que é que se podia esperar?

 

Frases

>> Do internauta Alexandru Solomon: “Adultos agora brincam de colorir, informa o Estadão. A febre mundial embute a irresistível tentação de pintar ciclofaixas.”

>> Do líder ecologista Eduardo Jorge: “Legal você indo contra a terceirização porque escraviza o trabalhador. Só não deixa verem tuas postagens antigas apoiando o Mais Médicos, ok?”

>> Do internauta Daniel Federman: “Eu sou contra o impeachment da Dilma. Impeachment é muito pouco.”

>> Da internauta Letícia Dornelles: “Pelo jeito, com tanto que roubaram da Petrobras, a Lava Jato vai ter mais fase que o jogo Super Mário.”

>> Do jornalista Gabriel Meissner: “Minha declaração de imposto de renda: Receita, se você achar a minha renda, me avisa e eu pago o imposto.”

>> Da internauta Mercedes Liste: “Quantos cairão até chegar no Chefão?”

>> Do jornalista Carlos Matos: “A ‘Pedalada Fiscal’ da Dilma está relacionada com o programa das ciclovias do Haddad?”

>> Do escritor e cronista Humberto Werneck: “Jornalista é o único profissional que conta desvantagem.”

>> Do blogueiro Josias de Souza, comentando a decisão do PMDB de votar uma lei que reduza o número de ministérios: “Se Brasília fosse uma cozinha, o PMDB colocaria o açúcar na lata de sal, com um adesivo na frente onde se lê café.”

>> Do jornalista Cláudio Tognolli: “Dupla boa: Haddad defende as bicicletas e Dilma, as pedaladas.”

 

E eu com isso?

Finalmente, um refresco no noticiário pesado da política, da ladroeira, das prisões, das xingações. Aqui ninguém xinga ninguém: neste território, todos são amigos, ou se não são não faz mal, todos falam bem uns dos outros, mesmo quando um descobre que o outro já sabia que sua esposa iria abandoná-lo muito antes de ele mesmo dispor dessa informação. As moças são apanhadas em poses involuntárias por dezenas de paparazzi, que fazem fotos iguaizinhas (e as legendas também são iguaizinhas). Todos namoram, curtem, malham, ficam sarados, viajam, usam roupas novas, experimentam mais cortes de cabelo que jogador de futebol. E, se o caro leitor acha que essas notícias não têm importância, puxe conversa com o vizinho. Tente primeiro discutir com profundidade o projeto da terceirização. Depois, troque pelas notícias que encontra aqui. E vai comprovar o que é que interessa de verdade.

** “Dilma chega em silêncio ao Panamá para Cúpula das Américas”

** “Britney Spears aluga suíte de três andares”

** “Solange Gomes faz fotos em banheira”

** “Bradley Cooper e Suki Waterhouse são flagrados”

** “Sem os filhos, Fernanda Lima e Rodrigo Hilbert curtem praia no Rio de Janeiro”

** “Família Beckham prestigia desfile em Los Angeles”

** “Sem sutiã, mulher de Murilo Rosa surge sexy”

** “Selena Gomez diz que está feliz com suas novas curvas”

** “Luana Piovani é clicada dormindo durante voo”

** “Michael Bublé publica foto de bumbum alheio e causa polêmica”

** “Maridão de Gisele na primeira fila”

** “Taylor Swift fala sobre sua primeira vez no Brasil”

** “Ararinha-azul nasce de mãe brasileira e pai alemão”

** “Charlize Teron diz que Sean Penn é gostoso”

** “Barbudo, Cauã Reymond busca Sofia na escola”

** “Lily Allen radicaliza e exibe os cabelos coloridos”

 

O grande título

A disputa é boa, mas pelo segundo lugar. O primeiro tem dono.

Então, primeiro mostremos os vices:

** “NFL terá primeira juíza mulher em tempo integral, diz jornal”

Qual a novidade? Curioso seria se tivesse a primeira juíza homem.

** “Governador Alckmin inicia as escavações da Linha 6 – Laranja”

A construção do Metrô anda tão devagar que o início das escavações já tem a presença do governador e rende manchete de página. A próxima linha do Metrô, pelo jeito, vai ter manchete até no lançamento da pedra fundamental.

E agora, o título imbatível:

** “Stênio Garcia conta apelido que deu à mulher: Chupetinha”

Pois é.

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Carlos Brickmann é jornalista, diretor Brickmann&Associados Comunicação