Tuesday, 24 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Reabilitação de Hipólito é façanha histórica

O diligente jornalista-historiador Matías M. Molina está com suas leituras atrasadas. Ou talvez esteja armando com documentos contemporâneos as mesmas confusões que faz com citações antigas.

A réplica que agora oferece não se refere ao último texto deste observador sobre o tema, como se poderia supor (“A Inquisição existiu. E provocou tremendo atraso”), mas ao anterior (“Embargo suspenso: a imprensa já pode discutir seu passado”).

E neste texto mais recente foi registrado um merecido e rasgado elogio à maneira elegante com que corrigiu a omissão que se estendia ao longo de 10 meses, pois só no fascículo 21 da fascinante série sobre a história da imprensa brasileira lembrou-se de mencionar o papel seminal desempenhado pelo patriarca da imprensa brasileira, Hipólito da Costa, e o seu Correio Braziliense.

O louvor, porém, foi lido ao revés ­– isso acontece, sobretudo quando o elogio incomoda a terceiros. Por isso está sendo reiterado e explicitado para que não reste nenhuma dúvida sobre as razões que o motivaram: a grande imprensa brasileira felizmente reviu a sua opção reacionária, obscurantista e mantida ferrenhamente desde 2008 ao reconhecer que, embora maçom e vítima da Inquisição portuguesa, Hipólito da Costa tem o direito a ser tratado como fundador da imprensa livre no Brasil e em Portugal.

Série incompleta

Certamente por modéstia ou talvez assustado com a tremenda repercussão do implícito recuo, é possível que o jornalista-historiador Matías M. Molina queira retomar uma polêmica que para este observador encerrara-se ao constatar o inequívoco reconhecimento da importância de Hipólito, seu jornal e, sobretudo, do papel da censura clerical portuguesa no atraso cultural e político da sua colônia americana.

Queira ou não o autor da peça reparadora, a sua publicação no suplemento cultural de um veículo do porte de Valor Econômico (fruto da associação de dois dos maiores grupos jornalísticos do país) constitui per se uma autêntica reabilitação, ainda que no velho estilo stalinista – amanhã poderá ser reformada. A verdade é que, com quase quatro anos de atraso, a grande imprensa brasileira afinal encara a verdade no tocante à sua própria história.

Aleluia! Hosana! Salve! Esta revisão não poderia passar em brancas nuvens porque os preconceitos e embargos contra Hipólito da Costa começaram na realidade em 1908, há 104 anos, quando o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro resolveu comemorar o primeiro centenário da imprensa brasileira.

Aqui ingressamos em seara nova: Alfredo Ferreira de Carvalho foi encarregado de organizar a exposição comemorativa do primeiro centenário. Nos textos publicados em duas edições da Revista do IHGB (1908), seus companheiros são mais prudentes do que Matías M. Molina e o apresentam apenas como “bibliófilo e estimável homem de letras”, nunca como historiador, muito menos emérito.

Na Gênese e Progressos da Imprensa Periódica no Brasil, Carvalho confirma a modéstia de seus dotes e a intensidade dos seus preconceitos. Neste folheto de 89 páginas, apresenta uma precária compilação de títulos e reproduções de capas sem qualquer referência aos três séculos de censura inquisitorial, nem ao Correio Braziliense ou a Hipólito da Costa. Muito menos a outros periódicos que comungavam do ideário maçônico. Que gênese é esta que omite aquele que marcou o DNA da imprensa brasileira?

A mostra do primeiro centenário foi acidentada e algo farsesca: a Revista do IHGB só publicou dois volumes dos três prometidos – o volume I, parte I, com a mencionada compilação de Alfredo de Carvalho (na pág. XII a sua qualificação); o volume I, parte II com a compilação dos veículos publicados no Norte-Nordeste.

Não foi publicado o volume II que, segundo o anúncio da “Comissão de Redacção” (da qual fazia parte o conde Afonso Celso, o inspirado autor de Porque me ufano do meu país), deveria conter os veículos publicados da Bahia até o Sul, compreendidos os estados da região central.

Embargo perverso

Nos registros sobre o primeiro centenário da nossa imprensa na revista da mais importante instituição histórica do país não há qualquer referência a Hipólito da Costa nem ao Correio Braziliense. Um século depois a grande imprensa nos ofereceu uma reprise: nos festejos do segundo centenário nada sobre Hipólito, nada sobre o Correio Braziliense, nada sobre as causas do nosso atraso na Era Gutenberg.

Se a deferência incomodou o jornalista-historiador sugere-se que se acostume: seu texto não é um recuo, é um avanço. Entrou para a história.

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Adendo: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (fundado em 1838) foi o precursor dos estudos sobre a Inquisição no Brasil. Os trabalhos de Francisco Adolfo de Varnhagen publicados em sua revista trimestral constituem um valioso acervo sobre a ação do Santo Ofício no Brasil. A transcrição do processo que culminou com a execução em Lisboa do poeta e comediógrafo carioca Antonio José da Silva, o Judeu (Tomo 59, 1896), embora incompleta, contém provas definitivas da ascendência do inquisidor-mor sobre a Coroa. Nos primeiros anos da República, o monarquista e católico Afonso Celso não escondia sua implicância com o positivismo e com a maçonaria (que considerava sua antecessora). Isso talvez explique, mas não justifica, o perverso embargo imposto a Hipólito da Costa nos festejos do primeiro centenário da imprensa brasileira.