Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Língua e sociedade

Como já disse anteriormente neste espaço, muitos pensam nas línguas tendo como pano de fundo apenas a questão da correção. Essa mentalidade alimenta os discursos da decadência, velhos como a humanidade. Desde que se tem notícia, camadas (superiores?) da sociedade afirmam que a língua está em decadência. O que alimenta essa tese é a crença de que teria havido uma língua perfeita: a de antes de Babel, o grego antigo, o latim clássico, até mesmo o português antigo, que era, em certo sentido, o latim “errado”. Mas línguas nunca foram perfeitas, pelo menos não no sentido que se atribui à palavra nesses “centros” de pensamento. É pura ideologia, no sentido mais banal da palavra.

Outros tantos pensam que as línguas são meios de comunicação. O que importa é a mensagem, o objetivo é ser bem-sucedido (chega-se a ouvir que o erro seria não ser entendido!). O curioso é que, às vezes, a melhor comunicação (publicitária, literária, humorística) é aquela em que a mensagem está implícita. Ora, o implícito é o que não é comunicado, por definição.

Mas uma língua é bem mais do que tudo isso. Seria o principal divisor entre humanos e não humanos. Além disso, estaria fundada em princípios universais, quiçá biológicos, alguns deles inatos, tese obviamente controversa, mas que se reforça numa época em que pesquisas genéticas ganham espaço e força.

Apesar disso, há questões “superficiais” que são extremamente interessantes, porque marcam as línguas vivas em seu funcionamento real (e perceptível) no interior das sociedades. Por mais que as pesquisas sobre os universais sejam relevantes, não se pode perder de vista as relações entre as línguas e aspectos das sociedades em que são faladas.

Alguns fenômenos são bem visíveis. Alguns são mencionados em todos os manuais introdutórios, que necessariamente discutem as relações entre língua e cultura. A questão começa na relação com a natureza: até que ponto o ambiente interfere na língua? Certamente, climas frios ou quentes condicionam o léxico e estão na origem de algumas metáforas. O caso sempre mencionado é o do número de palavras para neve em línguas esquimós, ou para camelo entre os beduínos, ou para dinheiro e cachaça entre nós. Mas quem não vê logo que se trata de relação língua-ambiente mediada pela cultura que avalia esses objetos?

Palavras novas, ou sentidos novos de palavras antigas, surgem para designar elementos novos que são relevantes (termos do futebol ou da informática, por exemplo), termos desaparecem porque se referiam a “objetos” que desapareceram ou perderam importância. Quem ainda sabe o que é “concunhado”?

Informalidade contagiosa

Neste texto, quero enfatizar uma questão mais geral, que, a meu ver, afeta a “gramática” do português brasileiro. Refiro-me à questão da informalidade e a sua contraparte nos usos (ou desusos) de determinadas formas.

Ousaria dizer que uma das principais características da sociedade brasileira nas últimas décadas é o aumento claramente visível da informalidade. Onde se usava terno e gravata, usa-se jeans e uma camisa ou camiseta. Onde se usava sapato, usa-se tênis. Usa-se tênis até mesmo com terno… Onde se usava calça informal, usa-se uma bermuda. A bermuda era uma peça juvenil; hoje, é usada por pessoas de todas as idades. Uma viagem de avião era cerimoniosa, e as roupas eram compatíveis com essa avaliação. Hoje, é como viajar de ônibus: bermudas e sandálias havaianas ‘vestem’ os passageiros. Usam celulares caros, laptops e iPads, mas não usam mais roupas formais.

Há pelo menos dois domínios em que a informalidade pode explicar a preferência por determinadas formas da língua – com o consequente esquecimento progressivo das outras, suas concorrentes. Um é o das formas de tratamento: faz muito tempo que desapareceu a forma “vós” – e, como consequência, a flexão verbal correspondente (deveria ser claro que estudar essas formas é estudar questões antigas). Além disso, assiste-se ao progressivo desaparecimento da forma “senhor/senhora” primeiro, nas famílias, depois, nos locais de trabalho.

Nas salas de aula das universidades, essas formas são cada vez mais raras, mesmo em defesas de tese, que são um pouco mais formais. Praticamente todo mundo se trata por você (ou tu): netos falando com avós, filhos com pais, vendedores com clientes, alunos com professores etc.

Só em contextos muito formais, em que o abandono das formas de rigor pode implicar até processos (por falta de decoro), é que as formas antigas continuam: nas sessões das câmaras e assembleias legislativas, nos tribunais etc. Observe-se que as formas de tratamento são “compatíveis” com exigências relativas ao vestuário (jornais noticiaram que a ministra Carmen Lúcia, do Supremo, foi a uma sessão de calça comprida; o gesto foi interpretado como prova de suas posições “rebeldes”).

Faz que não manda, mas manda

Outro fato que a informalidade ajuda a explicar é a ‘queda’ das formas imperativas. Quem é que ainda manda dizendo “faze uma salada / faze uma resenha?” (nem menciono “fazei de novo”, porque essa forma tem a ver com “vós”). Damos ordens empregando as formas verbais que, segundo as gramáticas, seriam as que se empregariam para fazer pedidos (“faça uma salada” / “leia a bula”) – isto é, as subjuntivas. Isso quando não empregamos formas que seriam descritivas (“faz uma salada” / “lê isso pra mim”)!

Essa mudança (é uma mudança!) não deve ser interpretada como sinal do fim da autoridade ou das posições sociais diferenciadas. Não é porque uma dona de casa diz a sua empregada “faz uma saladinha” que a empregada pode não obedecer. O gerente pede (ou sugere) gentilmente a um subordinado: “Faz um telefonema / quem sabe você liga pra ele?” O que acontece se o subordinado deixa de fazer o trabalho?

A rigidez das relações sociais não diminui nem desaparece pelo fato de que não é marcada em todas as suas dimensões. Também não é verdade que os chefes deixaram de dar ordens a seus subordinados. O fato de que não se empregam as formas imperativas (antigas) não significa que não se mande mais. Significa apenas que parece mais adequado fazer de conta que não se manda. É que o simples fato de que uma pessoa trabalha sentada “atrás” da mesa é suficiente para que os outros saibam como devem interpretar o que ela lhes “pede”.

“Dá uma licencinha? Só um minutinho!” pode ser suficiente para que o subordinado saia correndo da sala para não chatear o chefe…

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[Sírio Possenti é professor do Departamento de Linguística da Universidade Estadual de Campinas]