Jornalista adora dizer que jornal velho só serve para embalar peixe. Aos 80 anos, completados em 19/2, Alberto Dines garante que não faltará papel para os embrulhos: afirma que o jornal não deixará de existir. “O jornal é que amarra os fatos” diz. Ex-ocupante de cargos de chefia na Manchete, Última Hora, Jornal do Brasil e Folha de S.Paulo, Dines é fundador do Observatório da Imprensa, que, na internet e na TV Brasil, avalia o trabalho dos jornalistas. Nesta entrevista, ele faz críticas à imprensa, analisa a internet e defende um controle sobre a mídia eletrônica.
Quando você foi para o Jornal do Brasil?
Alberto Dines– Cheguei no JB em 1962, depois da reforma que mudou o jornal. E o Brito (Manoel Francisco do Nascimento Brito, diretor do jornal), queria que eu desfizesse a reforma, eu me recusei. Disse que, aos poucos, faria alguns avanços, sem chocar o leitor.
Por que ele não gostava da reforma?
A.D.– Ele implicava com tudo que era bom, queria acabar com tudo de grandioso que a reforma trouxe. Os jornais brasileiros ficaram com essa mania de mudar. Hoje, se faz de propósito, para chocar o leitor, que acaba ficando baratinado com tantas mudanças. Criou-se uma velocidade que é devoradora.
O que mudou com o golpe militar de 1964?
A.D.– Não mudou nada, até porque os jornais apoiaram o golpe, com exceção da Última Hora. O que mudou foi em 1968, com o AI-5 (Ato Institucional Número 5, que suspendia as garantias constitucionais). Passamos a ter uma ditadura: censura, Congresso Nacional fechado. Eu então pedi ao Brito para avisar o leitor que o jornal estava sob censura. Chegaram os censores militares, eles mandaram trocar algumas páginas, mas, na oficina, mudamos tudo. (Na primeira página do dia seguinte, ao lado do logotipo do jornal, havia o lembrete: “Ontem foi o Dia dos Cegos”. Também na capa, a nota sobre o tempo informava: “Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos.”).
E você foi preso…
A.D.– Fui levado para a Polícia Federal e, depois, para a Vila Militar. Fui solto na véspera de Natal e tive que me reapresentar no dia seguinte. Voltei e fiquei mais dois dias. Em janeiro, tive que depor por cinco horas.
Como surgiu a histórica capa do jornal que noticiou, em 1973, a derrubada do presidente chileno Salvador Allende?
A.D.– Os militares não queriam dar impacto à morte do Allende, proibiram manchete. Então decidi fazer a primeira página sem manchete, sem foto. O impacto acabou sendo muito maior.
Sua atitude teve consequências…
A.D.– Sim, fui demitido.
Para citar o título de um de seus livros: qual é hoje, na era da internet, o papel do jornal?
A.D.– Esse papel não mudou, o jornal é a referência dos acontecimentos. O período em que o jornal vive é o de 24 horas, quando o dia nasce e morre. É um período noticioso completo. O jornal tem essa característica, fecha o ciclo com lógica, costura tudo, arruma, edita, seleciona, hierarquiza. Isso, a internet não pode fazer porque é um fluxo contínuo. Esta característica da internet tem consequências diretas na profundidade da matéria, vai no fígado da profundidade da matéria. O fluxo contínuo, como na internet, é muito bom para se saber o que está acontecendo. Mas isso não permite ao leitor entender o que ocorre; o jornal do dia seguinte, sim.
A preocupação de diretores de jornais de todo o mundo é com o futuro do jornal impresso diante das novas tecnologias…
A.D.– Eles estão discutindo algo que não é discutível. Ficam falando de modelo de negócio, não tem nada disso. O Gutenberg, que inventou os tipos móveis, e o impressor Aldo Manuncio, que criou o livro, não estavam pensando em criar modelo de negócios, uma coisa pré-fabricada. O negócio vai sendo construído aos poucos.
Mas você acha que os jornais impressos vão acabar?
A.D.– Eu acho que não, o jornal vai continuar como referência. É o jornal que amarra os fatos, não surgiu outra mídia periódica capaz de dar esta amarrada. Se não houver a sistematização da notícia, você perde a referência, perde a análise. Você pode pegar um papel de 400 anos e ver que tem algo ali. Não sei se o que é escrito nas novas mídias vai sobrar. Os originais do meu livro sobre a Inquisição estão em um disquete grande. Resultado: não há como ler o que está escrito lá.
O que o jornal tem que fazer para sobreviver?
A.D.– Ele vai absorver outras ferramentas. O jornal absorveu o telégrafo, a fotografia. E vai absorver a Internet, muitos jornais e revistas estão fazendo isso. A versão digital do The Economist está muito interessante. Desenvolve alguns assuntos, o leitor do papel sabe o que está sendo informado e pode acessar o conteúdo na internet.
Os jornais terão de ser mais profundos?
A.D.– Têm que ser. Se o jornal baixar o nível para ser efêmero, ele perderá sua função. Não precisa falar de filosofia todas as semanas, mas precisa dar essa amarração, esse sentido às mudanças. Estamos falando de mudanças, a notícia é uma mudança. O jornal tem que ser diferente da internet, se começar a ser igual a internet, estaremos ferrados. Por enquanto, a internet vende audiência, não vende consistência.
Você acha que a liberdade de imprensa no Brasil está ameaçada?
A.D.– Tem uns malucos, aloprados que se acham de esquerda, mas não são, que defendem a necessidade de forças “progressistas” editarem jornais. Isto, dizem eles, para evitar a maré neoliberal. Mas eles nunca conseguiram fazer isso, até porque não têm competência, não têm um veículo com credibilidade. Mas, em outros países da América Latina, há uma corrente caudilhesca que busca mesmo a supressão da liberdade.
O que você acha da criação de um conselho de comunicação?
A.D.– O conselho não vai fazer nada, até porque se tentar fazer será censório. Existe sim a necessidade de regulação da mídia, eu sou a favor do que o presidente Franklin Roosevelt, em 1934, criou no Estados Unidos, o Federal Communications Commission, um órgão controlador da mídia. Eu acredito nisso, a mídia eletrônica é uma concessão e não pode fazer o que quer. Vamos tentar fazer aquele mínimo que fizeram nos Estados Unidos. Na Inglaterra, na Câmara dos Comuns, tramita a possibilidade de criação de um sistema de autorregulação, com poder de convocar jornalistas para depor. Seria um comitê formado não por jornalistas, mas pela sociedade.
Esse controle seria em que sentido?
A.D.– Para evitar o que foi feito pelo Murdoch (Rupert Murdoch, dono de jornais que utilizaram meios ilegais para obter informações). O The Economist, que é superconservador, reconheceu que é preciso haver um órgão regulamentador. O Brasil começou a pisar na bola em matéria de imprensa ao criar um organismo supraempresarial que estabeleceu uma disparidade sociopolítico-cultural, a ANJ (Associação Nacional de Jornais). A ideia é legítima, que as empresas tivessem uma entidade onde se encontrassem e discutissem seus problemas. Mas a entidade não poderia fazer lobby, atuando fora de seus veículos; teria que permitir o direito de discordância. A imprensa brasileira não se discute. Não precisa xingar a mãe como se fazia antes, mas tem que haver discordância entre os jornais. É isso que faz com que os aloprados digam que é preciso criar um polo contrário, acaba funcionando como pretexto. Se existe esse polo (a ANJ), eles decidem criar outro polo. A ANJ atua de forma deletéria, tem posições que anulam as posições dos jornais.
Como você avalia a imprensa brasileira hoje?
A.D.– O problema é a concentração muito grande, não temos imprensa comunitária. Sempre tivemos e hoje ela está desaparecendo. Essa concentração vai lá pra cima, com o agravante que hoje ela se confunde, nos estados, com o coronelismo político.
Pegando o mote do Observatório da Imprensa. Como você lê jornal?
A.D.– Eu leio como crítico, é essencial. A beleza desse mote [“Você nunca mais vai ler jornal do mesmo jeito”] é que ele contém a semente do ceticismo. É importante espalhar a ideia de que o jornal precisa ser discutido.
De onde vem este espírito crítico e inquieto?
A.D.– Pode ter algo genético. Eu sou profundamente judeu, sem ser praticante. O judeu é um inconformado. Jesus Cristo, na cruz, reclama: “Deus, por que me abandonaste?”. Isso é muito judaico, arguir, contestar. O jornalista precisa ser inconformado.
O que você mudaria nos jornais brasileiros? O que faria se, agora, o telefone tocasse e você fosse chamado para chefiar um jornal?
A.D.– A primeira resposta seria dizer: “Aceito”. Em seguida, teria ver o que fazer, analisar o veículo, o público. Eu tenho ideias, mas, para mostrá-las, tenho que ser chamado.
***
[Bruno Trezena e Fernando Molica, de O Dia]