O lendário jornalista Júlio de Mesquita Filho costumava usar palavras pouco conhecidas em seus textos, normalmente eruditos e muito bem cuidados. Um dos editorialistas mais próximos a ele, Miguel Urbano Rodrigues, estudioso e culto (hoje virou político e está no Partido Comunista Português), grande consumidor de bons livros, reclamava: “O leitor não vai entender”. A resposta-padrão do dr. Julinho: se a palavra estava no dicionário, era só procurá-la.
Outros tempos, sem dúvida – quando um bom jornal contribuía para a educação tanto quanto uma escola. As coisas mudaram: hoje, na luta insana dos meios de comunicação para que todos digam as mesmas coisas, as frases nem sempre têm muito a ver com os fatos. Por exemplo, afirma-se que, com o último corte nas taxas de juros do Banco Central, o Brasil “agora” deixou de ser o campeão mundial dos juros reais. Não é bem assim: se hoje, com 9% de taxa Selic, os juros reais brasileiros são de 3,4%, enquanto os da Rússia alcançam 4,2%, a taxa anterior, de 9,75%, já era inferior à dos russos (4,2 contra 4,15).
E a história do empresário japonês? Segundo diz um grande jornal, citando o cavalheiro, “começamos nossa internacionalização em 2088, quando formos para Taiwan”. Bom, ainda não chegamos a 2088. Talvez haja um erro de digitação e o ano seja 2008. Mas e o “quando formos”? É futuro, sem dúvida. Afinal de contas, o cavalheiro é empresário ou adivinho?
Mas o melhor caso talvez seja o de uma conhecida marca de roupas íntimas. A empresa, como boa parte de suas concorrentes, usa um nome que lembra a França; mas é brasileiríssima – e, como seu dono participa ativamente de articulações políticas e empresariais, o fato é amplamente conhecido. Menos por um grande jornal, que entrevista uma jovem sobre os problemas enfrentados por seu marido, e garante que sua loja é franquia de uma firma francesa. Se até essa informação está errada, como o consumidor de notícias pode confiar nas outras?
Mulher é mulher
Quando um homem é nomeado para o Supremo Tribunal Federal, discute-se seu passado, analisam-se suas ideias, procura-se esmiuçar suas ligações políticas. Quando uma mulher chega ao Supremo – como no caso da ministra Ellen Gracie Northfleet, que até já se aposentou – não apenas os senadores que a sabatinaram como boa parte dos meios de comunicação analisaram a maneira como se vestia.
Vários homens foram candidatos à Presidência da República. Quando uma mulher se candidatou, levaram-na à TV não para expor suas ideias, mas para verificar se sabia fazer omelete. Aliás, não sabia. E isso não tinha a menor importância: ela era candidata à Presidência, não a chefiar a cozinha do palácio.
Agora é o caso da mulher de Carlinhos Cachoeira, que deu entrevistas explosivas, relativas aos problemas que seu marido enfrenta. Mas enfrentou discriminação assim mesmo: embora viva com Cachoeira há um bom tempo, a reportagem se referia a ela como “casada” – assim mesmo, entre aspas. Ou, referindo-se à época em que iniciou seu relacionamento com ele, disseram que “casou” – entre aspas. Ou seja, sem juiz e sem padre, sem vestido de noiva (de preferência branco, com longa cauda), sem daminhas de honra, sem buquê, sem Mendelsohn, não é casamento. O mundo jornalístico, que já esteve na vanguarda do comportamento, terá retrocedido?
Poderia ter sido
Um bar na Asa Sul de Brasília foi invadido por assaltantes, na semana passada. Diz o título de um grande portal noticioso: “Romário e Spike Lee escapam de assalto em bar da área nobre do DF”. Terão conseguido fugir quando perceberam os bandidos? Terão ido para algum local protegido ao qual os assaltantes não chegaram? Não, nada disso: eles tinham ido embora duas horas antes do assalto. Não escaparam de nada, nem de ninguém: simplesmente não estavam no local quando o assalto ocorreu.
Antigamente esse tipo de relato se chamava “apelação”. Valia qualquer título para que o leitor desavisado acabasse lendo a matéria.
E, a julgar pelo critério da notícia, muita gente escapou desse assalto. Um fiel leitor desta coluna, por exemplo, esteve nesse bar no dia 16 de dezembro de 2010, no início da noite. Saiu um ano, quatro meses, nove dias e umas cinco horas antes de os assaltantes chegarem.
Bandidos supostíssimos
No título de um grande portal noticioso:
** “Bandidos assaltam casa de jornalista no Morumbi, SP”.
Ou seja, emite-se um juízo de valor: o veículo de comunicação garante que são bandidos.
No texto:
“A casa de (…) foi assaltada (…) por seis bandidos armados”.
Reafirmado: são bandidos.
Continua:
“A quadrilha acabou levando (…)”
Houve outro crime, portanto: formação de quadrilha.
Segue:
“Antes de fugirem, os bandidos (…)”
Bandidos, sem dúvida.
Mas há um parágrafo destoante:
“A empregada acompanhou os suspeitos (…)”
Em resumo, são bandidos, várias vezes bandidos, formam uma quadrilha, mas em certas ocasiões, sabe-se lá com que critérios, se transformam magicamente em suspeitos. Vamos escolher?
Políticos x jornalistas 1
Fernando Sarney, comandante do império erigido por seu pai, o senador José Sarney, continua ganhando: O Estado de S.Paulo completou na semana passada mil dias sob censura. O jornal está proibido de publicar as informações de que dispõe sobre a Operação Boi Barrica, da Polícia Federal, em que um dos investigados é Fernando Sarney. Em julho de 2009, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal proibiu o jornal, a pedido do filho do senador Sarney, de publicar informações relativas á Boi Barrica (agora rebatizada de Operação Faktor).
Em dezembro de 2009, Fernando Sarney quis desistir da ação, mas o jornal recusou a desistência: pediu que o processo prossiga, a fim de que seja decidido na Justiça, com o mérito julgado e fazendo jurisprudência. São dois anos e meio e até agora o caso não foi julgado.
Políticos x jornalistas 2
O STJ negou pedido de indenização do PT contra a Editora Abril, que, na opinião do partido, move “campanha difamatória” contra ele, pela revista Veja. É a quarta vez que o partido pede indenização à Abril, e as decisões judiciais consideraram até agora que a Veja tem seu conteúdo protegido pela liberdade de informação e expressão.
Bom livro no forno
Geraldo Guimarães, um dos grandes repórteres fotográficos do país, lançou em 1978 um livro de fotojornalismo com flagrantes históricos das ditaduras que dominaram a América Latina nas décadas de 1960 a 1980. A edição se esgotou em quatro meses. E agora, 34 anos depois, revista e ampliada, em edição bilíngue português-francês, será novamente lançada no mercado. Para que se tenha uma ideia da qualidade do trabalho, o texto em francês é elaborado por um dos mais respeitados jornalistas da Europa, Edouard Bailby, do Le Monde e da revista L’Express. E as fotos – bem, pouca gente entende mais de América Latina do que Geraldo Guimarães. Livro para ler, ter, desfrutar, mostrar.
Como…
De um grande jornal impresso:
No título: “Arrastão em prédio de avenida de SP faz 20 vítimas; 4 carros são roubados”
No texto, “também foram roubados dois veículos Toyota, um Fielder e um Corolla, usados na fuga”.
Somaram marcas e modelos (tanto o Fielder quanto o Corolla são produtos da Toyota) e transformaram dois em quatro.
…é…
De um grande portal noticioso, falando sobre novelas:
** “No passado, Carminha foi vendida por um liquidificador”
De duas, uma:
a) ou Carminha foi vendida por alguém que recebeu um liquidificador em troca (o que não está dito no título)
b) ou liquidificadores andam fazendo tráfico de mulheres e ninguém tinha noticiado isso até agora enfim, se até cachoeiras contam cascatas e malfeitoreiam por aí, por que os liquidificadores não podem desempenhar atividades ilegais?
…mesmo?
De um grande portal noticioso:
** “Zé Mané se casa com mulher que puxou cana após tentar matá-lo”
Mundo, mundo
As pessoas que falam, segundo informam os meios de comunicação, podem não estar vivas, a menos que o declarem especificamente. Um bom exemplo:
** “Chávez quebra silêncio após 10 dias e desmente rumores de morte”
E quem está sumido está sumido, por mais incrível que possa parecer.
** “Corpos de jovens sumidos não foram encontrados”
E, se tivessem sido encontrados, não estariam sumidos.
** “Moranguinho nega 'bola nas costas' e diz que MC Naldo era ciumento”
Talvez a ruptura do namoro não tenha ocorrido apenas pelos ciúmes.
E, no resto do mundo, continuam acontecendo coisas notáveis. Por exemplo, na Romênia, um motociclista com uma mulher nua na garupa foi multado. Motivo: ela estava sem capacete.
E eu com isso?
E chega de hard news. No fundo, no fundo, todo mundo (ou quase todo mundo) gosta mesmo do noticiário frufru. Uma boa fofoca, então, é a glória!
** “Descuidada, Juju Salimeni deixa calcinha preta aparecer”
** “Decote de atriz de ‘Capitão América’ mostra demais em premiação”
** “Reynaldo Gianecchini acena para fotógrafos em aeroporto”
** “Kesha posta foto em que aparece fazendo xixi”
** “Juliana Paz circula em aeroporto do Rio”
** “Príncipe William protege Kate Middleton de chuva em Londres”
** “Letícia Spiller faz compras em shopping na Zona Oeste do Rio”
** “Scarlett Johansson exibe nova tatuagem”
** “Íris Stefanelli: ‘Não sei se vou casar de branco’”
** “Hotéis dos EUA oferecem luxo extravagante para cachorros”
O grande título
Há bons exemplares nesta semana. Mas um deles é fantástico!
Comecemos com o carro grávido:
** “Próprio carro com filha dentro mata condutor”
Continuemos entrando no debate futebolístico:
** “Muricy discorda de Ganso e diz que jogo do São Paulo foi bem adiado”
Como é que se calcula? Realizar o jogo três dias depois, por causa do campo inundado pelas chuvas, é bem adiado ou mal adiado?
E, enfim, o título fantástico:
** “Os fantoches da PM são finalistas do Prêmio Mário Covas”
Por incrível que pareça, ninguém está insultando a Polícia Militar paulista. O título se refere a um teatro de fantoches destinado a educar para o trânsito. E a parte mais interessante é que o título foi feito por gente a favor.
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[Carlos Brickmann é jornalista e diretor da Brickmann&Associados]