Tortura nunca mais? Não se sabe: há cada vez mais críticas à anulação de provas obtidas por meios ilícitos. No momento, as críticas se concentram em interceptações telefônicas ilegais; mas, meios ilícitos por meios ilícitos, uns bofetões, um ou outro choque, algumas queimaduras de cigarro também o são. E uma pesquisa recentíssima de uma organização séria, o Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo, mostra que 47,5% da população do país são favoráveis à aceitação, pela Justiça, de provas obtidas via tortura.
Há um fato visível: em grande número de casos, a roubalheira é visível, mas a Justiça anula as provas ilegalmente obtidas. A opinião pública fica revoltada, e tem toda a razão. Joga-se então a culpa nos “bons advogados”, como se ser bom profissional fosse um defeito, na “leniência da Justiça” – e a imprensa tem papel importante nessa distorção da verdade. Porque o erro habitualmente não está na ação dos advogados, nem nas decisões judiciais, mas nas investigações preguiçosas ou malfeitas da polícia e do Ministério Público. A investigação foi substituída pelo grampo – como, nos tempos da ditadura, as investigações tinham sido substituídas pela tortura. Investigar dá trabalho e exige competência.
A última moda é criticar advogados por defender clientes cuja fonte de renda seja ilegal; portanto, os honorários da defesa seriam pagos com dinheiro ilícito. Há aí um erro de raciocínio: sem que o cliente seja julgado, como considerar que sua fonte de renda é ilegal? Como considerar que o dinheiro que irá pagar os honorários é ilícito? Essa decisão quem toma é a Justiça; e só o fará depois do julgamento, com o réu devidamente defendido, na forma da lei.
A moda da crítica aos advogados se avolumou com a informação (não confirmada: pode ser verdadeira, mas ninguém a assumiu) de que Márcio Thomas Bastos estaria cobrando R$ 15 milhões de Carlinhos Cachoeira para defendê-lo. Não é uma quantia tão fora assim dos padrões do mercado: há muitos e muitos anos, os advogados Eduardo Alckmin e Antônio Carlos “Kakay” de Almeida Castro receberam honorários de R$ 32 milhões, pela atuação num caso que terminou em acordo da Caixa Econômica Federal com um fundo de pensão. Um bom advogado amigo deste colunista disse que, para defender um dos possíveis alvos da CPMI, cobraria algo como R$ 10 milhões. E lembrou que esse dinheiro não se refere a um trabalho curto: são casos que podem ficar dez anos na Justiça, e os honorários devem remunerar o tempo que for consumido.
No caso Márcio Thomaz Bastos-Carlinhos Cachoeira, há entretanto um fato que merece maior discussão: a investigação foi efetuada pela Polícia Federal, cujo chefe era o então ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos. Não há impedimento legal para que Márcio, cumprida a quarentena legal, cuide do caso. Mas deveria existir algum impedimento, em casos desse tipo? Há gente séria que pensa assim e apresenta bons argumentos em defesa dessa tese.
Uma boa questão para a OAB discutir.
Do mestre ao mestre
Certa vez, o advogado Evaristo de Moraes escreveu a seu amigo Ruy Barbosa pedindo-lhe opinião sobre o convite que recebera para defender Mendes Tavares, inimigo político de Ruy. A resposta de Ruy Barbosa trouxe a seguinte recomendação: “Recuar ante a objeção de que o acusado é ‘indigno de defesa’ era o que não poderia fazer o meu douto colega, sem ignorar as leis do seu ofício, ou traí-las. Tratando-se de um acusado em matéria criminal, não há causa em absoluto indigna de defesa. Ainda quando o crime seja de todos o mais nefando, resta verificar a prova; e ainda quando a prova inicial seja decisiva, falta, não só apurá-la no cadinho dos debates judiciais, senão também vigiar pela regularidade estrita do processo nas suas mínimas formas”.
Erro de função
Duas cartas publicadas num grande jornal a respeito da atuação de Márcio Thomaz Bastos como advogado de Carlinhos Cachoeira chamaram especialmente a atenção deste colunista. Uma critica o jornal por ter publicado um artigo de Márcio – como se, entre as funções da imprensa, não estivesse a de abrir espaço para mostrar os diversos lados de uma questão. Outra critica Márcio Thomaz Bastos por “aceitar defender um suposto contraventor e, para tanto, receber um dinheiro cuja origem é duvidosa ou criminosa”. Se nem o leitor tem certeza de que Cachoeira seja um contraventor – tanto que o chama de “suposto contraventor” – como conclui, antes de qualquer decisão da Justiça, que a origem do dinheiro “é duvidosa ou criminosa”? Pior: no complexo de negócios de Carlinhos Cachoeira, há empresas legais. Também neste caso o dinheiro tem origem “duvidosa ou criminosa”?
Mas o que chama a atenção nesta carta, principalmente, é a conclusão: “O foco do Ministério da Justiça, que Márcio Thomaz Bastos comandou, não é exatamente julgar e condenar os criminosos e contraventores?”
Não, não é; e o jornal perdeu uma excelente oportunidade de esclarecer o tema. O leitor levado a erro tende a colocar culpas em quem não as tem e a absolver quem deveria ser o responsável por elas.
Quem “julga e condena” ou “julga e absolve” é o Poder Judiciário. O Ministério da Justiça faz parte do Poder Executivo. O nome Ministério da Justiça se presta a equívocos, e melhor seria se fosse “Ministério dos Assuntos Jurídicos” (aliás, quando foi criado, em 1922, seu nome era “dos Negócios da Justiça”. Sua função não é condenar e julgar: é tratar de temas ligados à ordem jurídica, cidadania e garantias pessoais – que passam por imigração, direitos de índios, política nacional de arquivos. No total, tem 16 atribuições diversas, nenhuma das quais invadindo a competência da Justiça, o que seria ilegal.
O risco da grande onda
Os meios de comunicação estimulam esse tipo de pensamento, às vezes por motivos ideológicos, às vezes por sensacionalismo, às vezes porque é mais fácil reagir com um “esfola” aos gritos de “mata!” em vez de tentar debater serenamente o tema. E ideias do tipo “a polícia prende mas a Justiça solta” são perigosíssimas. O problema é que boa parte da opinião pública só percebe esse perigo quando a Polícia prende e a Justiça já não pode soltar.
Olha a censura aí, gente!
A Justiça do Paraná acaba de proibir o livro Anderson Spider Silva, a biografia do campeão mundial de pesos-médios do UFC, Ultimate Fighting Championship. Motivo: num determinado trecho de sua biografia, Anderson afirma que o proprietário da academia Chute Box, Rudimar Fedrigo, “é uma pessoa do mal”, que prejudicou muita gente. Rudimar entrou com processo contra Anderson Silva e a Editora Primeira Pessoa/Sextante, com pedido de liminar para a proibição do livro.
A liminar foi concedida, obrigando a Sextante a recolher em dez dias todos os livros já distribuídos, sob pena de multa de R$ 300 por exemplar que continue à venda. E a Constituição Federal, superior a todas as leis do país, que proíbe a censura? A Constituição vai bem, obrigado, guardadinha em alguma gaveta e sem aplicação prática, ao menos no caso da censura. O curioso é que há vários remédios legais contra calúnia, injúria e difamação. Por que optar pela censura?
É estranho: Ruy Castro teve proibido seu magnífico A Estrela Solitária, biografia do notável ponta-direita Manuel dos Santos, Garrincha, um dos maiores craques brasileiros de todos os tempos. A guerra judicial levou dez anos e Ruy Castro a venceu. Junto com ele, venceram os leitores, venceu a informação, venceu a Constituição. Só não venceu a família de Garrincha, que em vez de aproveitar o sucesso do livro que enaltecia seu chefe preferiu brigar (e o motivo da briga foi estranhíssimo: a folhas tantas, diz-se que parte do sucesso de Garrincha com as mulheres se devia ao avantajado tamanho de seu pênis).
Enfim, esperemos que Anderson Silva vença mais uma vez. Por ele e pela liberdade de expressão, que não pode ser ameaçada impunemente.
Tem quem goste
Há quem diga que parte da cultura brasileira está ainda atrelada ao centralismo burocrático do reino de Portugal, nos tempos em que mandava por aqui (e que, além de proibir impressoras na colônia, criou a censura antes de haver imprensa). Pode ser; o fato é que frases como “isso devia ser proibido”, em geral dedicadas a programas de TV que a pessoa não aprecia, são muito comuns.
Há muitos e muitos anos, quando o Ricardo Kotscho tinha cabelos e o jovem político Álvaro Dias não os tinha, a revista Realidade publicou uma excelente reportagem sobre partos. Na capa, a foto de uma criança nascendo. A revista foi apreendida, por ordem de algum idiota que achava que nascer era um ato obsceno. Naquele dia, este colunista conversou com um jornaleiro que estava indignado com a apreensão. Mas não havia motivos para otimismo. O jornaleiro disse: “Imagine, apreender uma revista tão boa!” E, apontando para uma série de outras revistas, completou a frase: “Deviam apreender esta, esta e mais esta”.
O prêmio certo
Lúcio Flávio Pinto, do Jornal Pessoal, de Belém do Pará, e Alberto Dines, deste Observatório da Imprensa, receberão o Prêmio Vladimir Herzog na categoria Especial. A decisão foi tomada por unanimidade da Comissão Organizadora. A entrega do Prêmio Especial Vladimir Herzog ocorrerá em 23 de outubro, no TUCA – Teatro da Universidade Católica de São Paulo.
Como…
De um grande jornal:
** “Caos na Líbia e no Iêmen não pode servir de exemplo resolver o caos na Síria”
Deve ter sentido, claro. Basta cortar algumas palavras, talvez acrescentar outras.
…é…
De um grande portal noticioso:
** “Shopping de SP é multado (…) por falta vaga em garagem”
Esqueceram o acento agudo: “faltá”.
…mesmo?
Ah, a falta que fazem os revisores!
** “Do Gabinete do ministro da Justiça, portaria (…):
“O ministro de Estado da Justiça (…) resolve:
“Art. 1º – Designar o servidor (…) para atuar corno responsável pelo (…)”
Retificação no Diário Oficial da União, dois dias depois:
“Na Portaria (…), referente à designação do servidor (…), onde se lê: ‘corno responsável’, leia-se: ‘como responsável’”.
Reaprendendo a falar
Atenção: jornalista já não faz entrevista. Agora, faz uma “sabatina”. Uma emissora de TV está “sabatinando” os candidatos à prefeitura de São Paulo, outra emissora “sabatina” a ministra do Meio Ambiente.
A sorte dos telespectadores é que, considerando-se a audiência média das emissoras citadas, ninguém vai ter oportunidade de colar nessas sabatinas.
Mundo, mundo
Está na imprensa inteira: Maria Sharapova ganhou o Grand Slam de Paris. Ou Roger Federer ganhou o Grand Slam de Wimbledon.
Só que o Grand Slam não se ganha num só torneio: ganhar o Grand Slam significa, por definição, ganhar os maiores torneios no mesmo ano. Em tênis, são quatro: Roland-Garros, Wimbledon, U.S. Open e Australian Open. Vitória é vitória, ponto. O Grand Slam é um conjunto especial de vitórias numa só temporada.
E eu com isso?
O moralismo continua em alta nas colunas de frufru: o pessoal acredita que a modelo apareceu sem calcinha porque estava distraída, que foi surpreendida com a queda da alça do tomara-que-caia, que a artista mostrou mais do que devia, que roupas absolutamente normais são a encarnação do pecado carnal. Por exemplo:
** “Rihanna dá passeio com blusa ‘reveladora’ e faz alegria de paparazzo”
A tal “blusa reveladora” era um bustiê. E daqueles com muito pano.
** “Danielle Souza optou por vestido que valoriza busto da noiva”
Lembre de Danielle Souza, a Mulher Melancia, esposa de Dentinho. Que vestido ela poderia usar que não valorizasse seu busto?
** “Madonna exibe o próprio seio num show em Istambul”
Ainda bem: a coisa ficará ruim quando quiser exibir o seio de outras.
** “Malvino Salvador e Sophie Charlotte curtem praia no Rio”
** “Kanye West diz que quer ter filhos com Kim”
** “Filhos de Adriane Galisteu e Scheila Carvalho têm suas primeiras festas juninas na escolinha”
** “Novela tenta reanimar interesse por luta livre na Colômbia”
“‘Ser mulher do Ronaldo dá trabalho’, diz Bia Antony”
** “Funcionários de shopping são flagrados fazendo sexo em banheiro”
Mas o melhor é a explicação da diretoria do shopping:
“Realizamos constantemente treinamentos com os funcionários (…)”
O grande título
Há dois grandes exemplares em disputa. O primeiro se refere ao auxiliar favorito da presidente Dilma Rousseff, o ministro Fernando Pimentel, que andou reforçando o patrimônio com consultorias, conforme disse, e agora, muito tempo depois, interpelado pela terceira vez pela Comissão de Ética da Presidência da República, promete dar mais detalhes do caso:
** “Fernando Pimentel promete explicar trabalho como consultor”
O ministro está violando a regra número um do debate político: antes nunca do que tarde.
O outro título trata de uma pessoa comum, mas que, ao que parece, é responsável por uma extraordinária façanha:
** “Mulher morre em acidente na BR-101 Norte, em Joinville, e fecha pista por mais de duas horas”
E isso, saliente-se, depois de morrer.
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[Carlos Brickmann é jornalista e diretor da Brickmann&Associados]