Dizem que é do falecido ministro Roberto Campos o espirituoso comentário que comparava as estatísticas ao biquíni: mostram tudo, menos o essencial. Independentemente da autoria, todo jornalista deveria ter essa frase em mente quando fosse trabalhar com números: porque melhora o humor e ao mesmo tempo alerta para as responsabilidades sobre a interpretação – isto é, sobre a qualidade – daquilo que se quantifica.
Mas isso vale para quem quer trabalhar a sério. Não parece ser o caso do Globo, que vem se esmerando num espetáculo de mistificação. Na edição de segunda-feira (20/8), a manchete mais uma vez agride a inteligência do leitor minimamente crítico: “Greve já custou R$ 1,2 bilhão em 7 anos”, seguida de subtítulo (“Fiscais receberam salários mesmo sem trabalhar 513 dias desde 2005”) e olho (“Professores das universidades federais estão chegando a mil dias de greve em 32 anos. Governo quer fechar acordo com servidores esta semana, mas sindicatos recusam”).
Nem vale a pena assinalar, por óbvio, o sentido da última frase: o governo tem a maior das boas vontades, mas os sindicatos, ah, os sindicatos são intransigentes. Porém é claro que é esta a lógica orientadora da reportagem, que abre a página de Economia com a manchete “A pesada conta da greve”.
Três meses, mil dias
Quem se dispuser a ler o texto vai deparar com informações genéricas, incompletas ou baseadas em projeções. Por exemplo, ainda no lide: “O cálculo dos prejuízos considera a média dos salários pagos, a preços de hoje, aos cerca de 60% dos servidores dessas categorias que teriam aderido às paralisações e operações-padrão nesses últimos anos” (grifos meus).
Porém, o mais escandaloso é a referência aos professores das universidades federais, em greve há três meses: o jornal busca o número mítico “mil dias” para robustecer o texto e lhe ampliar a perspectiva de impacto. Não importa o método canhestro dessa “conta de chegar”, através da qual se pode comprovar qualquer coisa, pois o que se deseja demonstrar já está dado de saída. Assim, para obter o número pretendido, foi necessário recuar 32 anos. Começamos essa contabilidade, portanto, em 1980, mas a data é convenientemente escondida.
O leitor médio – já que falamos tanto em médias – faria essa conta simples? Onde estava esse leitor em 1980? Se por acaso ainda não era nascido, qual será a sua informação sobre o panorama político brasileiro em 1980?
Foi justamente em novembro de 1980 que os professores das federais iniciaram uma longa greve que resultou na queda do ministro Eduardo Portella, por se recusar a confrontar os grevistas – seu famoso comentário “eu não sou ministro, eu estou ministro” sintetizava sua instabilidade no cargo –, e em conquistas fundamentais para um esboço de autonomia universitária e estruturação da carreira docente.
Em 1980 estávamos ainda em plena ditadura, num processo conturbado de distensão em que o general-presidente prometia uma democracia sob pena de prender e arrebentar quem fosse contra – e quem era contra arrebentava como podia, com atentados a bancas de jornais que vendiam publicações contestadoras, com bombas na sede carioca da OAB e na Câmara dos Vereadores, até a ação de maior impacto, felizmente frustrada: o ataque ao Riocentro, durante o show do 1º de Maio do ano seguinte.
Uma greve nesse contexto é a mesma coisa que uma greve nos tempos de hoje? É possível misturar tudo num mesmo balaio descolado da história apenas para fabricar um número exuberante?
Que efeitos esse tipo de “informação” pode produzir junto ao público, só uma pesquisa de longo prazo sobre recepção poderia indicar. Mas não seria demais sugerir que esse “leitor médio” tende a ignorar certas armadilhas discursivas – como esta de falar em 32 anos e omitir o ano de 1980 – e a fixar a informação sobre os “mil dias” de greve.
É assim que se anabolizam os números para dopar o público.
Vestindo a carapuça
Nas últimas semanas, este Observatório publicou uma série de artigos sobre a maneira pela qual O Globo brincava com números, cálculos, percentuais e estatísticas (ver “O jornalismo cego às armadilhas do discurso oficial”, “A manipulação dos números” e “Alhos, bugalhos e contas tortas”). Alguns leitores acrescentaram argumentos esclarecedores em seus comentários. Nesses casos, não há muita dúvida sobre a atitude deliberada do jornal em promover tamanha desinformação. Porém, em outros, a confusão é provavelmente involuntária, embora resulte no mesmo efeito.
É o que evidencia, justamente, na mesma edição de segunda-feira, a reportagem sobre “O ocaso de uma campeã”, a respeito da queda abrupta do desempenho dos alunos de uma cidade no Vale do Ribeira.
Em 2005, Barra do Chapéu apareceu na liderança do ranking do Ideb, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, com média de 6,8. “Virou estrela nacional”, diz o texto, e sustentou “reportagens que a retrataram como receita de sucesso”, ainda por cima considerando a pobreza da região. Sete anos depois, o “choque de realidade”: a média caiu para 4,8. Lá no meio da matéria, a partir de declaração da secretária de Educação da cidade, o jornal indica o que pode ter ocorrido: em 2005, de duas classes de 30 alunos, apenas os 15 melhores fizeram a prova. No ano passado, todos realizaram o exame, entre os quais nove “com problemas psicológicos confirmados por laudo”.
A reportagem conclui: “Das lições que podem ser tiradas em Barra do Chapéu, talvez a mais importante é que é preciso cautela na análise do resultado de cidades muito pequenas antes de mostrá-las como receitas de sucesso”.
Resta saber se o próprio jornal vai vestir a carapuça.
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[Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)]