Há muitos anos, nos tempos mais duros da ditadura militar, um jornalista pediu a amigos, policiais do DOI-Codi, que o levassem à cela onde estavam presos alguns religiosos. Segundo sua versão, queria saber como um religioso conciliava Marx e Cristo. Segundo seus inimigos, queria participar das torturas.
Este colunista, que o conheceu e trabalhou com ele, não acredita que o jornalista quisesse participar das torturas. Mas estava errado, com tortura ou sem tortura: um jornalista não tinha o direito de se colocar ao lado de policiais do DOI-Codi, a não ser para cumprir seu dever de entrevistá-los. Confraternizar, nunca.
Jornalistas e policiais se encontram muitas vezes ao longo da vida. Mas confraternizar faz mal: eles são eles, nós somos nós. E, no caso que agora chama a atenção, há um fator agravante: a exclusividade não valia o deslize. Foi um acontecimento notável? Foi; mas estará esquecido em poucas semanas. E a foto do repórter, grotescamente fantasiado de policial federal, esta permanece.
A rede de TV conseguiu o furo – um furo que de pouco lhe serve, já que, com ele ou sem ele, tem a liderança absoluta e massacrante de audiência. O repórter conseguiu um furo – um furo insignificante perto de outros que já obteve, nos quais demonstrou elevada competência, muito senso de oportunidade e ampla capacidade de ação, sem precisar de ajuda de tiras, majuras e meganhas.
A propósito, podemos classificar de furo uma encenação montada especialmente pela Polícia Federal para alegrar os poderosos da mídia?
O furo é importante para um jornalista. Mas orgulhar-se de ser jornalista é mais importante. Fantasiar-se de repressão é rejeitar a profissão que escolhemos.
O preço e o custo
Do excelente colunista Ricardo A. Setti, no não menos excelente portal No Mínimo: ‘Todo furo tem um preço. Certos preços, porém, o jornalista não pode pagar’.
Público e privado
Um único grupo jornalístico merece a confiança da Polícia Federal: na TV, seu repórter foi o único a ser informado da prisão de Flávio Maluf; na mídia impressa, a única foto do preso algemado foi tirada por um fotógrafo de seus jornais; a foto foi distribuída com exclusividade por sua agência de notícias. Os outros veículos de comunicação tiveram de pedir (ou comprar) o material. Esquecendo um pouco o jornalismo: isso não pode ser classificado como favorecimento econômico de um grupo empresarial por parte de uma instituição pública?
Qual das duas?
Responda depressa: qual das duas entrevistas coletivas do presidente Lula foi a mais ridícula? A de Paris, concedida à proprietária de uma produtora de vídeo, ou a da Guatemala, concedida a jornalistas mas que durou no máximo cinco minutos, no saguão do hotel, enquanto Sua Excelência se encaminhava para a saída? Pois é – e em ambos os casos a organização coube a um jornalista, com bom passado na imprensa escrita. Parafraseando Lorde Acton, parece que o poder corrói a competência jornalística de quem chega à sua periferia.
Quem paga
Várias empresas jornalísticas já foram condenadas a pagar pesadas indenizações no caso da Escola Base – pesadas para elas, insuficientes diante dos danos sofridos pelas vítimas. De acordo com a 7ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, ‘a atuação da imprensa deve se pautar pelo cuidado na divulgação de fatos ofensivas à dignidade e aos direitos da cidadania’.
A história
Em março de 1994 (como vemos, as vítimas não apenas recebem indenizações insuficientes como também enfrentam a lentidão dos processos), praticamente toda a imprensa publicou reportagens sobre abusos sexuais contra crianças, supostamente praticados por seis pessoas da direção da Escola Base. A história toda era falsa; os veículos de comunicação foram induzidos em erro; e as pessoas atingidas, embora provada a falsidade da notícia, tiveram a vida desestruturada, com perdas pessoais, patrimoniais e morais. Os donos perderam seu negócio; os empregados ficaram sem emprego – e marcados como criminosos.
Os culpados
A imprensa divulgou uma história falsa, é verdade (com uma única e honrosa exceção: o Diário Popular, de São Paulo, que se recusou a aderir à campanha; honra ao jornalista Jorge Miranda Jordão, que teve pulso para resistir às pressões dos que queriam ver seu jornal envolvido também no caso). Que a imprensa pague indenizações, tudo bem: não tinha nada de difamar gente inocente. Mas os verdadeiros culpados são outros: são os policiais, os delegados, as ‘fontes oficiais’ que deram as informações à imprensa. Ninguém, nos meios jornalísticos, acordou com vontade de destruir a vida do pessoal da Escola Base: todos receberam informações prontinhas das autoridades – que, como tantas autoridades se comportam ainda hoje, não resistem ao apelo de aparecer na televisão.
Alô, mamãe!
Não há dúvida, para este colunista, de que os culpados foram as autoridades que se precipitaram na análise do caso e, felizes pela oportunidade de ter microfones e câmeras apontados para si, correram para ver quem dava mais entrevistas. Mas, embora sejam eles os culpados, quem está pagando as indenizações são os meios de comunicação. Coisas desse tipo continuam acontecendo: autoridades loucas para aparecer na TV e jornalistas ingênuos e crédulos, confiantes nas informações que, afinal de contas, se originam de fontes oficiais. No fim da história, é sempre assim: as autoridades caem fora. E deixam a conta para a imprensa.
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Jornalista, diretor da Brickmann&Associados