Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Emenda pior do que o soneto

O anúncio seria apenas engraçadinho se não fosse tolo e deseducativo: um carro, modelo popular de baixa potência, tem dificuldades em subir uma ladeira. A opção do motorista é livrar-se do excesso de peso para conseguir vencer o trajeto. No banco do carona, a mulher do condutor começa a deitar fora objetos supérfluos, comida e badulaques vários – lixo incluso –, mas o desempenho do automóvel não melhora. E aí vem a ‘sacada’ do gênio criador: no banco de trás está a sogra do motorista. O casal se entreolha. Vamos jogá-la fora também?, subentende-se. Pano rápido.


O anúncio é do Peugeot 2006 1.4 Flex, veiculado na mídia televisiva e intitulado sugestivamente ‘Sogra’. Passaria como uma peça de mau gosto não fossem as reclamações que provocou junto ao Conar – Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária. Não se tem dados sobre o volume de queixas, mas o fato é que o movimento dos consumidores suscitou a publicação de um anúncio assinado pela agência Euro RSCG Brasil – responsável pela, digamos, criação – na edição de segunda-feira (6/5) do Estado de S.Paulo [ver reprodução abaixo]. Aí o caldo entornou de vez.


Vale o resultado


O anúncio impresso traz uma ‘carta em resposta a um consumidor que, com todo direito, mas nem toda razão, reclamou do nosso comercial’. O texto, com timbre da Peugeot e firmado pela Central de Atendimento Especializado da montadora, transita entre o burocrático (‘diante do exposto, temos a comentar que trata-se de uma peça de publicidade, com a finalidade de estabelecer uma comunicação bem-humorada’) e o ingênuo (‘a própria televisão é um universo lúdico, que pode e deve proporcionar às pessoas sensações inusitadas, com a finalidade pura de diversão’).


Mas o trecho que vem sob a chancela da agência é uma salada indigesta que mistura piadas de sogra, o fechamento da RCTV na Venezuela e a discussão sobre a regulação (e não ‘proibição’, como afirmado) da propaganda de cerveja no país. E o que dá liga a tudo isso, segundo a agência? Uma tríade de efeito: ‘Democracia. Liberdade. Respeito.’


A peça tece loas à ‘democracia da tecnologia’, tem a coragem de afirmar que ‘basta um consumidor reclamar, que campanhas inteiras são retiradas do ar e milhões e milhões em investimentos são jogados no lixo’ e desemboca na assertiva de que ‘criatividade, responsabilidade e seriedade continuam sendo muito melhores do que decretos ou decisões autoritárias’.


Então, ficamos combinados assim: qualquer tipo de regulação é censura; o comercial em questão não é preconceituoso e não ensina a jogar lixo na rua; bebidas alcoólicas podem ser anunciadas sem restrição em canais da mídia eletrônica – que são concessões do Estado, portanto um bem público; e, por fim, todo excesso de criatividade se justifica pelo fato de que, segundo a agência, o anúncio ‘vendeu mais de 2.400 Peugeot 206 1.4 Flex em apenas 8 dias’.


Vai ser utilitarista assim na casa da sogra.



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