Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Fenaj desqualifica
jornalista assassinado

Não bastasse o fato de ter sido assassinado em circunstâncias associadas às suas reportagens contra abusos sexuais de políticos de Porto Ferreira (SP), que culminaram na condenação em primeira instância de 10 acusados em 2004, o jornalista Luiz Carlos Barbon Filho, agora, mesmo estando morto, está sendo perseguido pela Fenaj (Federação Nacional de Jornalistas) e pelo Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo.


Justamente no momento em que jornalistas brasileiros e entidades como a Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) unem seus esforços para manter a atenção da opinião pública sobre o caso, conseguindo o apoio rápido de outras entidades nacionais, como a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), e também internacionais, como a SIP (Sociedade Interamericana de Imprensa) e o CPJ (Comitê de Proteção de Jornalistas), a Fenaj e o sindicato paulista preferiram desqualificar Barbon como jornalista em uma nota oficial conjunta divulgada ontem (segunda-feira, 07/05). Vejam os termos dessa manifestação:






‘Luiz Carlos Barbom [sic] Filho, apesar de se auto-intitular jornalista, não o era de fato e de direito. O jornal Realidade, de sua propriedade, foi fechado pois nunca esteve regularizado e Barbom Filho não possuía o registro de jornalista, tendo sido, inclusive, processado por exercício ilegal da profissão. No entanto, esses fatos não justificam nenhum ato de violência contra sua pessoa e tampouco desabonam as denúncias que eventualmente tenha feito contra desmandos de autoridades ou grupos.’
(‘Nota oficial sobre o assassinato de Luiz Carlos Barbon Filho’ e ‘Colunista é assassinado em SP. Sindicato e FENAJ protestam’)



Este deveria ser um momento de união de esforços. Mas, não. Essas duas entidades sindicais preferem erguer suas bandeiras sectárias e propalar o ranço de sua visão cartorial do que é jornalismo exatamente no momento em que é necessário o apoio de jornalistas e de veículos de comunicação de vários países.


Não foi à toa que o documento ‘Attacks on the Press — 2001’, do CPJ, relacionou a absurda forma de regulamentação profissional da profissão de jornalista vigente no Brasil ao lado dos processos, prisões, assassinatos e outras agressões à liberdade de imprensa.


Ao ler a nota conjunta das duas entidades sindicais, a impressão que dá é que seus autores devem ter cabulado aulas em seu curso de jornalismo. Parecem que não conseguiram até hoje entender que a imprensa tem justamente a função de ‘watchdog’ diante da omissão do poder público naquilo que é de sua competência. Vejam outro trecho dessa manifestação infeliz:






‘Para a realização plena dessas condições básicas de liberdade, os jornalistas têm um papel fundamental a cumprir. Isso é óbvio. Mas é doentio pensar que todo cidadão, para poder exercer esses direitos, deva se arvorar à condição de jornalista.’


O que os autores dessa nota não conseguem entender é que — exceto no Brasil, na África do Sul, Arábia Saudita, Síria, Equador, Ucrânia, Tunísia, Congo, Croácia, Costa do Marfim e em outros poucos países — a liberdade de expressão entendida também como liberdade de informar, e não apenas como a liberdade de opinião, deve ser desembaraçada de exigências que impeçam qualquer cidadão de exercê-la plenamente.


Vale lembrar o que dizem Bill Kovach e Tom Rosenstiel em ‘Os Elementos do Jornalismo’:






‘A pergunta que as pessoas deviam fazer não é por que alguém se diz jornalista. O ponto importante é se esse alguém está de fato fazendo jornalismo. Será o trabalho o respeito aos princípios da verdade, à lealdade aos cidadãos e à comunidade de modo geral, a informação no lugar da manipulação – conceitos que fazem o jornalismo diferentes das outras formas de comunicação? A implicação importante disso tudo é esta: o significado de liberdade de expressão e de liberdade de imprensa é que eles pertencem a todos. Mas comunicação e jornalismo não são termos mutáveis. Qualquer um pode ser jornalista, mas nem todos o são. O fator decisivo não é que tenham um passe para entrar e sair dos lugares; o importante está na natureza do trabalho.’


[Bill KOVACH & Tom ROSENSTIEL – ‘Os Elementos do Jornalismo: O que os jornalistas devem saber e o que o público deve exigir’ (Tradução de Wladir Dupont). São Paulo: Geração Editorial, 2003, pág. 151.]


Nessa mesma linha, o professor do Instituto Francês de Imprensa, da Universidade de Paris II, Claude-Jean Bertrand, em ‘A Deontologia das Mídias’, de 1997, afirma:






‘A excepcionalidade de que goza o jornalismo, dentre as instituições democráticas, consiste em que seu poder não repousa num contrato social, numa delegação do povo por eleição ou por nomeação com diploma ou por voto de uma lei impondo normas. Para manter seu prestígio, e sua independência, a mídia precisa compenetrar-se de sua responsabilidade primordial: servir bem à população.’
[Claude-Jean BERTRAND – ‘A Deontologia das Mídias’ (Tradução de Maria Leonor Loureiro). Bauru: Editora da Universidade do Sagrado Coração, 1999, págs. 22-23.]


Daria para mostrar ao autores dessa espúria nota oficial dezenas de ensinamentos de consagrados pesquisadores e mestres do jornalismo, mas seria perda de tempo, pois a ética deles em relação ao debate de idéias é a da evasão, sempre sob o argumento de que tudo isso só serve para defender os ‘interesses dos patrões’.


Mas, para aqueles que vêm claramente o desvio de finalidade que assola nosso sindicalismo, fica a pergunta: por que o jornal ‘Realidade’, de Luiz Carlos Barbon Filho, foi fechado justamente no final de 2004? Por que isso ocorreu nesse ano, em que, por causa de suas reportagens, foram condenados os seis vereadores, três empresários e um funcionário público municipal a penas que variam entre 4 e 45 anos de reclusão por corrupção de menores, favorecimento da prostituição e formação de quadrilha ou bando? (‘Justiça condena 10 em Porto Ferreira por corrupção de menores’, Consultor Jurídico, 21/4/2004)


Não foram acusações sem fundamento. Apenas oito dos dez condenados foram absolvidos em segunda instância, em outubro de 2005. Poucas das penas aplicadas foram reduzidas, e outras, de até 45 anos de prisão, foram mantidas. (Fernando Porfírio, ‘Tribunal reduz penas de vereadores de Porto Ferreira’, Consultor Jurídico, 3/10/2005)


Por que, em vez de perseguirem jornalistas como Luiz Carlos Barbon Filho, essas duas entidades sindicais, que dispõem de departamento jurídico e infra-estrutura administrativa, não denunciam a prática descarada de publicação de matérias pagas por parte de centenas de jornalecos vagabundos que existem no Estado de São Paulo? Só porque quase todos eles têm a chancela de um ‘jornalista responsável’ que aluga seu registro profissional, o ‘MTb’?


‘Doentio’, em vez do que afirma essa nota oficial repugnante, é o corporativismo que pisa cegamente sobre o preceito ético profissional de estar sempre ao lado do interesse público. ‘Doentio’, na verdade, é o desrespeito ao preceito jornalístico de jamais frustrar o debate de idéias. ‘Doentio’ é o limitado horizonte da visão de mundo predominante em nosso sindicalismo, que ignora o que é o jornalismo fora do ridículo círculo das regulamentações profissionais nos países apontados acima. ‘Doentio’, portanto, é o desvio deontológico que revela outras prioridades neste momento em que deveria prevalecer a união de esforços para esclarecer o assassinato de Luiz Carlos Barbon Filho.


A nota oficial da Fenaj e do sindicato de São Paulo merece repúdio.

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Publicado originalmente no blog Laudas Críticas