No mesmo final de semana em que foi divulgada a pesquisa DataFolha que lhe atribui apenas 3% dos votos dos eleitores, a senadora Marina Silva (PT-AC) foi tema recorrente dos principais veículos jornalísticos do país.
A cobertura, nos jornalões e nas principais revistas semanais, parece indicar uma rápida mudança no modo como a candidata passou a ser retratada. De ‘enigma amazônico’ para a mídia, como a chamou o colunista Luciano Martins Costa em artigo neste Observatório, Marina parece ter evoluído para uma posição que oscila entre o fascínio novidadeiro e o deslumbre entusiasmado – estados de espírito que não combinam com o bom jornalismo político.
‘Entrou oxigênio puro na campanha eleitoral de 2010. A novidade se chama Marina Silva’, sintetiza Época. Mas a ‘revistona’ mais entusiasmada com a ‘novidade’ que representaria a candidatura de Marina Silva foi a IstoÉ, que lhe deu matéria de capa, saudando: ‘O Brasil não é só PT e PSDB’. Nas páginas internas, Marina aparece fotografada de baixo para cima (opção que realça e confere imponência à sua figura, na pior tradição do culto à personalidade), junto ao tronco de uma árvore e com a luz do céu saturada entre as frestas de uma mata. A legenda da foto ‘informa’ que ela ‘aparece com índices de 12% a 24% nas pesquisas’.
Vozes contrárias e a favor
As ‘pesquisas’ referidas pela legenda são, na verdade, uma só, feita pelo Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas (Ipespe) em 22 e 23 de julho de 2009, por encomenda do PV, investigando quatro diferentes cenários eleitorais. Uma visita ao site do Ipespe revela um alto grau de engajamento com a campanha, o que levanta suspeições, sobretudo porque nem a IstoÉ nem o site do referido instituto disponibilizam detalhes sobre a pesquisa (mas eles podem ser encontrados aqui), a não ser que ela ouviu apenas 2 mil pessoas, e por telefone. A revista destaca, em negrito, a seguinte informação: ‘Os números revelaram ainda forte presença de Marina nas classes A e B’. Não se sabe – e ela não diz – em que dados se baseia para sustentar tal afirmação, pois tais classes sociais não foram sequer incluídas na pesquisa, já que, de acordo com o item 5, ‘características da amostra’ da documentação referenciada acima, ela ouviu apenas eleitores que ganham até 10 salários-mínimos. A revista fica devendo essa informação – e a explicação para o negrito entusiasmado – ao leitor.
O editorial da revista, assinado por Carlos José Marques, elenca platitudes relativas a Marina que serão repisadas pela matéria e insiste na tese dos números positivos ‘nas pesquisas’ – como se dados para tal afirmação, corroborados nacionalmente e em todas as faixas, tivesse. Assim, segundo ele, ‘trata-se de uma candidatura que, as pesquisas já apontam, parte no trampolim de lançamento com ao menos 10% da preferência’. Para ele, Marina ‘partiu como protagonista’. A imprudência do editorialista não deixa de produzir um efeito cômico, se contrastada aos 3% que a senadora obteve na pesquisa mais abrangente e inserida numa linhagem temporal divulgada pelo DataFolha. Mas desperta também questionamentos sérios acerca de quais interesses poderiam estar por trás de tamanho entusiasmo. Trata-se, afinal, de uma candidatura que, como aponta a maioria dos analistas, tende a beneficiar o PSDB de Serra.
As primeiras páginas da matéria da IstoÉ são ocupadas historicizando a construção da candidatura de Marina Silva e, sem descer em detalhes, da contra-movimentação palaciana. Há, nas páginas seguintes, a usual contraposição de vozes contrárias e a favor da candidatura, que incluem, em pólos opostos, dois presidentes de institutos de pesquisa, políticos e cientistas sociais. É a parte melhor resolvida na longa matéria, embora a escolha de uma das vozes contrárias à candidatura da senadora seja por demais óbvia: ninguém menos do que Blairo Maggi (PR-MT), governador do Mato Grosso e megapecuarista sempre às turras com licenças ambientais e ministros do Meio Ambiente – notadamente, Marina Silva.
Matéria deixa a desejar
A matéria inclui, ainda, um perfil político-biográfico assinado por três profissionais, mas jornalisticamente insatisfatório – omite, por exemplo, a respeitabilidade internacional adquirida por Marina na área ambiental e, sugestivamente, o balanço da performance como ministra do Meio Ambiente – e um curiosíssimo texto ‘analítico’, assinado por Luciano Suassuna, que afirma que ‘o novo vence sempre’ nas eleições presidenciais pós-ditadura. ‘Novo, no caso, não é questão de idade nem de experiência’, afirma o autor, que simplesmente desconsidera, na construção de seu argumento, que nem FHC nem Lula representavam o novo quando se reelegeram. Um texto perfeitamente dispensável, que soa como mais um elemento do entusiasmo travestido de jornalismo que a publicação mal disfarça em relação à candidatura Marina.
Como a confirmar tal impressão, ao final da página, das nove ‘celebridades’ selecionadas (sabe-se lá sob qual critério) – a atriz Letícia Sabatella, o cartunista Ziraldo, a filósofa Márcia Tiburi, entre outras –, apenas a dermatologista Lígia Kogos (a menos famosa delas) desaprova a candidatura da senadora. Qual o valor jornalístico de tal enquete, além de causar a impressão de que ela seria referendada por possíveis ‘formadores de opinião’?
Ao final, fica a impressão de uma matéria laudatória e carente de informações e, sobretudo, de análises. Em termos de diagnóstico da conjuntura política e de prognósticos, a matéria da revista semanal, embora palavrosa, fica longe do que já foi oferecido por outros colunistas neste Observatório e de um texto como ‘Marina vai à guerra‘, assinado por Celso Marcondes na CartaCapital. Ao menos na versão virtual da revista, que foi a utilizada para estas análises, deixa a desejar mesmo como matéria de capa, em comparação com outras menores oferecidas na mesma edição, como a boa entrevista que Luiza Villaméa faz com Vanda Pignatto, primeira-dama de El Salvador, e o texto jornalístico sobre a intimidade de Susan Sontag, assinado por Carina Rabelo.
Pretexto para projetos de terceiros
A entrevista com Marina Silva que encerra a cobertura da IstoÉ permite compreender o porquê de sua candidatura despertar tanto entusiasmo: além da inegabilidade da importância da agenda do desenvolvimento sustentável, clareza, inteligência, sensibilidade, tato político se sobressaem em meio às perguntas usuais sobre sua relação com a religião, com o PT, com a crise no Senado – além da repetição, uma vez mais, das comparações da sua trajetória com a de Obama e, como também faz a reportagem da revista Época, com a de Lula.
No entanto, compreender o entusiasmo que a candidata desperta é uma coisa, justificar que um dos principais órgãos jornalísticos do país sucumba a tal entusiasmo é outra, completamente diferente e inaceitável, ainda mais quando há a desconfiança de que até mesmo tal entusiasmo possa não ser autêntico, mas sim, um pretexto para beneficiar projetos políticos de terceiros.
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Jornalista e cineasta, doutorando em Comunicação pela UFF; seu blog