Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Jornalismo sem alianças, sem babação de ovo

Há forte tendência entre os jornalistas, hoje, para ficar sempre ao lado do Ministério Público. Alguns repórteres quase endeusam os promotores – sempre ‘jovens’, sempre ‘aguerridos’, sempre indignados com as injustiças, sempre prontos para atender à imprensa, especialmente quando há câmeras e microfones.

O problema é que nós somos nós e eles são eles – e isso ficou muito claro, por exemplo, na época da ditadura. Não houve um só processo contra os jornalistas, por mais absurdo que fosse, que não contasse com o suporte de um promotor. E nem se diga que a ditadura tirou a independência do Ministério Público: em pleno regime militar, na fase mais dura dos anos de chumbo, promotores corajosos como Djalma Barreto e Hélio Bicudo enfrentaram o Esquadrão da Morte. Era possível, portanto; e não era condição de sobrevivência pedir a condenação ‘dos perigosos subversivos’ a longas penas de prisão. Voltemos a Djalma Barreto (cujo filho, aliás, é outro promotor de grande qualidade, Dráusio Barreto) e a Hélio Bicudo: ninguém os obrigou, como fizeram alguns outros membros do MP, a explicar a morte ‘por suicídio’ de Vladimir Herzog e Manuel Fiel Filho.

Um Ministério Público atuante é essencial para a vida democrática. Mas esbaforir-se subindo e descendo escadas, no meio de um depoimento, só para dar entrevistas à TV e avisar à família que vai aparecer na Globo, isso não é essencial para a vida democrática. Espalhar denúncias que a Justiça desmonta não é essencial para a vida democrática. Sumir de cena quando seu partido chega ao poder, para não ter de atuar contra ele, não é essencial para a vida democrática.

O jornalista tem de ser cético e crítico, sempre, mesmo diante de promotores jovens, aguerridos e loucos para dar informações. Jornalismo é oposição, ensina Millôr Fernandes. Já o Ministério Público é um braço do Poder Executivo.



Ponto de encontro

Na verdade, há um ponto que jornalistas e promotores têm em comum: uma certa aura de invencibilidade. Temos hoje um jornalista e dois promotores livres após cometerem o mais terrível dos crimes, após violarem o mandamento divino do ‘não matarás’. Antônio Marcos Pimenta Neves, jornalista, matou a namorada há cinco anos e aguarda julgamento em liberdade. Thalis Ferri Schoedl, promotor, matou um rapaz na praia, no fim de 2004, e está em liberdade. Igor Ferreira da Silva, promotor, matou a esposa grávida, tentou simular um assalto, mas acabou condenado a 16 anos. Está foragido, em liberdade, há mais de três anos.



Honrando o Judas

Uma terrível conseqüência dessa aliança que alguns jornalistas fazem com alguns promotores é o elogio da dedoduragem. Na maior parte da historia da Humanidade, os delatores foram muito malvistos. Os mais pragmáticos criaram uma frase interessantíssima: ‘Aproveite-se a delação e despreze-se o delator’. Hoje, delatores são saudados – e por colegas nossos, jornalistas! – como patriotas, como gente de bem. E isso, definitivamente, não são. A propósito, o senador José Sarney escreveu belíssimo artigo sobre este assunto, publicado na Folha de S.Paulo, na sexta-feira (26/8). Vale a pena: leia!

José Sarney

‘Bordalesa e a delação premiada’, copyright Folha de S.Paulo (26/8/2005)

Nos meus tempos de mocidade, a figura do delator era infame. Joaquim Silvério dos Reis, que denunciou Tiradentes, era um maldito. Judas, que vendeu Cristo nas famosas trinta moedas, era um judas. Calabar, o que delatou os brasileiros, entregando-os aos holandeses, ou Lázaro de Melo, que fez a mesma coisa com Bequimão, eram insultos irreparáveis se aplicados a alguém.

A coisa está mudando. Não é bem assim. Pode até ser um ato heróico e louvável. Os delatores, pelo bem público, redimem a lista dos anti-heróis e se incorporam a uma tábua de aliviados benfeitores.

A delação premiada não é invenção brasileira. Vem de longe. Sólon, na velha Grécia, o primeiro das leis da democracia, instituiu-a para estimular pessoas a combater o contrabando e a proteger o Estado. É Plutarco, em suas ‘Vidas Paralelas’, quem nos dá notícia disso. Depois os romanos também a utilizaram. E os tempos modernos fizeram o mesmo. Era a forma escolhida dos nazistas para pegar judeus, técnica de exportação adotada pelo governo de Vichy, aquele que traiu a França. Na Rússia de Stálin, chegou-se ao máximo da denúncia premiada erguendo estátuas ao menino Pavlik Morozov, condecorado e elevado a herói porque denunciara o pai, que estava traindo os ideais socialistas!

Na atual crise brasileira, a delação premiada está na moda, e muitos heróis estão aparecendo, desde Valério até Buratti.

Na Revolução de 64, também houve uma onda avassaladora de denuncismo e de caça aos infiéis. Chegou a tal ponto que o meu querido amigo Alexandrino Rocha, cabra danado de inteligente, notável ‘causeur’, que foi secretário de imprensa de Arraes no seu primeiro governo de Pernambuco, contou-me uma história muito significativa daqueles tempos:

Sinfrônio, nome de cantador, era um guarda-mosquito, daquela legião de homens benfeitores que saía pelo interior do Brasil montado numa burra, correndo caminhos e subindo morros para pulverizar as casas contra muriçocas e barbeiros que transmitiam malária e doença de Chagas. Veio o regime militar. Todos denunciavam a todos. Sinfrônio procurou logo Alexandrino, com receio de ser delatado. ‘Olhe, compadre, estou com muito medo de perder meu emprego. O senhor sabe que os inquéritos militares estão bisbilhotando tudo. É que a vida inteira eu embolsei a diária que o governo paga para alimentar minha burra Bordalesa. E, agora, depois dessa tal Revolução, Bordalesa, que está muito magra, vive me olhando desconfiada. Eu acho que ela vai me denunciar. O que eu faço?’. Alexandrino respondeu: ‘Capim e milho na burra e não deixe ela aparecer na cidade’. Bordalesa não denunciou, mas foi premiada.

Nessa linha, diz-se em Brasília que um comitê de mulheres traídas está fazendo um fundo para entregar àquela senhora de Crato com nome inglês que tem uma firma de recepcionistas. Se ela falar, recebe a bolada.

O problema da delação premiada é saber onde está a verdade e o interesse das pessoas. O que é necessário, desejável e urgente é que os envolvidos não mintam tanto e falem a verdade. Com esta, nada de prêmio a quem se chafurdou na lama da corrupção. A opção entre tortura e delação premiada para investigar crimes é trágica para os direitos humanos. Isso é o que se diz no mundo inteiro. Nos Estados Unidos, hoje, os grupos de direitos civis estão ativos contra esses dois tipos de conduta.

Mas, enquanto isso não acontece, vamos nos acostumar a ouvir a voz dos presídios para ajudar as CPIs na solução da crise.

Agora é esperar a vez de Fernandinho Beira-Mar.



O bom e o mau

Excelente a reportagem de Hugo Studart, na IstoÉ Dinheiro, sobre os cartões de crédito da Presidência de República. Bem pesquisada, bem escrita, sem acusações, mas mostrando que é importante verificar por que o pessoal do Palácio do Planalto usa tanto dinheiro vivo em suas transações (e dinheiro vivo tirado com cartão de crédito paga juros, dos mais altos do mercado, a partir do dia do saque).

Ruim é a matéria, num grande jornal, segundo a qual Israel encerrou 40 anos de ocupação da Faixa de Gaza. Considerando-se que a região foi ocupada na Guerra dos Seis Dias, em 1967, conclui-se que já estamos em 2007.



Muito ruim

A comunicação não é apenas aquilo que acontece na mídia. Aqueles insuportáveis anúncios por mensagem de texto que as operadoras de celulares fazem a qualquer hora do dia ou da noite também são comunicação (e funcionam ao contrário: muita gente, ao ver que o telefone tocou para trazer propaganda, nem lê a mensagem). Mas duro mesmo, nota a leitora Irene Kantor, do Rio, é ouvir na caixa postal do celular que a gente ‘possui’ três novas mensagens. Se eu ‘possuo’ essas mensagens, devo incluí-las na declaração de bens?



Meio a meio

A reportagem é bem boa. Mas traz a seguinte frase: ‘Os veículos híbridos elétricos japoneses, HEV, da Toyota e da Honda, estão anos-luz à frente dos europeus – que, por sua vez, estão muito à frente dos japoneses’. Como é mesmo?



Mixaria, não

O Superior Tribunal de Justiça trancou ação penal contra dois homens que furtaram seis frangos congelados, no valor total de 21 reais, num frigorífico do interior de São Paulo. De acordo com os ministros, deve ser aplicado no caso o ‘princípio da insignificância’, já que o evento não apresentou dano relevante. A denúncia contra os pobres coitados tinha sido rejeitada em primeira instância, mas o Ministério Público (mais uma vez, os promotores ‘jovens’, ‘aguerridos’) recorreu da decisão, para ser derrotado em Brasília – calcule-se, a propósito, quanto foi gasto para julgar um furto de 21 reais.



Bagatela, não

A Justiça tomou posição idêntica em dois outros casos: o da empregada doméstica que passou 19 meses na cadeia por tentar furtar um xampu e um condicionador, no valor total de 24 reais (e só foi libertada porque uma advogada corajosa e guerreira, Sônia Drigo, tomou o caso nas mãos e divulgou o absurdo); e o de um homem preso quando furtava quatro desodorantes, no valor total de 9,96 reais. O caso também chegou a Brasília, ao Superior Tribunal de Justiça, que aplicou o princípio da bagatela: de acordo com o portal jurídico Espaço Vital, a tese é de que furtar um produto com valor inexpressivo e que não causa prejuízo econômico ao patrimônio da vítima não constitui crime.

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Jornalista, diretor da Brickmann & Associados