‘A armadilha dos números’, copyright Jornal de Notícias, 8/2/04
‘‘Cortes na ADSE afectam 2 milhões’ foi a manchete do ‘Jornal de Notícias’, no penúltimo dia de Janeiro. As letras gordas da primeira página encabeçavam dois subtítulos, um dos quais afirmava: ‘Comparticipações nas despesas com a saúde devem baixar, em média, 30% em relação aos valores actuais’.
Assunto quente, de óbvio interesse público, que diz respeito, directa ou indirectamente, a todos os cidadãos e não apenas àqueles que são beneficiários do regime da ADSE.
Quem não concordou com a manchete do JN foi o leitor Nuno Teno. Em correio electrónico enviado ao provedor, apresenta duas observações interligadas e bem pertinentes. Numa contesta a manchete, duvidando da consistência do número de utilizadores dos serviços da ADSE. Noutra pergunta se existem ‘critérios para aferir a credibilidade das fontes’.
Nuno Teno questiona: ‘Uma simples reflexão permite constatar que não existem dois milhões de beneficiários da ADSE, contando, naturalmente com os funcionários públicos e seus familiares, reformados e pensionistas’. Logo: com que base é que o jornal afirma que as alterações a introduzir pelo Governo afectam dois milhões de portugueses?
O problema dos números não se fica, contudo, por aqui. A leitora Cristina Morais, depois de ler o artigo correspondente, teve dúvidas sobre um outro ponto: como é que o jornal chegou ao valor dos 30%, para a redução nas comparticipações do Estado? E que valor tem a média quando estamos perante matérias tão distintas?
Relendo o artigo, verificamos que ele enuncia os dados de uma forma menos assertiva: são referidos ‘cerca de dois milhões de pessoas’ afectadas e situado ‘entre 25 e 30%’ o valor médio das reduções. Até aqui, podemos compreender: a linguagem da primeira página e dos títulos é necessariamente sintética e apelativa, obrigando a resumir e, por vezes, a simplificar. Mas isso é compreensível no caso em que os valores têm razão de ser. E se não tiverem? Se ficar a dúvida, isso pode comprometer a fiabilidade da informação prestada pelo jornal. Vejamos, por isso, o que esteve por detrás da notícia que saiu. Socorro-me, para tal, das informações e comentários que os jornalistas envolvidos tiveram a gentileza de me enviar.
Na quinta-feira, dia 29, o JN obteve, por via sindical, um documento anteriormente distribuído pelo Ministério das Finanças, que comparava as comparticipações da ADSE em vigor com aquelas que o Governo pretende estabelecer. O sindicato em questão emitiu um comunicado em que procedia à leitura das medidas governamentais. Foi junto desta fonte que o jornalista que elaborou o trabalho foi colher o número de ‘cerca de dois milhões’ de pessoas implicadas.
No dia seguinte, dia em que o JN e outros jornais deram destaque ao assunto, o primeiro-ministro respondeu a perguntas na Assembleia da República e, aludindo a esta matéria, contrapôs o número de 300 mil. Na mesma altura, individualidades do PS apontaram um milhão.
Haveremos de reconhecer que algo aqui não bate certo, tão grande é a diferença. E a percepção deste facto leva o JN a investigar melhor o assunto e a apresentar, na edição do dia 31, dados oficiais que apontam para 1.384.445 beneficiários, incluindo aqui aposentados e familiares (dados de 2002). Conclusão: estamos muito longe dos 300 mil, mas também estamos longe dos dois milhões.
Relativamente ao valor médio atribuído pelo Jornal de Notícias à redução das comparticipações, a fonte é, de novo, um dos sindicatos da administração pública. Quer a agência Lusa quer outros órgãos de comunicação utilizaram também o referencial médio situado entre 25 e 30%. Aqui, a questão é mais complexa, uma vez que estão em causa literalmente milhares de actos e situações diferentes, com um grau muito diverso de utilização, isto é, com um impacte que pode ser muito diferente do lado dos utilizadores do regime da ADSE. O cálculo de uma média que não tenha em conta estes factores corre o risco de não ajudar a compreender o que está em causa. Contudo, mesmo dando isso de barato, nem o quadro infográfico publicado pelo jornal na edição do dia 30 nem os dados posteriormente conhecidos autorizam um valor com a dimensão do noticiado. Na verdade, se uma distribuição de valores varia, por hipótese, entre zero e 50, a média desses valores não é necessariamente de 25, como se chega a sugerir.
Resumindo, a análise deste caso permite concluir o seguinte:
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O JN fez um trabalho esforçado, conferindo relevância a uma matéria de grande significado público, a saber, que o Governo tomou a decisão de mexer nas formas de comparticipação no subsistema de saúde dos funcionários da administração pública e que essa mexida aponta, no essencial, no sentido da redução das comparticipações;**
O JN seguiu, em alguns dos números que deu aos leitores, uma fonte que considerou credível. O exame mais aprofundado da questão, nos dias subsequentes, permitiu verificar que esses números se encontravam empolados. Neste caso, teria sido preferível que o jornal tivesse acautelado perante os leitores que não lhe tinha sido ainda possível confrontar com outras fontes os dados que inicialmente divulgou. Refira-se, de qualquer modo, o esforço feito pela Redacção no sentido de contactar o Ministério das Finanças que, neste processo, não parece ter contribuído para clarificar a situação.**
Finalmente, o JN corrigiu, nos dias subsequentes, informações que tinha fornecido no dia 30, mas sem assumir que se tratava de uma correcção. Não ficaria mal ao jornal que essa correcção fosse explicitamente assumida. Pelo contrário, credibilizava-o e passava aos leitores a mensagem de que os jornalistas tudo fazem para assegurar rigor no seu trabalho e que nem sempre isso se consegue numa mesma edição.As fontes dos jornalistas são vitais e sem elas não há jornalismo. Mas as fontes defendem, naturalmente, os seus interesses e pontos de vista. Lêem a realidade com determinados olhos. Que não têm de ser necessariamente os do jornalista.’
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‘Acontece aos melhores’, copyright Jornal de Notícias, 8/2/04
‘O questionamento da BBC, aquele que quer acautelar que os padrões habituais de rigor e de imparcialidade não venham a ser sacrificados, não pode ser desligado do questionamento que, nos anos mais recentes, afectou igualmente outros órgãos de comunicação que são referência no panorama internacional. É o caso do New York Times, profundamente afectado, em meados de 2003, pela descoberta de matérias inventadas e manipuladas, da autoria de um dos seus repórteres. Foi igualmente o caso de Le Monde, questionado por investigações que deram origem a nada menos de três livros. É evidente que os media dos quais esperamos mais qualidade são aqueles nos quais se nota mais uma pequena derrapagem. Mas estes casos demonstram que, como já escrevei nesta coluna, a confiança é um valor que se conquista, mas que precisa de ser permanentemente cultivado.
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‘BBC num turbilhão’, copyright Jornal de Notícias, 8/2/04
No mesmo dia em que Lord Hutton apresentava, no Reino Unido, o resultado do inquérito à morte do cientista David Kelly, nos Estados Unidos da América, o chefe dos inspectores que passaram o Iraque a pente fino à procura de armas de destruição maciça anunciava que estas provavelmente não existem. No primeiro caso, o ‘fogo’ virou-se de imediato sobre a BBC, misturando-se os argumentos dos que acham que se enfraqueceram os mecanismos de vigilância e verificação e os dos adversários assumidos da existência do serviço público de televisão. No segundo caso, e à medida que a opinião pública internacional vai verificando que nos ‘arranjaram’ uma guerra na base de um pressuposto provavelmente falso, damo-nos conta de quão frágil, complexa e perigosa é, em determinados contextos, a tarefa de informar, quando o jornalismo não acautela a sua independência ou, pior ainda, quando adopta, de forma mais ou menos crítica, os quadros de referência e os argumentos dos grandes poderes em presença.’