Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Manuel Pinto

‘Perto de uma dúzia de mensagens de protesto chegaram ao JN a propósito de um pequeno texto sobre a revista ‘Hip Hop Nation’, que o ‘Jornal de Notícias’ publicou na edição de domingo passado. Nenhuma delas veio endereçada ao provedor, mas entenderam os responsáveis do JN que a matéria lhe deveria ser comunicada. Foi um entendimento de que o provedor partilha e que regista.

Os e-mails começaram a chegar logo no domingo à noite e sucederam-se até quarta-feira. O tom geral, num Português por vezes sofrível, mas que permitiu entender o que estava em causa, era de repulsa por um texto que revela, segundo várias das mensagens, ou ‘incompetência’ ou ‘ignorância’ sobre a ‘cultura hip-hop’, por parte de quem o redigiu. E como o texto não vinha assinado, apesar do registo em que estava redigido e, segundo os leitores queixosos, dos ‘preconceitos’ que o afectavam, foi o JN que apanhou por tabela.

Recordemos os factos. Na última página da edição de domingo, na rubrica ‘Caras & casos’, o JN publicou um apontamento intitulado ‘Passa aí a cena, man!’, em que fazia alusão à saída de um número da já referida revista, cuja capa, a cores, se reproduzia. O texto, incluindo o título, não pode ser desligado do seu contexto. Isto é, da página e do tipo de conteúdo ligeiro (e às vezes impertinente ou brejeiro) que a caracteriza. Daí que o seu autor tenha ensaiado uma operação arriscada, que consistiu em recorrer à linguagem que considerou caracterizar o hip-hop para falar de um assunto respeitante a um certo mundo juvenil com base no seu próprio vocabulário. Exemplifico com os primeiros períodos: ‘Yo! A malta tasse tasse tassse bem, yo! Curte umas cenas, assim tipo interventivas, abaixo a cultura urbano-segregacionista, o hip hop é qu' stá a dar e até já formou a nação’. O esforço até terá sido bem intencionado, ao contrário do que sugerem os leitores que viram no caso um atentado deliberado à revista e ao universo que ela exprime e alimenta. Alguns dos protestos insurgiram-se, sobretudo, contra o facto de o autor da prosa ter aludido à distribuição, juntamente com a edição da revista, de uma pequena embalagem de mortalhas, considerando que o jornal estava a insistir num estereótipo abusivo e inaceitável: apresentar os cultores e fãs do hip-hop como drogados e marginais.

A ira dos leitores e a saraivada de críticas que endereçaram ao JN abarca um leque variado de motivos: a generalização injusta; a conotação abusiva; o desconhecimento jornalístico; e, particularmente, a inaceitável ridicularização a que se submeteu o hip-hop, com cuja ‘cultura’ e referências muitos dos seus cultores se identificam.

Alguns dos protestos adoptaram um registo insultuoso na resposta, do tipo ‘olho por olho’; outros aconselharam o jornal a fazer o trabalho de casa, isto é, a procurar conhecer melhor a matéria, a investigar e a escrever com mais rigor.

Sobre este assunto, solicitei aos responsáveis do JN um comentário. Pela parte da Direcção, David Pontes, director adjunto, começou por esclarecer que o ‘Caras & casos’ ‘não é, como alguns nos escreveram, uma ‘notícia’ ou um ‘artigo de opinião’. É um apontamento de actualidade publicado num espaço semanal bem definido do jornal, que procura registar, num tom bem humorado, um insólito ou um caso mais pitoresco. O objecto são muitas vezes figuras públicas e não poucas vezes temos incluído histórias internacionais’. Sobre a peça que motivou os protestos, explicou: ‘Desta vez recorreu-se à caricatura, exagerando elementos da realidade, nomeadamente elementos de linguagem próprios do meio do hip-hop. Não foi por isso, nem poderia ser naquele espaço, como muitos dos reclamantes afirmaram, um retrato do hip-hop. Foi um momento de humor que procurou registar o facto inédito de uma revista distribuir mortalhas, algo que julgo estar contra o espírito das normas contra o tabagismo. Infelizmente, foi mal interpretado por muitos, levando a acusações injustas para o JN e para o jornalista que o escreveu.’

O coordenador da Secção de Sociedade, Nuno Marques, reforça a nota sobre a natureza da rubrica ‘Caras & casos’, o tom caricatural adoptado (‘que, por definição, exagera algumas características do objecto’) e assevera que ‘não houve intuito de desvalorizar qualquer tendência estética e muito menos o de ofender os cultores de qualquer corrente artística’.

David Pontes contesta, porém, que o JN não tenha dado a devida atenção nas suas páginas ao mundo do hip-hop: ‘No ano de 2003, o JN cobriu vários concertos, entrevistou bandas, criticou inúmeros discos (elegeu como um dos álbuns do ano ‘Speakerboxxx /The Love Below’ dos Outkast, a banda que dá capa a este número da ‘Hip-Hop Nation’) e ainda em Novembro passado dedicou duas páginas a fazer um balanço do hip-hop nacional’.

Estamos, então, perante uma ‘tempestade num copo de água’? Julgo que não. E não é pelo número das mensagens de protesto, que, num órgão de comunicação, tendem a ser lidas como tendo uma amplitude que muitas vezes não possuem. Nem é pela revista que se tornou motivo de polémica (de outro modo, esta movimentação dos leitores poderia ser interpretada como forma indirecta de campanha publicitária). No caso em apreço repete-se uma situação que é porventura mais frequente do que se supõe: a de pessoas, grupos e universos que se sentem injustiçados e ofendidos com o modo como os media os representam.

‘Uma traição à confiança do público’

Mais um caso de um jornalista que foi acusado de inventar e plagiar partes substanciais de várias das suas grandes reportagens feitas nos Estados Unidos e noutras partes do Mundo. Desta vez o caso passou-se no jornal ‘USA Today’, um dos maiores do país, e logo com um dos repórteres mais considerados do diário, que ali trabalhava desde que o jornal nasceu, há pouco mais de vinte anos. Várias vezes nomeado para o prémio Pulitzer, Jack Kelly foi investigado por três jornalistas veteranos que passaram a pente fino o seu trabalho e concluíram que, em pelo menos oito trabalhos de envergadura, Kelly havia forjado partes dos assuntos sobre os quais escrevera. ‘Uma triste e vergonhosa traição à confiança do público’ – assim qualificaram o comportamento do jornalista que entretanto abandonou o jornal.

Estrela Serrano termina mandato no DN

A provedora do ‘Diário de Notícias’, Estrela Serrano, terminou na semana passada o seu mandato de três anos, com um balanço que merece reflexão. Exerceu funções num período em que o jornalismo se tornou ele próprio, frequentemente, motivo de polémica e de perplexidade. Lembremos o 11 de Setembro, a cobertura da guerra do Iraque ou o processo da pedofilia, este ainda muito longe de ter um desfecho à vista.

Uma característica que marcou o trabalho daquela provedora foi a capacidade que teve de discutir as questões suscitadas sobre o jornalismo do DN, trazendo à reflexão as conclusões de muitos autores marcantes que têm contribuído para conhecer melhor o campo jornalístico e mediático.

Enquanto aguardamos a designação de novo provedor ou provedora, resta-nos reconhecer e saudar o trabalho realizado por Estrela Serrano e desejar que os seus escritos no DN possam ser com brevidade publicados em livro, para que possamos revisitá-los: o exercício da função e o trabalho que dele decorre constituem uma das formas do exercício da cidadania.’