Lugar comum mais verdadeiro: nada será como antes. Depois que a cúpula do poder convoca depoimentos sobre o que aconteceu nos “porões” (organizados pelos salões) durante a ditadura, mais vozes se dispõem a contar suas histórias tristes. Até Harry Shibata, ícone de pulhice nacional, promete dizer alguma coisa (certamente menos do que sabe; O Globo, 20/5).
Tem razão Renato Lessa (caderno Aliás, O Estado de S. Paulo, 20/5):
“Independentemente do juízo que se possa fazer a respeito de Dilma Rousseff como chefe de governo, seu gesto como chefe de Estado [convidar seus quatro antecessores vivos para o lançamento da Comissão da Verdade] inscreve-se como um dos momentos fortes da história republicana”.
(Registre-se igualmente a visita de Dilma a dom Paulo Evaristo Arns, o cardeal da luta pela redemocratização, outro gesto de grandeza.)
Lessa oferece à reflexão um tópico original: entre as assimetrias do momento em que se decretou a Lei da Anistia (agosto de 1979) está a de se terem tornado públicos os nomes e os atos dos presos políticos e se terem ocultado os nomes dos perpetradores de violações aos direitos humanos.
Um eco muito sugestivo é oferecido por Jorge Bastos Moreno no capítulo 31 de sua “A história de Mora”, publicada aos domingos no Globo.
Ao debate
Do material publicado no primeiro domingo após a designação da Comissão da Verdade, instituída sob o mote “Consolidação da democracia”, certas coisas precisam ser debatidas com calma, outras são consensuais. O que interessa é que sejam vistas à luz do sol.
Qualquer prognóstico sobre história em curso corre o risco de se mostrar enganado, ou redondamente enganado, mas o que se vê até aqui autoriza dizer que um ciclo político agoniza. O ciclo durante o qual se teve medo da repercussão disso ou daquilo na caserna.
Moreno, pela boca de Mora, diz de Ulysses Guimarães:
“Nunca houve outro político brasileiro, em qualquer tempo, que mais cobrou e denunciou as atrocidades praticadas pela ditadura. Daí o seu arrebatador caso de desamor com os militares, plenamente correspondido.”
Os militares no seu lugar
O enfrentamento entre políticos da oposição e os militares no poder começa na primeira hora. Em 1964, Tancredo Neves, único no PSD a fazê-lo, recusa-se a votar no marechal Castelo Branco para presidente da República. Em 1968, a maioria dos deputados federais, numa Câmara dominada pelo partido oficial, a Arena, recusa-se a aprovar licença para que o governo processasse o deputado Márcio Moreira Alves devido a um pronunciamento que fizera pedindo o boicote dos cidadãos às paradas do Sete de Setembro daquele ano.
Em 1973, Ulysses e Barbosa Lima Sobrinho lançam suas anticandidaturas, contra o general Ernesto Geisel e um obscuro coadjuvante, o general Adalberto Pereira dos Santos. A promulgação da Constituição, em 1988, é momento de afirmação da democracia e de recolhimento dos quartéis.
Outro episódio importante foi a escolha, pelo presidente eleito Fernando Collor, em janeiro de 1990, de seus ministros militares (ainda não havia Ministério da Defesa, criado por Fernando Henrique Cardoso). À pergunta sobre se havia ou não consultado oficiais-generais para fazer suas escolhas, Collor responde que isso era desnecessário, porque havia sido eleito pelo voto popular.
Tudo indica que Dilma esteja completando a tarefa de recolocar os militares no papel político que lhes compete, o de integrar o governo da República para defender a pátria, garantir os poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes (Constituição Federal, capítulo II, art. 142), a lei e a ordem.
Acervo do Estadão
Assinale-se com júbilo a entrada na internet, anunciada para quarta-feira (23/5), da coleção completa do O Estado de S. Paulo, repositório de material para a história da República brasileira e dos anos finais do Império.