Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Não é assim mas é como se fosse

O colega conhece alguém que tenha comprado carro a vista? Deve haver; mas o habitual é comprar a prazo, com financiamento por algum banco. Se alguém compra um carro financiado pelo Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, Banco Panamericano, está usando dinheiro público? Não: usa um financiamento disponível no mercado, que será pago no prazo previsto e que, aliás, é o negócio do banco. Se não paga, o comprador responde a processo e pode perder o carro.

Por que, então, o financiamento do BNDES para o estádio que o Corinthians está construindo, em Itaquera, é chamado pelos meios de comunicação de “dinheiro público”? Se o financiamento existe e será pago, não se trata de dinheiro público. Cabe ao BNDES exigir garantias de pagamento e executá-las se o pagamento não for feito – exatamente como os bancos federais fazem com seus clientes que compram um carro ou pedem crédito para adquirir outros produtos.

As arquibancadas que o Governo paulista promete alugar para ampliar a capacidade do estádio são pagas com dinheiro público. Como eram dinheiro público as arquibancadas que a Prefeitura alugava para as corridas de Fórmula 1 em Interlagos; como é dinheiro público o que é gasto na reforma do autódromo, a cada ano. Como era dinheiro público a reforma anual do Autódromo de Jacarepaguá, no Rio, quando lá se realizava o GP Brasil. Como é dinheiro público o subsídio às escolas de samba e o empréstimo dos ônibus que utilizam. É dinheiro público que apóia a Parada Gay, é dinheiro público que dá suporte de infraestrutura e segurança à Marcha para Jesus, é dinheiro público que paga o réveillon.

Dinheiro público, aliás, bem gasto: dá retorno em movimento de comércio, hotelaria, serviços, em turismo, em impostos. Dá lucro, enfim. Autoridades dos mais diversos partidos políticos sempre buscaram atuar na promoção de eventos. Por isso, por reconhecer que o investimento de dinheiro público em eventos é de interesse geral, os meios de comunicação jamais o questionaram. Por que, se o evento é a abertura da Copa do Mundo, passa a ser ruim?

A indústria automobilística brasileira nasceu em meados da década de 50 do século passado. Não há uma única fábrica de automóveis que não tenha se beneficiado de incentivos fiscais. Goiás atraiu empresas que processam produtos alimentícios e se tornou um polo de grandes indústrias químicas oferecendo incentivos fiscais. A Zona Franca de Manaus, a Sudene, a Sudam nasceram com incentivos fiscais. Mas, para os meios de comunicação, que sempre aprovaram esses incentivos, eles passam a ser ruins quando beneficiam uma área menos desenvolvida e mais necessitada de investimentos da capital paulista, a Zona Leste.

Este colunista é corinthiano. Mas não pretende discutir futebol, economia nem política partidária, mas equanimidade. Se incentivo fiscal é bom para o desenvolvimento, não pode ser ruim para o desenvolvimento. Se financiamento de bancos federais está disponível para o público (e até para auxiliar grandes empresários a alcançar suas metas), não pode estar indisponível para o público. Se o dinheiro público pode ser gasto para incrementar o turismo de eventos, não pode ser vedado para incrementar o turismo de eventos.

E, quanto ao estádio de Itaquera ser particular, lembremos: as fábricas de automóveis são particulares, as escolas de samba não são públicas, o comprador de automóveis não é um ente governamental. Torcedor torce por seu time e contra os outros, simpatizante torce por seu partido e contra os outros. Mas imprensa tem de ser diferente.

 

Murdoch…

O caso Rupert Murdoch e o escândalo do News of the World é uma antologia das doenças dos meios de comunicação nos dias de hoje – doenças que prosperam não apenas na Inglaterra, mas também, e muito, no Brasil:

** Propriedade cruzada. O mesmo grupo detém, no mesmo local, empresas de rádio, TV, jornais, revistas, Internet, fazendo com que cada meio alavanque o outro e usando seu poder combinado para matar a concorrência;

** Prepotência. O jornal, ou jornalista, coloca-se acima da lei, usando como pretexto o interesse público;

** Cumplicidade. Para obter favores das autoridades, presta-lhes serviços diversos, atende a pedidos de amigos, atinge inimigos dos amigos, dá aos amigos cobertura editorial suficiente para garantir-lhes promoções e prestígio;

** Cobra a contraprestação desses serviços, recebendo informações privilegiadas. No caso Murdoch, por exemplo, houve o caso de um depoimento assinado por um bandido e autenticado por suas impressões digitais. O grupo de Murdoch tinha contatos na Scotland Yard que analisaram as impressões digitais, comparando-as com as de seus arquivos, e autenticaram o depoimento, dando aos jornalistas amigos um lucrativíssimo furo de reportagem.

Os pecados de Murdoch são amplamente debatidos neste Observatório da Imprensa, por colegas de notável qualificação. Mudemos o ângulo. Como é que as coisas funcionam no Brasil?

 

…e nós

** Um grande grupo de comunicações publicou uma nota, no ano passado, confirmando ter usado os serviços de inteligência da Polícia estadual em auxílio às suas reportagens. Um ganso (delator) da Polícia foi emprestado à empresa, que o usou amplamente, até atuando em conjunto com equipes de reportagem.

** Uma das equipes de reportagem de um grande grupo jornalístico brasileiro participou de uma operação policial que visava documentar uma tentativa de suborno. Como a disputa envolvia dois grupos empresariais, um deles com apoio de agentes policiais, a empresa jornalística não se limitou ao contato mais estreito do que o aceitável com a Polícia, mas tomou parte na luta de empresários.

** No troca-troca de favores, houve repórteres que sempre tiveram preferência das autoridades no acompanhamento de operações policiais – o que significa que o sigilo das operações foi rompido em benefício de determinados repórteres “amigos dos hômi” e das empresas em que trabalham.

** Boa parte da imprensa se deleitou com as informações que recebia de um procurador da República, com denúncias sucessivas contra as autoridades. Só um repórter conferiu a documentação – e descobriu que tinha sido produzida, quase no total (mais de 90%), nos escritórios de advocacia das partes adversárias dos acusados. O mal já estava feito: quem sofreu, sofreu. O procurador calou-se tão logo o partido de sua preferência chegou ao poder. Alguém, nos meios de comunicação, fez mea culpa pela negligência na apuração?

** Um repórter chegou ao extremo de forjar um diálogo que simplesmente não existiu entre o delegado que fez uma prisão e o prisioneiro. O objetivo era mostrar como o delegado era maravilhoso e o prisioneiro, um ser abjeto.

** Comentário do corregedor de ética e disciplina da OAB de São Paulo, Romualdo Galvão Dias, a respeito da Operação Anaconda, em que não houve gravação telefônica que não vazasse para a imprensa (que retribuiu ao noticiar acriticamente as falhas do trabalho policial): “Aquilo que foi vendido à opinião pública brasileira como uma ‘mega-operação’ da Polícia Federal e do Ministério Público Federal, ‘uma investigação como jamais vista na história’, tem se revelado apenas um amontoado de trapalhadas, prisões injustas, acusações sem provas e linchamento moral de inocentes”.

Um pouco diferente do que ocorre na Inglaterra, talvez. Mas não muito. E precisa ser corrigido com urgência, como parece que, enfim, ocorrerá na Inglaterra.

 

A suposta notícia

Primeiro era a certeza: o cavalheiro suspeito de um crime era apontado na imprensa como criminoso, bandido, facínora. Depois de muitos processos judiciais e muitas indenizações cobradas, surgiu a fórmula do suposto: o “suposto assassino”, por exemplo. Só que o suposto caiu na lista das expressões que, de tanto que foram usadas, perderam o sentido: hoje, o cavalheiro mata uma pessoa com 18 tiros, na frente de 54 testemunhas, confessa a autoria, explica por que matou, e mesmo assim é chamado de “suposto matador”.

Um caso supostamente interessantíssimo foi supostamente noticiado por um suposto veículo de comunicação, em São Paulo, suposta capital do Estado de São Paulo. Título: “Garoto recebe R$ 260 mil após suposto racismo em mercado de SP”. Na verdade, não era mercado, era supermercado. Um menino de dez anos foi detido ao sair do supermercado com biscoitos, refrigerantes e salgadinhos. De acordo com a acusação, os seguranças chamaram o garoto de “negrinho sujo e fedido”, levaram-no a uma sala e o obrigaram a tirar a roupa para ver se não escondia mercadoria nenhuma. Não escondia. E, ainda por cima, tinha a nota fiscal da compra. Acabou sendo libertado do cárcere privado.

E como é que se sabe que a coisa aconteceu exatamente assim? Porque o supermercado fez acordo com a vítima, pagando-lhe R$ 260 mil para desistir da ação judicial. Considerando-se que empresa nenhuma dá nada de graça, conclui-se que era mais barato pagar do que sofrer o processo.

E mesmo assim é “suposto”? Que é que precisava ter ocorrido para que a imprensa desse a notícia da violência, e não da suposta violência? Que o repórter estivesse por acaso no lugar certo, bem na hora em que a violência ocorreu, com filmadora ligada e um relógio bem atrás da vítima, para registrar a hora?

 

Teve, terá, teria

Uma variação do “suposto” é o condicional – ou, como se chama atualmente, “futuro do pretérito”. Algo como um cavalheiro que “teria” se jogado do 40º andar e “supostamente” se arrebentado no chão. Há um exemplo precioso de texto, publicado na semana passada num portal noticioso de importância:

“O grupo conseguiu fugir de carro. Nesse momento, o soldado da Rota Rodrigo Aparecido Pansani teria percebido a movimentação e, com sua moto, também teria passado a perseguir os assaltantes.

“Já na avenida Bandeirantes, perto do aeroporto de Congonhas, os criminosos teriam tentado abandonar o veículo para correr pelo canteiro central da via. Nesse momento, Pansani teria largado sua moto e, segundo as investigações, teria perseguido os criminosos.”

Cá entre nós: que é que foi que comprovadamente aconteceu?

 

Besteirol total

Quando o caro colega vê um anúncio de margarina na TV, acredita que a atriz que faz o papel de mãe e enaltece o sabor e as qualidades do produto é a mãe verdadeira dos atores que fazem o papel de seus filhos?

Alguém acredita que aquele Papai Noel que coloca os presentes na árvore de Natal da sala, nos anúncios de dezembro, é mesmo o Bom Velhinho, que alemães e americanos chamam de Santa Klaus e os portugueses de Pai Natal? E aquelas renas, alguém acha que elas voam mesmo e dão a volta ao mundo antes de voltar para sua casa na Lapônia?

Pois é: o deputado federal Tiririca fez anúncios com dois atores que apresenta como seus pais. Ele é tão filho dos atores quanto os garotos são filhos da mãe da margarina, ou netos da vovó que faz bolo para eles. Mas, como se trata de Tiririca, a imprensa denunciou-o ferozmente, por apresentar como pais, no anúncio, pessoas que não são efetivamente seus pais. Ri-dí-cu-lo!

 

Total besteirol

Mas imaginemos que Tiririca tivesse utilizado, em seu espaço no horário eleitoral gratuito, o trabalho dos próprios pais. Aí seria denunciado por nepotismo. Quem manda não fazer parte daquele grupo que se considera elite intelectual?

 

Péssima notícia

O excelente programa FrenteVerso, da Rádio Inconfidência de Belo Horizonte, referência do jornalismo mineiro, acaba de sair do ar. Motivo alegado pela Rádio Inconfidência: problemas financeiros – que se resumem, a propósito, na manutenção de um produtor para o programa.

É uma pena: FrenteVerso, apresentado nos últimos quatro anos por um ótimo jornalista, Marco Lacerda, antigo integrante do Jornal da Tarde, de São Paulo, um dos fundadores do Caderno 2, do Estadão, fez entrevistas notáveis com 150 personalidades da área cultural. Lucas Mendes, do Manhattan Connection, há pouco tempo recomendava que o programa fosse transmitido pela TV. O cirurgião Ivo Pitanguy o considerava “um desses programas que não existem mais no rádio”.

Volte logo, Marco Lacerda!

 

Voa, menino

Uma de minhas boas amigas, a advogada Beatriz Rizzo, não conseguirá resistir: vai ter de voltar à infância (que, aliás, não é tão distante assim). Fã de carteirinha de Alberto Santos Dumont, o Pai da Aviação, a ponto de ter viajado só para conhecer sua casa (aquela famosa, em que a escada tem degraus em alturas diferentes para os pés direito e esquerdo), não há chance de que perca este lançamento. Santos Dumont, livro infanto-juvenil de Nereide Santa Rosa, com ilustrações de Angelo Bonito, conta em poucas páginas a infância de um dos maiores inventores do Brasil – que não apenas construiu pioneiramente dirigíveis e aviões, mas inventou também um velho conhecido nosso, o relógio de pulso. Lançamento da Callis Editora, já nas livrarias.

 

Como…

De um grande jornal:

“Corpo de secretário particular de Hitler é exumado e cremado para evitar peregrinação de neonazistas“.

A notícia se refere a Rudolf Hess, aquele que pulou de paraquedas na Inglaterra no início da Segunda Guerra Mundial e ficou 46 anos na prisão. E estaria perfeita se Hess não fosse o adjunto de Hitler, e não seu secretário. O secretário particular de Hitler, quando Hess era o fuhrer-substituto, foi Martin Bormann.

 

…é…

Da edição online de um grande jornal:

“Flu perde em casa”.

Sim, o Fluminense perdeu. Mas o jogo foi em Curitiba, não no Rio.

 

…mesmo?

Do portal noticioso de um jornal de circulação nacional:

“(…) confirmaram que, após uma perseguição policial, viram o homem da Rota receber um tiro, cair no chão e agonizar por ajuda”.

Que quer dizer “agonizar por ajuda”?

 

Mundo, mundo

Quando não é possível vencer os inimigos, junte-se a eles. Mas, na idade deste colunista, há certos hábitos difíceis de mudar – grafia razoavelmente correta, por exemplo. Ou regência verbal. Ou aquelas pequenas normas que tornam a comunicação mais fácil, mais compreensível. Há coisas que não dá para ler sem dor de cabeça. Vejamos:

Donna Hrinak, ex-embaixadora de Washington em Brasília, diz que a criação de um escritório americano no Brasil seria um sinal importante para enfatizar a relevância “dada aos EUA a essa relação bilateral”.

Não seria “pelos” EUA? Porque a frase publicada indica exatamente o contrário; só que então não dá sentido.

Ou essa:

“Maicon e Robinho deixaram claro que o banco lhes incomodou, e bastante”.

Deve ser um banco duro, inadequado. E “lhes incomodou” que parte do corpo?

Ou ainda:

“No entanto, o time alvinegro diz não ter este dinheiro no momento, já que a grana dos direitos de televisão serão depositados apenas em janeiro de 2012.”

A grana serão – tudo bem, dá para dizer que é uma silepse de número e citar até exemplos em latim. Mas, antes de usar essa justificativa, seria bom que o autor da frase soubesse explicar o que é uma silepse.

E há uma pequena jóia:

Uma famosa professora informou que não sabia “quem tem mal humor”.

Deve ser quem escreve mau.

 

E eu com isso?

O Dia dos Pais se aproxima. Mas os grandes comentários nas rodas de fofoca envolvem filhos e sobrinhos:

** Filho de Juliana Paes anda de avião pela primeira vez

** Filho de Carolina Dieckmann está quase da altura da mãe

** Pais famosos brincam com os filhos em diferentes lugares do mundo

** Deborah Secco leva sobrinha de Roger para gravação de novela

** Shiloh completa cinco anos com muita atitude

Shiloh é uma das filhas de Angelina Jolie e Brad Pitt. Mas que é completar cinco anos “com muita atitude”?

** Cantor de pagode tem carro roubado em frente de casa na BA

** Luiza Brunet faz compras em loja de sapatos em um shopping, no Rio

** Larissa Riquelme nega estar gordinha e revela seu peso na televisão

Larissa Riquelme fora de peso? Este colunista respeita as opiniões alheias, mas para achar que Larissa Riquelme está fora de peso é preciso detestar mulher.

 

O grande título

Uma safra bem razoável. Podemos começar com um daqueles títulos que não cabiam e, na pancada, acabaram cabendo, embora meio mutilados:

** Tão logo a negociação veio a público, o Palácio do Planalto oficialmente que não se pronunciaria sobre o assunto

Temos algo referente à Copa que também entrou na marretada:

** Fifa não pediu ampliação de leitos para o Mundial

Que bom! Não será preciso ampliar nem o comprimento nem a largura das camas. Ou talvez a palavra “número” tenha sido arrancada para o título caber. E, a propósito, se a Fifa não pediu, cadê a notícia?

Temos algo razoavelmente estranho:

** (…) a unidade irá produzir (…) energia elétrica de alta eficiência

Este colunista está curiosíssimo: qual a diferença entre energia elétrica de alta ou de baixa eficiência?

E o grande título, também na categoria Estranhos:

** Polícia apreende 961 aves em caixas de porta-malas no Paraná

Dá várias interpretações. Uma delas certamente é a correta.

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[Carlos Brickmann é jornalista e diretor da Brickmann&Associados]