Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Nós e eles

A notícia foi divulgada como coisa comum, sem qualquer estranheza. Um repórter da ativa, de um grande veículo de comunicação, convenceu um cavalheiro a fazer um depoimento contra um político. E levou-o pelo braço ao Ministério Público, para falar aos promotores. Deu matéria; mas vale a pena iniciar, entre os leitores deste Observatório da Imprensa, um debate ético sobre esta atitude.

Um famoso bandido carioca, Lúcio Flávio Villar Lírio, ficou famoso ao dizer que polícia é polícia, bandido é bandido. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa, e ambas não devem se misturar. Acrescentemos, à frase de Lúcio Flávio, a nossa: jornalista é jornalista, promotor é promotor, delegado é delegado, e não há como misturá-los sem que as três profissões corram riscos.

Há ocasiões em que policiais, promotores e repórteres estão lado a lado; há ocasiões em que estão em lados opostos. Nossa arma é o computador; policiais e promotores usam armas mais letais. E não hesitam em colocar-se contra nós sempre que o julgarem necessário. Como já foi dito nesta coluna, não houve sequer um jornalista perseguido pela Polícia durante a ditadura militar que tenha ficado sem um promotor para acusá-lo.

Há tempos, um repórter contava que um famoso político estava há tempos no exterior, evitando assim ser citado num processo judicial. E, orgulhoso, dizia ter feito uma ligação para o alvo, colaborando para que um oficial de Justiça pudesse citá-lo por telefone. Mas este pelo menos só falou – não se atreveu a escrever.



A foto e o fato

O Palácio do Planalto se esmera e sempre consegue nos surpreender. E tapa a boca de quem diz que eles já fizeram o máximo de bobagens possível: eles se superam. A última foi mandar uma carta ao Estado de S.Paulo dizendo que uma foto induzia o leitor ‘a imaginar uma cena que não ocorreu’. A resposta do jornal é impecável: ‘Salvo melhor juízo, esta é a primeira vez na história da imprensa em que se tenta desmentir uma foto’.



Mentir com orgulho

Um jornal do interior paulista foi condenado a pagar danos morais por ter trocado os nomes do pai e do filho – e anunciar, em sua coluna social, que o pai estava muitíssimo bem acompanhado num determinado fim de semana. Imagine-se a reação da esposa! Mas a grande notícia não é a condenação: é a defesa que o jornal apresentou: ‘a notícia (…) foi publicada em coluna de ‘fofocas’ (…), de modo que inexiste credibilidade das informações ali constantes (…) O que se quer precisar (…) é que o quadro ‘Umas e Outras’ veicula apenas e tão-somente fatos da sociedade (…) sem qualquer censura, crédito ou confiabilidade’.

Este colunista jamais tinha visto um jornal admitir que suas notícias não merecem crédito. Mas reconhece um fato positivo: este, pelo menos, confessou. Quantas outras colunas, de revistas, jornais e internet não merecem a menor credibilidade, publicam notícias encomendadas e garantem que são sérias?



Delícias jornalísticas

Sobre a entrada de Paulo Maluf no PTB: ‘A cada eleição ele assiste a um recrudescimento de seu poder político’. O que o repórter queria dizer é exatamente o oposto: que, a cada eleição, Maluf tem assistido a uma redução de seu poder político. Recrudescer significa ‘tornar-se mais intenso; aumentar, crescer mais’. E, definitivamente, não é o que está acontecendo com os votos de Maluf.



Bom e mau

A imprensa escrita, que costuma ignorar as boas reportagens do rádio, desta vez cedeu: depois que a Rádio Bandeirantes revelou a corrupção de fiscais da prefeitura de São Paulo, os jornais entraram na parada e chegaram a dar crédito à emissora. Mas nem tudo é perfeito: o repórter que apurou tudo não teve o nome mencionado. Esta coluna vai reparar o erro: o repórter é Agostinho Teixeira, e sua atuação na Rádio Bandeirantes tem sido brilhante. Já apurou tanta bandalheira que, em certa época, montou-se uma espécie de rádio-peão na Assembléia Legislativa paulista, em código: ‘Chegou o Alfa-Tango’. Em linguagem aeronáutica, era a chegada de A.T., o Agostinho Teixeira. Os malandros que se cuidassem.



Choro e vela

Alguns petistas, desesperados (e chatos), reclamam da imprensa por dar ênfase aos problemas atuais, enquanto ignorou questões anteriores – especialmente a anunciada compra de votos para a reeleição de Fernando Henrique. Dizem que isso prova a parcialidade da imprensa em favor de tucanos e pefelistas (ou, como diria o presidente Lula, ‘das elite’) e sua má-vontade com o PT.

É claro que não é bem assim: naquele caso, houve deputados que tiveram de renunciar para não ser cassados (e que, como de hábito, voltaram à cena em eleições posteriores). Mas é fato que, devido ao clima político, a corrupção atual está sendo investigada pela imprensa com mais intensidade do que a anterior. E não só devido ao clima político: como os petistas sempre disseram que eram mais honestos que os outros, descobrir suas cuecas recheadas se tornou um esporte divertido.

Mas a coisa não se limita à disputa entre PT e PSDB. Um dos maiores compositores brasileiros, Herivelto Martins, compôs uma música de encomenda para o governador paulista Adhemar de Barros, chamada ‘Caixinha Abençoada’. Era algo como ‘quem é que não sabe/ quem nunca ouviu falar/ da famosa caixinha do Adhemar’. Caixinha era o nome que, na época, se dava à propina de hoje.

Adhemar dirigiu São Paulo, pela primeira vez, há mais de 60 anos. Mas também não foi o iniciador da tradição de levar o seu: numa excelente reportagem, muito bem pesquisada, Lúcio Vaz, do cada vez mais indispensável Correio Braziliense, foi buscar casos antigos na história do Brasil. E lembra que D. Pedro I já pagava o mensalão aos deputados (matéria anexa).

Lúcio Vaz / Correio Braziliense – 07/09/2005

Quem imagina que o ‘mensalão’ foi invenção do PT está enganado. Teria surgido no governo Fernando Henrique, ou quem sabe na era Collor? Nada disso! Há registros bem mais antigos, quase remotos. Basta dizer que D. Pedro I pagava mesada a deputados. Contam seus biógrafos que, em uma das crises do primeiro reinado, quando a Assembléia Legislativa cobrava explicações sobre as comissões militares que julgavam e condenavam presos políticos de forma sumária – outro tema recorrente na história brasileira -, ele ia pessoalmente às casas dos deputados corrompê-los para votarem a favor do ministério. Quando lhe disseram que Gonçalves Ledo fazia na Câmara um belo discurso em defesa do Ministro da Guerra (acusado de ser o mentor das tais comissões), D. Pedro I virou-se para as pessoas que o rodeavam e disse: ‘Forte tratante! É a terceira vez que o compro e em todas me tem servido bem!’

No auge da influência da Marquesa de Santos (entre 1825 e 1827), a corrupção corria solta. Amante de D. Pedro, ela negociava nomeações valendo-se do enorme poder que exercia sobre o imperador. Dizia-se que ninguém assumia cargo público sem o seu aval, que a marquesa recebia parte do salário do nomeado ou mesmo um pagamento antecipado. A prática lembra as extorsões sofridas por servidores da Câmara, que repassam parte de seus vencimentos para os deputados. E guarda semelhança com o sistema de mesada implantado em estatais no atual governo. Ela também dava um jeito de conseguir liberar mercadorias no porto, concessões de serviços públicos, etc. Dessas práticas muitos estrangeiros dão testemunhos. Ela tirava a sua comissão e pagava sempre 5% ao intermediário.

Os relatos foram extraídos de livros da cientista política e escritora Isabel Lustosa, pesquisadora titular da Fundação Casa de Rui Barbosa na área de pesquisa em história. Em suas pesquisas, Isabel tem trabalhado com história da imprensa. Seus principais livros são: Insultos impressos – a guerra dos jornalistas na Independência, O nascimento da imprensa no Brasil e Brasil pelo método confuso – humor e boêmia em Mendes Fradique. É co-editora, junto com Alberto Dines, da coleção fac-similar do Correio Braziliense de Hipólito da Costa, obra que foi publicada pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, em parceria com o Correio, entre 2000 e 2003.

Quem furta mais?

Isabel estudou a corrupção no Império, mas afirma não ter elementos para avaliar a corrupção no Brasil colônia. ‘Até porque o sistema das capitanias hereditárias era um sistema quase empresarial, terra que eram concedidas pela coroa portuguesa a particulares desde que as colonizassem. E, mesmo durante o período da exploração colonial mais sistemática, ciclos do açúcar e do ouro, a política de arrecadação de tributos da metrópole era tão extorsiva que era um estímulo à corrupção’.

‘Com a vinda do Rei, em 1808, veio também todo um sistema de administração caótico e acobertado pelo regime absolutista que favorecia a corrupção. O chefe do tesouro sempre entesourava’, diz a escritora. Quando da partida do rei D.João VI, em abril de 1820, o jornalista Hipólito da Costa publicou no Correio Braziliense críticas ao fato de o Conde dos Arcos, principal ministro de D. Pedro, ter dado por justas e liquidadas as contas do tesoureiro-mor, Targini, e liberado passaporte para aquele ‘se pôr ao fresco’.

O tesoureiro Targini tinha fama de desonesto e de ter enriquecido no cargo. Dele disse Hipólito da Costa que, ‘sem outros bens mais que o seu minguado salário, tornara-se tesoureiro-mor do Erário, fora elevado a Barão de São Lourenço, em 1811, e era agora um homem riquíssimo, enquanto o erário se achava pobre’. E completava: ‘Se a habilidade de um indivíduo em aumentar suas riquezas fosse por si só bastante para qualificar alguém a ser administrador das finanças de um reino, sem dúvida Targini devia reputar-se um excelente financista’. Por isso talvez fosse tão popular uma quadrinha que dizia: ‘Quem furta pouco é ladrão/ Quem furta muito é barão/ Quem mais furta e esconde/ Passa de barão a visconde’. São relatos do livro Insultos Impressos.

Sátira completa

O livro A história do Brasil pelo método confuso, de Mendes Fradique, é uma sátira completa da nossa história e dos nossos políticos. Logo no começo, o autor pede a um gramático que coloque os pronomes nos lugares certos, porque ele admite passar com os pronomes ‘o mesmo aperto que passam os ministros com os seus protegidos – o aperto de colocá-los’. O livro apareceu pela primeira vez publicado em capítulos na revista humorística D. Quixote, em 1919. Depois, ao longo da década de 1920 teve seis edições. Este livro foi reeditado pela Cia. das Letras em 2004, em edição organizada e anotada por Isabel Lustosa para a coleção Retratos do Brasil.

Recuando um pouco mais no tempo, chega-se ao período da descoberta do Brasil. Ao descrever o estado do Brasil quando foi descoberto por Cabral, Fradique diz: ‘Quanto à sua cor, homens daquele tempo, como os de hoje, aproximam-se muito do cobre’. ‘O comércio mais ativo era o de princípios, de opiniões, de votos, de caráter e até o da alma. Toda a gente era negociante. Dizem alguns paleontologistas que até a própria justiça tinha uma venda’. Após cinco séculos, em tempos de ‘mensalão’, o estado descrito por Fradique parece eterno.

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Jornalista, diretor da Brickmann&Associados