O jornal alemão Bild noticiou que Ronaldo Fenômeno passou a noite na gandaia e só chegou à concentração brasileira de manhã cedinho. A notícia foi transcrita pela imprensa brasileira – e só faltou dizer que o Bild é famoso pela falta de escrúpulos, pelas histórias que inventa para manter alta a circulação. Um grande romance alemão, A Honra perdida de Katharina Blum, de Heinrich Böll, conta a história de uma moça difamada por um jornal – e, no final, Böll diz que, se alguém acha que aquele jornal sórdido se parece com o Bild, acertou na mosca.
O problema, porém, não é o Bild, nem os jornais marrons em geral. Esses fazem o mal, mas todos sabem que são do mal. O problema são os jornais que não existem para fazer o mal, mas fazem; os jornais ‘do bem’ que, na luta pelo furo de reportagem, descuidam-se de checar as notícias, esquecem de ouvir os atingidos, só dão crédito e espaço aos acusadores. Pior: julgam em bloco. No bárbaro episódio da invasão do Congresso por desordeiros, quantas vezes se leu e ouviu que o comportamento ‘dos parlamentares’ explicava o que tinha acontecido?
A imprensa em peso julgou absurda qualquer absolvição no caso do mensalão. Achou inaceitável que qualquer dos acusados pudesse ser inocente (a propósito, é a mesma imprensa que usa como fontes preferenciais parlamentares como Antônio Carlos Magalhães, Jader Barbalho, o senador Romeu Tuma – aquele, dos tempos da ditadura). E abriu caminho para uma série de conseqüências: primeiro, a absolvição em massa (se uma única absolvição geraria uma tempestade de críticas, não havia diferença entre liberar um e liberar geral); segundo, o descrédito do Congresso como um todo (e o renascimento de comentários de que é preciso colocar os militares no poder – como se os militares, também como um todo, fossem inatacáveis). Terceiro, o sepultamento das diferenças: do jeito que a imprensa fala, ninguém presta. Tanto faz José Janene quanto Pedro Simon.
Só que o mundo não é assim. O Congresso é um retrato do país, com gente honesta e desonesta, culta e ignorante, boa e má. Nivelar tudo por baixo é nivelar o país por baixo. E abrir caminho para que malucos disfarçados de sem-terra se dediquem ao vandalismo. Se o Congresso é todo ruim, quem irá defendê-lo?
Sugestão
A Honra Perdida de Katharina Blum é um livro essencial a qualquer repórter que pense em ética. Outro livro que não pode deixar de ser lido é Fogueira das vaidades, de Tom Wolfe. Ambos mostram como um fato, devidamente distorcido, pode destruir a vida de uma pessoa.
Imprensa Livre
Este colunista não encontrou em lugar nenhum da imprensa nenhuma notícia sobre as investigações a respeito do ataque ao Imprensa Livre. O jornal de São Sebastião (SP) foi atacado por capangas e teve equipamentos incendiados. Foi na mesma época da rebelião do PCC. Quem atacou o jornal? Como andam as investigações? Voltamos ao tempo em que pessoas acusadas empastelavam jornais?
Mais mordaça
Há muito pouco noticiário sobre a perseguição que se faz ao jornal Correio do Estado, de Campo Grande (MS). O jornal está proibido, por decisão judicial (!), de publicar qualquer notícia sobre investigações que envolvam o ex-prefeito André Puccinelli, do PMDB. Há ameaça de multa ao jornal e de prisão para jornalistas e diretores. A propósito, o Correio do Estado é apartidário: é processado pelo PMDB e também pelo governador Zeca do PT.
Quantos?
‘Online’ é uma expressão em inglês que, no jornalismo, significa ‘chute’. Na luta pela primazia em dar a notícia, a precisão desaba. A invasão do Congresso foi feita simultaneamente, conforme o ‘online’ preferido, por 300 ou 700 desordeiros. Tudo bem, no calor da hora é difícil calcular o número exato. Mas a diferença tem de ser maior que o dobro?
Surpresas
Na esteira das contas atribuídas a Duda Mendonça no exterior, muita gente andou pregando o fim do marketing político nas eleições – algo moderno, imaginam, que só serve para engordar o custo das eleições. Mas a imprensa de vez em quando nos reserva agradáveis surpresas: O Estado de S.Paulo publicou um excelente material do repórter Gabriel Manzano Filho, mostrando como Cícero, o tribuno romano que viveu há 21 séculos, já usava o marketing político. Veja o artigo abaixo.
Como não mudar nada na política em 2 mil anos
Gabriel Manzano Filho / copyright O Estado de S.Paulo, 4/6/2006
Um pequeno panfleto de 2 mil anos atrás, escrito por um administrador de província romana, traz para os eleitores brasileiros uma boa e uma má notícia. A boa é que a política brasileira, com seus mensalões, acordões e absolvições, não é de modo algum pior que as outras. A má é que, visto que nada mudou nos últimos 21 séculos, não há razão para se achar que vai melhorar daqui para a frente.
O texto em questão é o Comentariolum Peticionis – em bom português, Breve Manual de Campanha Eleitoral. Escreveu-o, em 64 a. C., Quinto Túlio Cícero, para seu irmão famoso, o orador Marco Túlio Cícero, que naquele ano decidiu candidatar-se a cônsul, uma espécie de magistrado supremo do Senado romano. Não sendo da nobreza, Cícero queria convencê-la a votar nele, mas ao mesmo tempo precisava manter seu prestígio com o povo.
O manual é um espantoso retrato de como as coisas nada mudaram, ao longo de 2 mil anos. ‘Põe em tua cabeça que tens de fingir o que não tens de natureza’, aconselhava Quinto ao irmão, ‘de modo que pareças atuar de modo natural.’ ‘Isso é imprescindível a um candidato, cujo semblante, rosto e palavras deverão mudar e adaptar-se ao sentimento e à vontade de quem seja com quem se encontre.’
Quinto dividiu seus conselhos em 58 pontos, nos quais adverte o irmão sobre como e o que falar com as pessoas, a quais grupos agradar, o que não dizer, como explorar os defeitos dos rivais. ‘É mais importante ser um bom candidato do que uma boa pessoa’, ensina ele. Sua primeira sugestão: Cícero devia ir todos os dias, já de manhã, para o Fórum, no centro de Roma, para a ‘prensatio’ – o aperto de mão. Exatamente como hoje, eram intermináveis sessões de sorrisos e afagos, dirigidos não só aos conhecidos, mas a qualquer um que aparecesse. Uma boa assessoria deveria providenciar visitas importantes à sua casa e platéias para os discursos, além de um ‘nomenclator’, o providencial assessor que lhe assopra no ouvido os nomes das figuras importantes que estão por perto. Para destacar-se na multidão, deveria usar sempre uma túnica bem branca, a chamada ‘toga candida’. De tanto usar essas vestes os caçadores de voto romanos foram chamados de candidatos.
Compra de votos
Não há indícios, nos conselhos de Quinto, de que seu irmão tivesse um Delúbio ou Valério – mas era comum, já naquela Roma de Júlio César e Pompeu, recorrer a tais figuras. Elas tinham até um nome: eram os divisores, os tesoureiros de campanha, assim chamados porque dividiam o dinheiro em troca dos votos. Quando se faziam tais acordos, o suborno era deixado, até a eleição, com um intermediário, o ‘seqüestre’.
Quinto pede, no texto, que Cícero evite as discussões e definições políticas, ‘de modo que o Senado creia que serás um defensor de sua autoridade; e a multidão, que não te oporás aos seus interesses’. Compromissos partidários sérios, nem pensar: era preciso dar tratamentos diferentes aos dois principais grupos políticos da época, os ‘optimates’ (da nobreza) e os ‘populares’ (das classes média e baixa). Como os nobres não engoliam o sistema republicano então vigente, Quinto aconselha: ‘Deves convencê-los de que nós sempre tivemos os mesmos sentimentos (deles), em relação à república e que em absoluto temos sido populares; e que, se alguma vez nos viram falar como populares, o fizemos com a intenção apenas de atrair (o poderoso general ) Pompeu.’
Por fim, era indispensável bater duro nos concorrentes. ‘Dos rivais, Antônio e Catilina, (…) deves lembrar que são assassinos desde a infância e depravados os dois.’ Um deles ‘comprou no mercado de escravos uma amiguinha para tê-la em casa, abertamente’.
Com muita ou pouca ajuda do manual, Cícero foi eleito, dividindo o consulado com o rival Gaio Antônio. Seu ano como cônsul, em 63 a.C., entrou para a história. Foi nesse cargo que, em discursos memoráveis, denunciou uma grave conspiração comandada por outro rival: Catilina. Seu furor foi tal que, já na manhã seguinte ao primeiro discurso – ele fez quatro –, Catilina fugiu de Roma e, comandando uma rebelião, morreu meses depois.
Merchandising
Este colunista já se habituou a encontrar amplas reportagens sobre determinadas doenças, nas quais se informa que são muito mais nocivas do que se imaginava. Pouco depois, sai um remédio novo na praça. A novidade é uma coluna social inteira dedicada ao lançamento de um remédio, com distribuição de amostras grátis e com direito a entrevistas sobre o efeito causado – como se remédio fosse um docinho, um biscoitinho, um petit-four. Alô, Anvisa! Alô, Associação Médica Brasileira! A parte científica da indústria farmacêutica foi arquivada?
Overball
Esta coluna errou ao informar que a imprensa, tendo espaço de sobra para relatar a Copa, ainda ia se dedicar à análise de unhas encravadas do Ronaldinho Gorducho. Diferentemente do que foi informado, a imprensa não se dedicou à análise das unhas encravadas, mas das bolhas nos pés do Ronaldinho Gorducho.
Mas o caro leitor não perde por esperar: Copa do Mundo tem treze toques. Isso não tem a menor importância, claro, mas serve para preencher espaços.
Elenco é mais fácil
Depois que a imprensa passou a noticiar cada espirro dado por modelos (ou top models, ou übermodels, ou boiolagens parecidas), voltou à moda uma palavra que havia desaparecido desde os anos de ouro do rádio: cast – o elenco. A Rádio Nacional do Rio tinha em seu cast artistas como César de Alencar, Emilinha Borba, Cauby Peixoto. Depois, quando a imprensa resolveu falar um pouco de português, a coisa mudou: fala-se no ‘elenco’ da novela. Usa-se cast, hoje em dia, para designar o elenco de modelos de uma determinada agência.
Está bom, ninguém pode impedir ninguém de dar nomes em inglês para coisas conhecidíssimas em português, com o objetivo de parecer mais chique. Mas, pelo menos, esse povo poderia usar inglês correto. Casting, como vêm usando, é o ato de formar um cast. Giselle Bündchen não pertence ao casting de agência nenhuma: pode, se quisermos falar em inglês, pertencer ao cast.
E quando é que vamos chamar o Dida de goal-keeper, como antigamente? Certamente não demora: só falta encontrar um jeito errado de escrever o inglês.
Como viver?
Um texto na internet pergunta como é que sobrevivemos aos anos 60, quando não havia airbags nos automóveis nem celulares com jogos eletrônicos – aliás, nem celulares. Mas este colunista vai mais longe: como é que conseguimos viver até agora sem saber, por exemplo, que Keira Knightley diz que odeia fazer ginástica? Ou que Lindsay Lohan, seja lá ela quem for, surgiu numa festa com brilhantes? Ou que Carolina Magalhães posou de microssaia no aniversário de uma revista (e, a propósito, quem é Carolina Magalhães)?
Mas, agora, já temos condições de continuar vivendo. Sabemos, graças aos veículos de comunicação, que Fábio Assunção circula em São Paulo em boa companhia; e que Raíca, a modelo de plantão de Ronaldinho Gorducho, quer casar de véu e grinalda.
Matéria de memória
Xuxa anuncia adesão ao Programa de Erradicação do Castigo Físico contra Crianças. Está progredindo: nos velhos tempos, ela beliscava as criancinhas!
Como é mesmo?
Este é um dos melhores títulos incompreensíveis da semana: ‘AMD pode comprar ATI, mas empresa nega’.
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Jornalista, diretor da Brickmann&Associados