O repórter Marcelo Tavela, do portal Comunique-se, foi à cidade paulista de Porto Ferreira, a 230 km da capital do Estado, e obteve in loco diversas afirmações favoráveis e contrárias à forma de atuação de Luiz Carlos Barbon Filho como jornalista. Sua reportagem ‘Morte de Barbon mostra promiscuidade entre política e imprensa’, publicada ontem (quarta-feira, 9/5), cita acusações de venda de matérias, extorsões e relações indevidas com políticos, assim como negações dessas práticas e declarações de que ele atuava corretamente como jornalista e de que seu trabalho estava incomodando os donos do poder em sua cidade.
Independentemente da necessidade de se considerar o assassinato de Barbon (ver Sindicalistas desqualificam jornalista assassinado) como um atentado à liberdade de imprensa, a iniciativa do Comunique-se é correta. A verdade sobre Barbon deve se tornar pública, doa a quem doer. No entanto, não dá para tirar uma conclusão definitiva, ainda mais com fontes como essas. Mas dá para perceber que Barbon não deve ter sido nada diferente de milhares de jornalistas devidamente registrados que atuam no país.
Mesmo que tudo o que se disse de negativo sobre Barbon venha a ser comprovado, o assassinato continuará sendo um atentado à imprensa. As acusações que fazem a ele são de infrações éticas que só são passíveis de serem praticadas por quem exerce o jornalismo. Vão agora dizer que Assis Chateuabriand não era jornalista porque tinha outros negócios e achacava? Que milhares de ‘jornalistas responsáveis’ no Brasil não são jornalistas porque alugam seus registros no MTb para donos de jornalecos vagabundos venderem matérias pagas?
Se Barbon tivesse escapado vivo do atentado contra ele, a obrigação de toda a imprensa teria de ser a de solidariedade, mobilização pela apuração do crime e caracterização do ato como atentado à liberdade de imprensa, que é um valor que transcende a pessoa de cada jornalista. Enfim, é um atentado contra todos nós.
Os homens da escopeta calibre 12 e seu mandante teriam feito o que fizeram com qualquer jornalista, independentemente de registro ou diploma. A prática condenável de usar o documento da Fenaj para ‘dar carteirada’ é eficaz em porta de boate e de estádio, mas não funciona com jagunço.
Se tivéssemos dúvidas sobre a integridade de Barbon desde o primeiro momento, o máximo que poderíamos ter dito sobre isso em notas oficiais de entidades jornalísticas é que suspeitas sobre a forma de atuação como jornalista não tiram do assassinato o caráter de atentado à liberdade de imprensa.
É o caso, com certeza, de se apurar a verdade sobre Barbon. Mas isso não muda o que afirmou a Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) em sua ‘Nota Oficial’:
‘O fato de [a execução] ter sido realizada em local público, de modo premeditado e com extrema violência revela uma tentativa clara de intimidação da imprensa e de impedi-la de cumprir sua obrigação de relatar fatos à sociedade. Exige-se do poder público uma atuação exemplar, com rápida e criteriosa investigação, a fim de que os autores materiais e intelectuais do crime não fiquem impunes. Omitir-se nesse caso é um estímulo à repetição de crimes como esse.’
A Abraji reagiu com rapidez porque sabe o que está em jogo. A Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas) e o Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo rapidamente desqualificaram o crime como atentado à imprensa porque sua verdadeira prioridade é a defesa da espúria regulamentação profissional pelo decreto-lei 972, de 1969, que está suspenso por liminar do Supremo Tribunal Federal.
A liberdade de expressão propugnada por diversos documentos internacionais fundadores dos direitos e garantias fundamentais do cidadão implica também a liberdade de informar (e não estou dizendo ‘opinar’) e de ter seus próprios meios para fazê-lo. Ninguém pode ser obrigado a esperar por quatro anos para poder exercer essa liberdade se sente a necessidade de fazê-lo em sua comunidade e não encontra canais para isso. Mas a sociedade deve cobrar a forma como essa pessoa vai atuar. E é por isso que existem diversas formas de regulamentação profissional não cerceadoras.
Não estou aqui defendendo o tal do ‘jornalismo cidadão’ nem outras práticas informativas que estão surgindo em decorrência das facilidades trazidas pela internet e pelas novas tecnologias. Isso, assim como muita coisa que vem sendo feita até mesmo por jornalistas profissionais, não tem nada a ver com a função de mediação, apuração e checagem sob o ethos do jornalismo. ‘Jornalista cidadão’ pode e deve ter seu canal de expressão, mas não é nada mais que um novo tipo de fonte. Se exercer sua atividade sob as condições exigidas pelo ethos de nossa profissão, deverá ser considerado jornalista.
Completamente alheia à realidade da profissão no mundo, nossa ‘categoria’ permanece em uma situação análoga à da alegoria da caverna, de Platão, no Livro VII de sua obra A República: aquele que se liberta das amarras que o obrigavam a imaginar as sombras como realidade e sai da caverna, é imediatamente ofuscado pela luz do sol. Mas, se mantiver os olhos abertos, irá se acostumar com a claridade. Ao voltar para a caverna, preocupado com os antigos companheiros de infortúnio, e contar a todos sobre o que viu, suas palavras não serão compreendidas e o farão correr o risco de ser morto por eles.
Como bem diz meu tio Celso Tuffani, ‘em terra de cego, quem tem um olho é morto a bengaladas’.
É essa mesma cegueira que faz a Fenaj e o sindicato paulista deixar de considerar o assassinato de Barbon como um atentado à imprensa. Enquanto isso, entidades jornalísticas internacionais, como o CPJ (Comitê de Proteção de Jornalistas) e Repórteres sem Fronteiras, posicionam-se oficialmente pela cobrança da ação das autoridades na apuração desse crime.
Por tudo isso e pelo que tenho dito anteriormente, a nota oficial da Fenaj e do sindicato paulista merece repúdio. E, o que é mais importante, a mobilização em torno desse atentado contra a imprensa precisa ser mantida.
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Publicado originalmente no blog Laudas Críticas