Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O caminho para a apartação cultural

‘O que restou na televisão aberta para os `baixinhos´, como diz Xuxa, passada a era das apresentadoras loiras?’ – perguntou-se a Folha de S.Paulo, na reportagem sugestivamente intitulada ‘Quem precisa da TV aberta?’, assinada por Laura Mattos, publicada em 9 de novembro do ano passado. Não restou quase nada, responde. ‘As paixões da meninada hoje são `Backyardgans´, `Ben 10´, `High Scholl Musical´ e outros programas totalmente gestados em canais pagos’, informa. Esqueceu-se muito convenientemente de acrescentar: além de pagos, estrangeiros.


A mentalidade de milhões de crianças e jovens que, daqui a 20 ou 30 anos, começarão a assumir postos de responsabilidade e de liderança nas mais diversas atividades de nossa sociedade, da simples operação ou gestão de empresas, até a alta produção cultural ou direção política, está sendo, neste momento, integralmente formada por produtos simbólicos sem qualquer vinculação com a cultura brasileira e com alguma idéia de pertencimento e destino comum de nação. Mas, como diz com aparente ingenuidade a mesma matéria, aqueles e outros programas ‘estampam milhares de subprodutos, de DVDs a cuecas e macarrão instantâneo’. Habituam as crianças a naturalizar o consumo desmedido (de marcas importadas) e nada lhes ensinam sobre democracia, cidadania e projeto de país.


Valores éticos


Cerca de 5,5 milhões de domicílios brasileiros já são atingidos pela TV paga. Em quase todos, encontram-se os canais Discovery Kids, Warner, Cartoon Networks, Disney, Nickelodeon e outros. É claro que esses domicílios são basicamente habitados pelas chamadas classe ‘A’ e ‘B’, ou seja, burguesia e alta classe média. Neles se encontram as crianças e jovens com melhores condições de acesso à informação e educação, com elevado poder de consumo, destinadas, gostemos ou não, a sucederem seus pais e avós na condição de elite (econômica, política, intelectual, cultural) do país, daqui a alguns anos.


Voltando a se comportar como as elites que tínhamos até meados do século 20, esta será, de novo, uma elite de costas para o Brasil, que aprenderá a olhar (já está começando a aprender) com profundo desprezo para a nossa história e para a nossa cultura, sobretudo para a nossa rica cultura popular. Uma elite americanalhada.


Este é ou deveria ser o ponto central do debate em torno do PL 29. Seria uma oportunidade para, corrigindo o equívoco da cultuada Lei do Cabo, submeter o audiovisual, qualquer que seja o seu meio de propagação e difusão, aos princípios expressos nos artigos 221, 222 e 223 da nossa Constituição. Ora, quando a Constituição foi elaborada, no final dos anos 1980, a produção cultural somente poderia ser veiculada, além da imprensa escrita e das salas de cinema ou teatro, através do rádio e da televisão.


A Constituição por isto só tratou destes. Hoje, aquelas missões que a Constituição atribuiu ao rádio e à TV propagados por sinal eletromagnético aberto, precisam também, sob pena de total incoerência, além de atentado contra o futuro do Brasil, serem estendidas ao sinal eletromagnético fechado, pago ou codificado. A televisão, seja por que meio for, por VHF, cabo, satélite ou celular, não pode deixar de atender aos mandamentos constitucionais: preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais, informativas; promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente; regionalização da produção cultural e respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.


Texto tortuoso


A TV paga, desde que deu os seus primeiros passos no Brasil, jamais atendeu a esses ditames da nossa Constituição. Não está a serviço do desenvolvimento cultural e econômico brasileiro. É verdade que se pode questionar se a TV aberta atende àqueles princípios. Pode-se e deve-se. Mas, hoje, quando, cada vez mais, a TV paga vai se tornando o principal meio de informação e entretenimento da população (nos EUA já atinge 90% dos lares; em todo o mundo, já chega a quase metade dos lares com TV), há que se afirmar, contra os dogmas do mercado e da ideologia consumista, que ela também precisa ser objeto de regulamentação que reconheça e estabeleça a sua finalidade primeiramente educativa e cultural; que nela imprima também princípios de regime público; que dela faça igualmente instrumento de políticas públicas em benefício da maioria da nossa sociedade.


A princípio, o debate sobre a regulamentação da TV paga deveria estar inserido no debate maior sobre a regulamentação de toda a indústria brasileira de comunicações, a ser travado na 1ª Conferência Nacional de Comunicação. No entanto, enquanto a Confecom debate no abstrato, sem maiores poderes decisórios, o PL 29 avança no concreto, podendo vir a decidir sobre a TV paga no Brasil ainda este ano, assim criando fatos consumados. Por isto, é preciso debatê-la já!


O último substitutivo produzido pelas idas e vindas da Câmara assinala um enorme retrocesso diante de tudo o que, mal ou bem, se havia conseguido avançar, enquanto o projeto de lei esteve aos cuidados do engenheiro de telecomunicações e deputado carioca Jorge Bittar (PT). Retrocesso na forma e no conteúdo. O substitutivo de Bittar era formalmente bem elaborado e claro. Este último, apresentado pelo advogado e deputado paraibano Vital Rego Filho (PMDB), é confuso, não raro contraditório.


Um exemplo. O seu artigo 16 diz que ‘nos canais de programação e catálogos que veicularem mais de 3h30 de conteúdos brasileiros que integrem espaço qualificado, no mínimo 50% (cinqüenta por cento) dos conteúdos excedentes deverão ser produzidos por produtora brasileira independente’. Pelo que está aí escrito – e a lei vale pelo que está escrito – não é possível saber se esse tempo de ‘3h30’ é diário, semanal, mensal, anual… E como definir ‘conteúdos excedentes’? Será aquele que ultrapasse esse tempo de ‘3h30’? Caso esse ‘excedente’ seja de 1 minuto, o tempo da produção brasileira independente será de 30 segundos?


Já o projeto do deputado Bittar, ao menos era objetivo: qualquer canal cuja programação fosse majoritariamente definida como ‘qualificada’ (isto é, canais de filmes, documentários, desenhos animados etc.), estaria obrigado a transmitir, no mínimo, 3h30 semanais de conteúdos brasileiros, metade dos quais gerados por produtoras independentes. Pode-se considerar pouco. Nas suas primeiras versões, Bittar exigia mais. Mas aqui está claro qual será o tempo dedicado à produção brasileira, desta regra não se excluindo nenhum canal estrangeiro de filmes, documentários, desenhos etc. Já a regra pretendida pelo deputado paraibano, num texto tortuoso, pretende deixar de fora os canais estrangeiros e nada deixar muito claro sequer para os nacionais.


O que restará


Outro exemplo? Pelo novo substitutivo, os ‘pacotes ofertados aos assinantes’ deverão possuir, ‘pelo menos, um canal para veiculação exclusiva de conteúdo brasileiro em cuja programação, no mínimo, 12 horas diárias consistam em conteúdo brasileiro integrante do espaço qualificado restrito [leia-se, filmes, documentários, desenhos etc.], produzido por produtora brasileira independente’. Já o substitutivo do deputado Bittar determinava que os ‘pacotes’ deveriam possuir ‘pelo menos 25% de canais programados por programadora brasileira’, sendo que desses 25%, ao menos 1/3 deveria ‘ser programado por programadora brasileira independente’.


A diferença? Em um, o pacote pode ter 100, 200, 500 canais, e terá um canal supostamente brasileiro – algo como já é hoje o Canal Brasil perdido nos pacotes da NET. No outro, a cada 100 canais por exemplo, 25 teriam que ser canais realmente brasileiros, dos quais 8 não poderiam ser controlados por outras empresas da cadeia e todos teriam que veicular pelo menos 4 horas de filmes, documentários, desenhos etc (‘espaço qualificado’). Haveria mais exemplos, o espaço porém é curto.


Infelizmente, esse debate não tem mobilizado os corações e mentes que poderiam atentar para as dimensões do problema. Com efeito, crianças, jovens e adultos não assistem à NET, nem à Sky, como não assistirão à Telefônica, à Oi ou à Claro. Crianças, jovens e adultos assistem, sim, ao Disney, ao Cartoon, à Fox, à Warner, aos Telecines, à CNN, eventualmente também à GloboNews ou ao Canal Brasil. O que está em discussão é se nesses canais de televisão que, hoje, já substituíram a Globo, a Record ou o SBT no gosto da nossa criançada bem nutrida e, mesmo, de boa parte dos nossos adultos endinheirados, haverá espaço para a cultura brasileira.


Ou não. Se não, desde já podemos prever mais um processo de apartação em nossa sociedade: dentro de uns poucos anos, as classes médias e altas estarão totalmente informadas e formadas pelos canais oriundos dos Estados Unidos, enquanto que ao nosso povão restará assistir aos Faustões, BBBs, Datenas ou Lucianas Jimenez. Daí para pior.

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Professor do Departamento de Comunicação Social e coordenador do Instituto de Mídias Digitais da PUC-Rio, integrante do GTE do Fórum Mídia Livre e da Comissão Rio Pró-Conferência Nacional de Comunicação