Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O certo pelo caminho errado

Em setembro de 1997 a Fundação de Telecomunicações do Pará assinou um convênio com a TV Liberal, dando à emissora acesso a 78 torres, construídas pela Funtelpa, através das quais retransmitiria por todo o interior do Estado o sinal da sua programação, antes confinada a Belém e algumas localidades próximas. Além de multiplicar seu alcance usando rede alheia de retransmissão de som e imagem, sem pagar um centavo por isso, a TV Liberal ainda receberia da Funtelpa 200 mil reais por mês (valor que, reajustado, alcançou R$ 461 mil em janeiro deste ano). Como compensação, a emissora de televisão da família Maiorana cederia espaço na sua programação para ser usada pela Funtelpa (que, na verdade, só serviria ao governo do Estado, principalmente ao governador em pessoa).

Como se fora contrato e não convênio, o instrumento foi sucessivamente prorrogado a partir de 2002, quando completou o prazo máximo de validade contratual, de cinco anos. A última renovação foi aditada no último dia do governo anterior, de Simão Jatene, em 31 de dezembro de 2006, para perdurar por mais um ano.

Por muitos motivos relevantes e consistentes, o novo governo não quis manter a relação. Mas, ao invés de adotar a solução mais simples e imediata, que seria a revogação do 14º e último aditivo, enveredou por um caminho mais longo e complicado. Revogando a prorrogação, a Funtelpa estava simplesmente comunicando ao parceiro que não pretendia continuar a relação. É prerrogativa legal da administração publica rever os seus atos, a qualquer momento. Uma vez cancelado o aditivo, o ‘convênio’ desapareceria, perdendo de pronto sua validade, sem qualquer controvérsia. Todas as questões relativas à origem da relação entre a Funtelpa e a TV Liberal poderiam ser suscitadas posteriormente, se argüida – no foro devido, pela forma adequada – a nulidade insanável de origem do instrumento, que era o contrato e não o convênio.

Mas a administração da governadora Ana Júlia Carepa preferiu enfrentar o convênio desde o seu nascedouro, o que resultou em declará-lo nulo e, a partir dessa declaração, dotar medidas para reassumir o controle das torres, instaurar processo contra os responsáveis pela transação, assumir co-autoria na ação popular instaurada na 21ª vara cível de Belém contra o convênio, inclusive para cobrar o ressarcimento aos cofres públicos do dinheiro indevidamente destinado à TV Liberal (35 milhões de reais em 10 anos, sem correção) e pedir providências ao Ministério Público para a apuração e punição de possível delito de improbidade administrativa dos envolvidos na operação.

Ao recorrer da decisão da presidente da Funtelpa, que homologou as conclusões de uma comissão de inquérito administrativo, a TV Liberal deixou claro que não vai aceitar a decisão. O recurso da emissora, protocolado no dia 21, inverte completamente o discurso oficial, numa interpretação engenhosa – mas febril – do imperturbável trato que manteve com a Funtelpa durante 10 dos 12 anos de governo tucano.

Arremate do recurso

Sustenta o recurso que o convênio é mesmo o instrumento cabível, e não o contrato. A Funtelpa decidiu subsidiar a TV Liberal para que a emissora promovesse a integração da comunidade paraense, realizando uma tarefa de alto interesse público. Esse novo instrumento era a continuação e o aperfeiçoamento da relação antiga, iniciada em 1977 (o mesmo ano de criação da TV Cultura), que permitiu a implantação do Siert (Sitema Estadual Integrado de Retransmissão de Televisão).

Nesse primeiro momento, a TV Liberal pagou à Funtelpa porque a fundação estadual assumiu ‘todos os custos e encargos de implantação e treinamento’ para o Siert. O problema é que a programação era transmitida diretamente pela Rede Globo, como um enlatado, sem abertura para inserções locais. Nos intervalos de possível programação local, a tela ficava escura porque a TV Liberal não podia preencher esse váuo com programas que gerava em sua sede, em Belém, por falta de sistema para fazer subir seu sinal até um satélite e fazê-lo descer para captação em cada localidade interiorana.

Mas a TV Liberal montou um novo sistema, com sinal digital por satélite, via transponder, com a implantação de um up link. Era a única com essa ferramenta quando, em 1997, supostamente dando prosseguimento ao Siert, a Funtelpa a contratou, pagando-lhe para compensar esse investimento tecnológico prévio e para que pudesse produzir ‘material jornalístico e de cunho cultural regional’, com o qual a população do interior passaria a receber programação integral, proveniente tanto da sede da rede, no Rio de Janeiro ou São Paulo, como da afiliada, em Belém, ‘de abrangência sócio-cultural nunca antes experimentada por aquela parte da população paraense’.

Para poder criar esses programas regionais, a TV Liberal montou uma estrutura operacional e contratou pessoal para operá-la, deslocando equipes para o interior, dali gerando programas para a sede, esta devolvendo o material à sua origem. No novo momento, as responsabilidades se teriam invertido: agora era a emissora particular quem montava a estrutura, treinava pessoal e viabilizava a transmissão, isso por um custo inferior ao que teria a própria Funtelpa ou qualquer outra empresa particular, proclama o recurso.

Interromper esse sistema significaria descontinuar abruptamente um efetivo serviço público, o que é vedado pela Constituição. Com os poderes que o convênio lhe conferiu, a TV Liberal estaria investida na condição de concessionária de um serviço público. No caso, com a missão – a ela delegada pelo poder público – de promover a integração física e cultural do Estado do Pará.

A anulação homologada pela presidente da Funtelpa significaria um ‘vilipêndio aos cidadãos desse Estado, que estarão, de um momento para o outro, alijados das informações propiciadas pelo convênio’, diz o recurso, assinado pelo advogado Frederico Coelho de Souza. Além da retirada abrupta e ilegal das transmissões, a iniciativa seria ainda mais agravada pela admissão, pela direção da Funtelpa, que a fundação ‘não possui os meios para substituir o serviço prestado pela TV Liberal’.

Aí vem o arremate do recurso, incorporando doutrina jurídica segundo a qual ‘a continuidade impõe ao serviço público o caráter de ser contínuo, sucessivo. Vale dizer: uma vez instituído, há de ser prestado normalmente’. Havendo, assim, a vedação à descontinuidade do serviço público, o convênio teria que ser mantido.

Imoral e lesiva

A governadora Ana Júlia Carepa, em despacho do dia 28, não acolheu o recurso e manteve integralmente o ato da presidente da Funtelpa, Regina Lima. Praticamente repetiu toda a argumentação exposta sucessivamente pela Procuradoria Geral do Estado, assessoria jurídica da Funtelpa e comissão de inquérito da fundação, que é sólida, mas apenas a partir da premissa de que a relação com a TV Liberal é um contrato disfarçado e não um convênio, estratagema usado para contornar as exigências da lei que dispõe sobre as licitações públicas.

O despacho da governadora, porém, não enfrentou as alegações do sagaz recurso apresentado pela TV Liberal. Ele é uma bem articulada construção jurídica, como era de se esperar de um conceituado escritório de advocacia, como o de Frederico Coelho de Souza. Mas a peça não resiste ao confronto com a realidade. Não deve passar no teste de consistência.

Não é verdade que a TV Liberal montou o sistema do LibSat para dar prosseguimento à primeira relação com a Funtelpa, iniciada em 1977, que era um contrato e não um convênio (mas também adotado sem licitação pública, embora a emissora particular pagando à fundação pública). O acesso ao satélite foi uma imposição da Rede Globo de Televisão, uma iniciativa puramente comercial que guardava coerência com a natureza da rede e seus propósitos de expandir a cobertura televisiva – e, por extensão, o faturamento. Se já não existisse um sistema de retransmissão, como o da Funtelpa, a TV Liberal teria que criar seu próprio sistema, como uma decorrência inevitável dos compromissos contratuais com a Rede Globo.

A tal ‘produção de material jornalístico e de cunho regional’ também deriva da diretriz da Rede Globo, de buscar enlaces locais. Mesmo que não houvesse essa linha de programação, porém, a alegação de que a TV Liberal devia ser remunerada por esse investimento, por fazê-lo em função do convênio com a Funtelpa, é inteiramente falacioso: basta assistir a qualquer uma dessas transmissões regionalizadas para verificar que elas têm patrocinadores comerciais. Obrigar a fundação paraense a subvencioná-los, como ‘modalidade de fomento’, destinada a ‘incentivar a iniciativa privada de interesse público’, como pretende o recurso da família Maiorana, é dilapidar o recurso público, já que se trata de iniciativa de interesse comercial, devidamente faturada junto a anunciantes.

Se, de fato, a nova relação iniciada em 1997 acabou com a tela negra que permanecia até então nos televisores dos habitantes do interior nos intervalos da programação nacional da Rede Globo, as inserções feitas a partir de então, ainda que tivessem de fato o sentido estratégico de ‘integração da sociedade paraense’, resultaram na multiplicação do faturamento da TV Liberal, antes impedida de ter acesso a esses intervalos, muitos deles longos. Mesmo que pagasse à Funtelpa, como fizera nos 20 anos anteriores, a emissora teria grandes lucros. Por isso pagava até então. Ao querer, ainda por cima, receber de quem lhe concedia esse enorme benefício, tornou a relação simplesmente imoral e lesiva ao interesse público, além de ilegal na origem.

Mas e agora que, a despeito de tudo, a Funtelpa continua a transmitir para o interior a programação da TV Liberal, mesmo tendo declarado nulo o instrumento que possibilitara essa atividade, dispondo-se a reaver o que diz ter sido pago indevidamente, como irá evoluir essa estranha situação?

Ralo da incompetência

A TV Liberal já antecipou sua linha de ação. Em primeiro lugar, assegurar a continuidade do inusitado ‘serviço público’ que presta, mandando para o interior do Pará os programas da Globo e os seus, embalados por faturamento comercial. A descontinuidade caracterizaria violação a preceito constitucional, o que significa demanda judicial até a última instância, o Supremo Tribunal Federal. Em segundo lugar, a emissora dos Maiorana vai cobrar – provavelmente em juízo, a partir de agora, com o esgotamento da instância administrativa – a verba de fomento que lhe é paga, enquanto ‘empresa privada de interesse público’, pela atividade de integração regional que realiza.

Isto significa mais confusão pelo horizonte e o adiamento, por mais tempo, ou mesmo indefinidamente, da criação da verdadeira TV pública no Pará, uma das plataformas de governo formuladas pelo PT para mudar o Estado. Trinta anos atrás, ao mesmo tempo em que criava a TV Cultura, o governo do Estado cedia seus instrumentos de disseminação de som e imagem a uma emissora particular, confinando sua própria televisão à capital. Enquanto a Cultura tentava ser um experimento metropolitano, a TV Liberal assumia o controle do vasto interior do Estado, tornando-se dona da voz e detentora do caixa.

Se há realmente uma intenção de acabar com essa excrescência, o propósito pode estar escoando pelo ralo da incompetência, pelo modo errado de transformar em fatos as pérolas formais do discurso.

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Jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)