Há alguns dias, o governador paulista José Serra se irritou profundamente com as perguntas da equipe da TV Brasil a respeito das enchentes em São Paulo. Nos bons tempos do jornalismo, seria o suficiente: nenhum outro repórter faria nenhuma outra pergunta sobre nenhum outro assunto. Se o tema irritava o entrevistado, algum motivo haveria – e por que não tentar descobri-lo?
Os dias se passaram e o assunto foi abandonado. Os meios de comunicação de São Paulo mantiveram obsequioso silêncio para não irritar a autoridade. Não se trata, fique claro, de culpar o governador pelo excepcional volume de chuvas, nem deixar de condenar atos anti-sociais da população, como jogar móveis velhos, pneus usados, entulho e lixo nas ruas, que tanto contribuem para as enchentes. Mas volumes excepcionais de chuva podem ocorrer novamente; muita gente continuará durante um bom tempo a praticar atos anti-sociais; e é preciso informar quais os planos do governo para amenizar os problemas e prejuízos da população de agora em diante.
Perguntar o que se deve perguntar, a propósito, não é ato hostil: pode ser, conforme o caso, a grande oportunidade para que as autoridades reafirmem seu prestígio. Foi assim que o prefeito de Nova York, Rudolph Giuliani, ampliou sua popularidade. E também pode ser a abertura para certas revelações que possam prejudicar políticos concorrentes. No caso de São Paulo, por exemplo, como é que foi liberada a utilização para moradia de uma área de brejo como o Jardim Pantanal?
Talvez o maior problema jornalístico de hoje seja o clima de clássico de futebol que cerca a política. O nosso lado nunca erra, o lado adversário está sempre errado. Antes de fazer uma pergunta, é preciso saber se a resposta beneficiará um lado ou outro. Mas política não é futebol. Administração também é outra coisa.
A voz do povo
Um detalhe curioso é que muitas vezes os leitores esperam dos jornalistas a postura partidária, que é exatamente o oposto da jornalística. Há muitos anos, este colunista escreveu uma reportagem sobre o mau estado do centro de São Paulo. Foi uma matéria extrapauta: andando por lá, por outro motivo, deu para ver que as ruas estavam sujas, as calçadas esburacadas, que havia lixo nos espelhos dágua. A matéria saiu, um amigo telefonou. Queria saber por que a matéria ‘de oposição’. E quase caiu da cadeira quando, após muito esforço, se convenceu de que a reportagem não era de oposição nem de situação: era apenas factual.
A voz do ódio
Murillo Antunes Alves, uma figura histórica da comunicação brasileira, o último jornalista a entrevistar Monteiro Lobato (para a rádio Record), apresentador do Repórter Esso na TV Record, morreu outro dia, aos 91 anos – sem nunca ter parado de trabalhar, sempre demonstrando grande competência. Certa vez, quando apresentava o Repórter Esso, o texto do programa demorou a chegar. Murillo, tranquilo, como se não houvesse problema nenhum, apresentou a introdução do telejornal, enquanto um repórter rastejava por baixo das câmeras com o texto. Murillo Antunes Alves acompanhava seus movimentos sem desviar os olhos da câmera. Apanhou os papéis e tocou o Repórter Esso em frente, sem que ninguém de fora do estúdio percebesse a movimentação. Coisa de fera.
Mas voltemos à disputa de torcidas em que ameaça transformar-se a área de comunicação. Dois comentários de jornalistas a respeito de sua morte são de entristecer qualquer pessoa – ainda mais tendo vindo de profissionais do mesmo ofício. Um o identificava como ‘aquele cara de direita’ e ironizava sua idade (parece que demorou mais a morrer do que o cavalheiro citado julgava razoável). Nada falou, talvez por nada saber a respeito de jornalismo, sobre seus longos anos de trabalho. Outro reclamava que, se Murillo era formado em Direito e trabalhou como jornalista, por que ele, formado em Jornalismo, não poderia trabalhar em Direito?
Uma excelente idéia seria debater o tema com os ministros do Supremo Tribunal Federal que suspenderam a obrigatoriedade do diploma de jornalismo. Talvez eles pudessem dar-lhe a resposta que espera. E talvez, até, ele consiga entendê-la.
Lula, certíssimo
A respeito do clima de clássico de futebol que se vive à véspera das eleições, o presidente Lula disse uma frase impecável, em sua entrevista ao Estado de S.Paulo: ‘O exercício da democracia não permite que a verdade seja absoluta para um lado e toda negativa para o outro lado’.
Passando batido
Na engraçadíssima entrevista em que atribuiu boa parte dos males do Brasil aos programas americanos de TV a cabo (à qual cerca de 4% da população do país têm acesso), o assessor do presidente Lula para assuntos internacionais, Marco Aurélio Garcia, comparou a força do ‘lixo cultural americano’ à presença da 4ª Frota nas águas do Atlântico Sul.
A coisa passou meio despercebida, mas o fato é que a 4ª Frota não tem existência real. É uma unidade apenas virtual. Foi formalmente separada da 2ª Frota, tem um comandante, o almirante Joseph Kernan, tem base em Mayport, na Florida, mas não tem navios. Se houver problemas no Atlântico Sul (desde 1º de julho de 2008, data de sua instituição, não houve), os navios de guerra americanos que estiverem na área serão incorporados a ela. E receberá navios emprestados de outras frotas para participar de operações conjuntas, como a Unitas. Na última Operação Unitas, a Marinha americana foi representada pela 2ª Frota.
A propósito, Marco Aurélio Garcia trabalha na área internacional do governo e deveria saber que, se arreganhar os dentes, terá mais poder dissuasivo do que a frota que não existe.
Notícia? Que bobagem!
Curiosíssimo: no mesmo jornal, dois acontecimentos deixam de ter cobertura sem qualquer explicação. A pesquisa Ibope sobre eleição presidencial, quatro dias depois de sua divulgação, era ignorada, embora o jornal tenha sempre manifestado interesse por outras pesquisas sobre o mesmo tema. Algum problema? Alguma dúvida sobre o trabalho do instituto de pesquisa? Se houve, o leitor não foi informado. E a cobertura dos Jogos Olímpicos de Inverno se limitou a alguns pontos. A competição, em si, ficou fora.
O acidente com o atleta georgiano foi amplamente coberto, com dois dias de noticiário. Entretanto, até quatro dias após o início dos Jogos, nenhum resultado tinha merecido publicação. Quadro de medalhas? Que é que é isso?
Mas o melhor mesmo aconteceu quando o veículo decidiu entrar na cobertura. Os Jogos Olímpicos, segundo a reportagem, deram prejuízo de US$ 1,5 milhão. Convertidos em reais, eram R$ 2,5 milhões, aproximadamente. Convertidos em título da matéria, transformaram-se em US$ 2,5 milhões.
É o velho problema: quem quiser ver contas certas não deve procurá-las no jornal.
Lá e cá
Certa vez, numa revista quinzenal, um repórter free nos ofereceu uma matéria. Aceitamos, combinamos o preço e, na data prevista, ele entregou a matéria, devidamente datilografada, devidamente revisada. Fomos ler e tinha cara de coisa conhecida. Fizemos a pesquisa e descobrimos: era cópia idêntica de uma reportagem saída na Playboy brasileira. Não, nada de Playboy antiga, com as matérias já esmaecidas na memória: era a revista do mês! Chamado a explicar-se, o repórter disse que efetivamente a revista tinha sido uma de suas fontes, e ele deveria ter ficado tão impressionado com a qualidade do texto que saiu tudo igualzinho. Como era free-lancer, tudo ficou por isso mesmo.
Mais tarde, saiu num importante jornal de circulação nacional uma reportagem sobre música. Um pesquisador do assunto (que, mais tarde, se transformaria numa personalidade importante do país) mandou uma carta ao jornal, com a cópia da matéria americana que havia sido traduzida e copiada. O repórter não explicou nada (ainda bem!). Mas, tirando o apelido de Xerox, nada aconteceu.
Nos Estados Unidos a coisa parece ser diferente: lá, o repórter Zachery Kouwe, que costumava transcrever trechos de reportagens de um jornal em outros, sem citar fontes, pediu demissão. Mas a história foi publicada com todos os nomes, o que lhe trará imenso prejuízo na busca por futuros empregos.
Tempo da reação do jornal onde trabalhava: uma semana. Foi o tempo de receber a informação, confirmá-la, conversar com o repórter e aceitar sua demissão.
Batatada
Saiu nesta coluna, na semana passada, que César Maia foi governador do Estado do Rio. Erro feio: César Maia foi prefeito do Rio várias vezes, mas não chegou a vencer nenhuma eleição para governador. Obrigado ao leitor atento Wilton Vieira, que percebeu o erro e o informou imediatamente ao colunista.
Não é o último erro que sai nesta coluna (infelizmente). Nem é o primeiro cometido pelo colunista. Há muitos e muitos anos, quando o presidente John Kennedy foi morto, as agências noticiosas informavam que a seu lado estava o governador texano Conally. Alguém perguntou o primeiro nome de Conally, e respondi de bate-pronto: ‘Tom!’ Havia um Tom Conally muito conhecido. Mas não era governador, era senador. E não tinha os 40 e poucos anos do governador que estava ao lado de Kennedy: devia ter mais de 80. E saiu assim mesmo.
Chatamente correta
É um avanço: antes, quando se suspeitava de alguém, os meios de comunicação já tascavam um ‘assaltante é localizado pela polícia’. Agora, em boa parte dos casos, a imprensa leva em conta a possibilidade de que o cavalheiro seja inocente da acusação. E tome o ‘suposto matador’, e coisas parecidas.
Mas, no caso aqui citado, não dá para supor nada: Paris Hilton, que veio ao Brasil no carnaval para fazer a propaganda da cerveja Devassa, passou a noite tomando todas (e das destiladas) e acabou sendo fotografada caída no chão. Título: ‘Supostamente embriagada, Paris Hilton perde a linha em festa’.
A linha da fofoca
Um leitor de Cuiabá, MT, jornalista de bom nível, mostra uma notícia publicada num importante portal noticioso:
** ‘Atriz beija modelo e sai com namorado depois’
E pergunta: dedurar virou jornalismo ou forma de entretenimento?
Há gente que não sabe a diferença entre o que é e o que não é de interesse público (parece ser o caso). Pior é que há gente que sabe perfeitamente qual a diferença e usa a informação para fins de chantagem, ou de disputa partidária. É preciso ter posições muito firmes para evitar tentações desse tipo.
Muitos anos depois dos acontecimentos, e sem citar o nome das personagens, Carlos Lacerda contava que, no auge de sua guerra contra o governo federal, mandaram-lhe fotos de uma senhora casada com um adversário, num baile de carnaval, com os seios à mostra. Na época, este seria um escândalo impressionante. Ele preferiu rasgar as fotos e nunca disse de quem eram.
Como…
De um grande jornal:
** ‘Poetas vivos celebram os velhos e bons carnavais’
Ainda bem que foram só os vivos.
…é…
De um jornal virtual:
** ‘Chuva forte alaga o ABC no fim da tarde desta quinta’
Seria perfeito, se não tivesse sido publicado na quinta de manhã, umas sete ou oito horas antes dos acontecimentos que descrevia.
…mesmo?
De um importante portal noticioso:
** ‘Federal de São Carlos solta aprovados às 22h’
E os não-aprovados, a que horas terão sido soltos?
E eu com isso?
Há certas notícias que não se encontram em outros lugares, só mesmo na comunicação frufru. Por exemplo:
** ‘Ator diz ser alérgico a partes íntimas femininas’
Mas a notícia é incompleta. Nada diz a respeito de sua compatibilidade com partes íntimas masculinas.
** ‘Britânico diz que mudou de cidade após fazer sexo com todas as garotas’
Já este rapaz merece um prêmio: o Troféu Pinóquio lhe cairia bem.
Existem combinações de títulos que também só cabem na área de frufru. Por exemplo, as declarações do ex-técnico palmeirense Muricy Ramalho e do presidente que o demitiu, Luiz Gonzaga Belluzzo:
** ‘Muricy: `não tenho medo de p… nenhuma´’
** ‘Belluzzo simplifica fracasso de Muricy: `não encaixou´’
E, claro, há o frufru propriamente dito:
** ‘Presidiários ingleses aprendem a bordar para fazer relax mental’
** ‘Jessica Alba leva filha para comprar sapatos em Beverly Hills’
** ‘Ronaldo e Bia Antony assistem ao show de Beyoncé’
** ‘Ator Gerard Butler passa tarde com morena no Rio de Janeiro’
** ‘Brad Pitt e Angelina Jolie vão morar em Veneza por três meses com os filhos’
** ‘Felipe Dylon troca altos beijos com a namorada na praia’
** ‘Sandra Bullock encontra sua cachorrinha perdida’
** ‘Cacau e Eliéser namoram deitados no puxadinho’
** ‘Farmácia vende pó de unicórnio e doce para curar os males do amor’
** ‘Longe do marido, Deborah Secco enfrenta calor com calça comprida’
O grande título
Coisas boas, muitas coisas boas. Temos nesta semana uma amostragem quase completa – a começar pelo título ‘índio de filme americano’.
** ‘Papa discutir escândalo de pedofilia com bispos da Irlanda’
Há títulos daqueles que não couberam, mas entraram assim mesmo…
** ‘Três são assassinados em cidade do litoral paulista 20 minutos’
…ou…
** ‘Tiger Woods se diz `profundamente desolado´ por seu’
… ou…
** ‘RS – Após 14 horas de cárcere, homem ex-mulher’
Há título que até dá para entender, mas bem confuso:
** ‘Adriano proíbe namorada de ir ao sambódromo em troca de carro de R$ 300 mil’
Há título que talvez alguém entenda, algum dia:
** ‘Obra deixa área de enchentes’
E há um magnífico, imbatível:
** ‘Chuva mata afogado na zona sul’
Não lembra uma história maravilhosa de Jorge Amado?
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Jornalista, diretor da Brickmann&Associados