Há muitos e muitos anos, na TV Tupi de São Paulo, a voz profunda de Oswaldo Sargentelli, em off, perguntou a Adhemar de Barros, um dos principais políticos da época: ‘Dr. Adhemar, é verdade que o sr. é peculatário?’
Isso é jornalismo: a pergunta foi dura, mas tinha de ser feita, e versava sobre uma questão de fato, um tema que era amplamente debatido na ocasião.
Apenas como complemento da notícia, Adhemar deu uma resposta arrasadora: ‘Peculatário é a mãe’.
Há muito pouco tempo, um cavalheiro que se intitula repórter porque anda com um microfone na mão perguntou ao senador Renan Calheiros: ‘Sua indicação para o Conselho de Ética seria a mesma coisa que indicar Fernandinho Beira-Mar para o Conselho de Combate às Drogas?’
A pergunta pode ser engraçada, pode ter desopilado o fígado de quem não aguenta mais Renan Calheiros, mas não é jornalismo: não passa de falta de educação.
Apenas como complemento, Renan Calheiros não tem o jogo de cintura que sobrava a Adhemar de Barros. Em vez de responder, chamou a segurança (apelidada de ‘Polícia do Senado’) e mandou expulsar a equipe de lá.
A falta de educação atinge várias áreas do jornalismo: da televisão (onde já perguntaram a uma atriz idosa se ela ainda continuava viva) aos comentários a textos de internet, onde anônimos ferozes, tornados corajosos exatamente pelo anonimato, insultam com dureza não apenas os colunistas como também etnias, religiões, políticos de tendências diferentes das suas, homossexuais, nordestinos, heterossexuais – tudo numa linguagem chula que torna impossível o debate.
O arquiteto Zulu Araújo, militante sério do movimento negro, pessoa de bem, ficou chocado, em seus primeiros textos na internet, publicados no Terra Magazine, com a supremacia da falta de educação sobre a discordância. ‘É a regra geral’, diz Zulu. ‘Li um artigo lindo do professor Jorge Portugal, ‘A mãe de todas as lutas’, falando sobre a importância da educação para o desenvolvimento do nosso país e da importância da qualificação da escola pública para o cumprimento deste dever cívico, e os comentários que o acompanharam eram de dar dó. O preconceito, a ignorância e insensibilidade se fizeram presentes de maneira chocante’.
Por mais de um ano, circulou pela internet um texto contra o então presidente Lula, encabeçado por um prefácio entusiástico: veja que coisa corajosa etc., etc. O texto começava informando que não chamaria Lula de presidente, porque não o reconhecia como tal (embora tivesse sido legitimamente eleito), não usaria letra maiúscula ao iniciar seu nome, porque ele não o merecia, e daí por diante. Coragem? Não: falta de educação, falta de argumentos. E muito anonimato.
Para que o debate possa prosperar, é preciso atuar em duas frentes: uma, legal, exigindo que os comentaristas de internet se identifiquem (podem até manter-se publicamente anônimos, mas seus dados deverão estar em algum lugar, para que possam responder pelos excessos que cometerem); outra, de responsabilidade jornalística, por iniciativa dos blogueiros e colunistas, que devem evitar manifestações de grosseria, ódio, intolerância. Não é difícil: todos sabemos o que é isso.
Vale, no caso, repetir mais uma vez a advertência do excelente blog de política internacional de Gustavo Chacra:
‘Comentários islamofóbicos, anti-semitas e anti-árabes ou que coloquem um povo ou uma religião como superiores não serão publicados. Tampouco ataques entre leitores ou contra o blogueiro. Pessoas que insistirem em ataques pessoais não terão mais seus comentários publicados. Não é permitido postar vídeo. Todos os posts devem ter relação com algum dos temas acima. O blog está aberto a discussões educadas e com pontos de vista diferentes. Os comentários dos leitores não refletem a opinião do jornalista’.
Desrespeito 1
Um tablóide noticiou a morte de Lacraia, em primeira página, com sua foto, o bordão que consagrou (‘Vai, Lacraia! Vai, Lacraia!’) e, enorme, uma única palavra: ‘Fui’.
O texto foi ainda mais pesado: ‘O dançarino Lacraia, que fez sucesso ao lado de MC Serginho, morreu ontem aos 34 anos. É dura a vida da bailarina…’
Não se faz piada com morte. Morte exige respeito. Ou será que, por ser homossexual e negro, alguém tenha achado engraçado brincar com o trágico?
Desrespeito 2
Futebol admite bem a brincadeira. Mas também é preciso saber brincar. Um grande jornal colocou no alto da primeira página uma chamada sobre gastronomia, com o título ‘A vitória do porco’, mostrando que a carne suína, antes considerada excessivamente gorda e indigesta, é hoje nobre e saudável. E, aproveitando a oportunidade da desclassificação do Palmeiras na Copa do Brasil, jogou na matéria abaixo o título ‘A derrota do porco’.
Pegou mal: primeiro, porque o jornal citado não é de fazer esse tipo de brincadeira, nem de chamar torcedores e jogadores por apelidos como Porco, Bambi etc.; segundo, porque o Palmeiras, embora desclassificado, tinha vencido o Coritiba por 2×0 – placar insuficiente para levá-lo adiante na Copa, mas suficiente para ganhar o jogo. Naquele dia, não houve derrota do Porco.
Racismo reincidente
Imprensa é tão boazinha! Aquele mesmo rapaz que fez piada com fornos crematórios e zoou as vítimas do nazismo já se envolveu num caso semelhante de racismo, em julho de 2009. Os meios de comunicação deixaram a história passar em branco. Vejamos o twitter que Danilo Bolsonaro Gentili escreveu:
‘Agora, no Telecine, King Kong, um macaco que depois que vai para a cidade e fica famoso pega a loira. Quem ele pensa que é? Jogador de futebol?’
Como não aconteceu nada, ele voltou a agir, com o mesmo modus operandi.
Cadê a lista?
O secretário da Segurança de São Paulo, Antônio Ferreira Pinto, faz pouco do PCC, o Primeiro Comando da Capital, bando criminoso que, da prisão, comanda o crime organizado: segundo diz, hoje o PCC tem apenas uns 30 integrantes.
Imprensa é tão boazinha! Ninguém teve a brilhante idéia de solicitar a Sua Excelência a reduzida lista de integrantes do PCC. É tão pequetitinha que nenhum jornal precisaria jogá-la na internet: poderia publicá-la tranquilamente em sua edição de papel. E seria extremamente útil para os leitores.
Retrato do Brasil
Em São Paulo, uma onda de assaltos a caixas eletrônicos com o uso farto de dinamite. Rafinha Bolsonaro Bastos elogia os estupros, apontando-os como uma solução para as necessidades de mulheres feias. Danilo Bolsonaro Gentili faz piadas racistas e ofensivas a pessoas de idade. A Câmara Municipal do Rio compra uma frota de carros de luxo importados para os Senhores Vereadores. O deputado Jair Bolsonaro, do PP fluminense, e a senadora Marinor Brito, do PSOL do Pará, se estranham no plenário e por pouco não chegam a estapear-se em público. Os aeroportos, já superlotados hoje, não estão crescendo nem um pouquinho para a Copa de 2014.
E um grande jornal publica, na primeira página de sua edição online:
‘A grande notícia desta quinta-feira foi o anúncio de que Neymar será pai pela primeira vez, aos 19 anos, após engravidar uma jovem de 17 anos’.
Fantástico, não? Pois é pior: este colunista também é bonzinho e corrigiu o texto. O original dizia que Neymar será pai ‘após engravidar de uma jovem de 17 anos’. Além de achar que essa notícia é a mais importante do dia, ainda diz que o grávido é ele!
Boa notícia
José Nello Marques, um dos papas do rádio paulista, está de volta na rádio Tupi AM, 1.150 kHz, das 7 às 9 da manhã – seu horário preferido. Ouvir o Zé Nello é sempre um prazer – especialmente em ocasiões como esta, em que o seu Palmeiras apanhou de seis do Coritiba e ele tem de aguentar os amigos.
Dá-lhe, guasca!
Como disse a inspirada apresentação de Leonardo Echeverría, Luiz Cláudio Cunha levou 42 anos para ter seu diploma de jornalista. Mas Leonardo poderia ter sido mais precisa: as universidades brasileiras levaram 42 anos para perceber que Luiz Cláudio Cunha não tinha de ser aluno, tinha mais é de ensinar. Na semana passada, o erro foi sanado e a Universidade de Brasília entregou o título de ‘notório saber’ a Cunha (autor, entre outras, da monumental reportagem que revelou o sequestro de dois estudantes uruguaios em Porto Alegre, evitou que ambos, Lilian Celiberti e Universindo Díaz, fossem mortos pelos ditadores de Montevidéu, e mostrou a colaboração entre as polícias de Argentina, Brasil e Paraguai, na Operação Condor).
Tudo bem, foi um título justo; mas a cerimônia tinha tudo para ser muito chata. Luiz Cláudio Cunha, com um discurso impecável, transformou a festa chata num evento de alta qualidade: falou sobre prisões e tortura, sobre ditadura e resistência, sobre coragem e covardia, citou nomes que, a seu ver, merecem homenagens. Valeu a pena, índio velho!
Coisa boa!
No domingo, um programa que não deve ser desperdiçado: a entrevista de Marco Lacerda com o jornalista e escritor Edney Silvestre, da Rede Globo, no programa Frente Verso (21h, rádio Inconfidência 100,9 FM de Belo Horizonte, ou pelo portal www.inconfidência.com.br). Edney Silvestre tem uma história magnífica: nasceu pobre em Valença, no interior do Rio, foi estudar na capital e, sem dinheiro para mais nada, teve no cinema sua única diversão. Com os filmes aprendeu inglês, e bem. Este inglês permitiu que fosse correspondente internacional da Globo por muitos anos; e foi ele um dos primeiros jornalistas a chegar às Torres Gêmeas, poucos minutos após o atentado. Dedicou-se à literatura, ganhou o Prêmio Jabuti e o Prêmio São Paulo. Na Globo, criou programas como Brasileiros e Milênio, apresenta o Espaço Aberto Liberatura. E é, ele próprio, um grande personagem.
Como…
Se novela faz sucesso como obra aberta, em que o desenvolvimento e conclusão da trama dependem da opinião dos telespectadores, por que a imprensa deveria ser diferente? Este grande jornal deixa para nós, leitores, a conclusão interativa da notícia:
** ‘O informe destaca, no entanto, que apesar das Farc terem utilizado o território’
…é…
Da seção de Esportes de um grande jornal:
** ‘Ganso para por seis semanas e fica quase fora da Libertadores’
Alguém poderia explicar a este leitor de Esportes o que significa ‘quase fora’?
…mesmo?
Da internet, que nunca nos falha:
** ‘Polícia apura morte em carroça, em SP’
E, explicando:
** ‘Corpos foi achado amarrado e carbonizado’
Taí um bom exemplo para aquele livro de Português Cumpanhêro que o Ministério da Educação anda distribuindo.
Mundo, mundo
Otávio Mangabeira, lendário político baiano, costumava dizer que qualquer acontecimento em qualquer lugar do mundo, por mais esquisito que pudesse parecer, teria precedente na Bahia.
Pois cá está a prova: uma funcionária da Assembléia Legislativa baiana, precisando de dinheiro (segundo diz, para ajudar uma amiga doente), está vendendo uma rifa a cinco reais. O vencedor ganha quatro horas de permanência num dos mais luxuosos motéis de Salvador.
Até aí, nada demais. Acontece que, para vender a rifa, a moça usou o telefone de seu gabinete na Assembléia – o que é uma bobagem, um pecadilho dos menores, perto dos desperdícios de verdade que ocorrem no Legislativo de todos os estados. Mas, como todo mundo tem seus inimigos, correram para denunciá-la. Entretanto, quem admite ter comprado a rifa? Ninguém, caro colega! Pelos números divulgados, ela já vendeu 90 rifas – ela vendeu, mas ninguém comprou.
E eu com isso?
Quem deveria fazer humor fica incitando o ódio, quem deveria tomar conta do dinheiro público muitas vezes toma mais conta do que devia, quem devia combater o crime organizado proclama a vitória e retira o time de campo. Cansa, né? Vale a pena ir para outro tipo de notícia:
** ”Garoto boceja durante cerimônia para celebrar aniversário de Buda’
** ‘Fábio Jr.: ‘Deixo doer, uma hora passa’’
** ‘Reese Whiterspoon saí de igreja nos EUA com o pé imobilizado’
** ‘Atriz Samara Felippo divulga foto abraçada com a filha, Alicia’
** ‘Ex-mulher e filho visitam bebê de Fábio Assunção na maternidade’
** ‘Penélope Cruz diz que perdeu peso após gravidez com balé’
** ‘Carolina Dieckmann é flagrada em aeroporto com apresentadores’
** ‘Sapato de Lady Gaga em forma de pênis é censurado em programa’
O grande título
Comecemos com nossa grande estrela da moda:
** ‘Por vida saudável, Gisele Bündchen e Tom Brady criam galinheiro em casa’
O galinheiro vai muito bem, crescendo direitinho e saudável. Daqui a pouco estará apto a receber galinhas e galos.
E um título notável, que exige do leitor um esforço intelectual incomum:
** ‘Pai cai de escada, e filho morre à espera de resgate; idoso sobrevive’
A propósito, de que terá morrido o filho?
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Jornalista, diretor da Brickmann&Associados Comunicação