Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

O médico, o monstro e os monstros

Nas frequentes guerras que ocorreram no sul da América Latina, havia um personagem permanente e sinistro: o degolador. Todos os lados tinham os seus. E sua tarefa era, terminada a batalha, cortar a garganta dos inimigos feridos.

Observe o noticiário sobre o médico Roger Abdelmassih, preso sob a suspeita de abuso sexual contra suas pacientes: antes que o inquérito esteja concluído, antes de qualquer tipo de julgamento, a imprensa já o condenou. A pena é de banimento perpétuo – pois, mesmo que o médico seja inocentado e se demonstre no processo que os acusadores mentiram, a mancha permanecerá.

Importante: este colunista não está dizendo que Roger Abdelmassih é inocente. Nem afirma que ele seja culpado. Se a Justiça determinou sua prisão preventiva e a manteve, deve ter bons motivos para isso. Os crimes de que o médico é acusado são repugnantes; se verdadeiros, não admitem atenuantes. Mas o que se conhece do processo, publicamente, é apenas o que os meios de comunicação até agora divulgaram. Não é o suficiente para firmar qualquer tipo de conclusão.

Imaginemos que Abdelmassih seja inocente (como eram inocentes os diretores da Escola Base, acusados por abuso sexual contra seus alunos, como eram inocentes os presos do Bar Bodega, que até confissão fizeram antes que as investigações apontassem os verdadeiros responsáveis pelo crime). Que fazer com as capas de revistas, com os títulos de jornais tipo ‘médico e monstro’, com as notícias de colunas sobre DNA trocado, com as caras e bocas de apresentadores de TV, com o tom de desdém dos apresentadores de rádio?

Imaginemos que Abdelmassih seja culpado, como os fortes indícios parecem sugerir: o simples relato das investigações, sem adjetivos, voltado exclusivamente para o factual (acusado por ‘n’ testemunhas, que narram as seguintes histórias, com coincidências que parecem apontar um determinado modus operandi, acusado dos seguintes crimes, sujeito a tais penas), não seria suficiente para manter o público informado, sem insuflá-lo?

Jornalismo, enfim. Poucos adjetivos, muitos substantivos, poucos comentários, muitos fatos. E acompanhar, especialmente, algum dos casais que fizeram as denúncias, para contar a história de como ficou seu dia-a-dia após narrarem fatos traumáticos, que envolvem a vida e o bem-estar da família. Na verdade, é mais do que isso: considerando-se o nascimento de 7.500 crianças, considerando-se que outro tanto não deve ter tido tratamento com êxito, são 15 mil famílias envolvidas – que terríveis angústias não estarão suportando?

 

Seus homens, suas mulheres

Os meios de comunicação capricharam nos adjetivos. Mas este colunista não encontrou, ainda, depoimentos de pessoas famosas que, publicamente, recorreram à clínica de Abdelmassih para ajudá-las a ter seus filhos. Pelé e Assíria, por exemplo; ou Gugu Liberato; ou Tom Cavalcanti e a esposa Patrícia. Ao que se saiba, eram não apenas clientes, mas amigos do médico. Terão rompido a relação de confiança e de amizade? Que é que acham do caso?

 

Notícia sem festa

O que mais impressionou este colunista foi a alegria com que muita gente recebeu a notícia de que Abdelmassih seria transferido para uma prisão no interior. Lembrando a Lei do Cão, que vige nas penitenciárias e determina que estupradores sejam estuprados, comemoravam o estupro que poderia ocorrer como um acontecimento feliz, uma resposta ao comportamento atribuído ao médico. Talvez seja uma resposta – mas não é uma resposta civilizada, não é uma resposta que esteja respaldada pela lei. E não cabe a jornalistas festejar o descumprimento da lei, mesmo que a vítima tenha sido a primeira a descumpri-la. O jornalista deve lutar pelo cumprimento da lei, sempre. O resto é tortura.

 

As caras e bocas

O noticiário adjetivado, em que se tocou pouco acima, invadiu todas as áreas de interesse. Ney Florio, leitor desta coluna, mandou dois exemplos ótimos, a respeito de temas esportivos, veiculados num jornal de TV de boa audiência.

1. Sobre a má fase do Flamengo no Campeonato Brasileiro:

‘O Flamengo até se parece com a Dilma Rousseff… difícil de acreditar!’

2. Sobre o 50º aniversário do técnico Bernardinho, que treinou a seleção feminina e hoje treina a seleção masculina de vôlei:

‘Bernardinho é um vitorioso, um verdadeiro exemplo para a nossa juventude. Mas quem quiser tem também outros exemplos, como Renan Calheiros, Lula, Sarney, Collor e outros’.

Como diríamos lá no interior, em palavras um pouco menos rebuscadas, que é que certa parte do corpo humano tem a ver com as calças?

 

O primo do faxineiro do amigo

Está na hora de os meios de comunicação repensarem um pouco a cobertura política. Há escândalos que têm de ser denunciados; há também fatos que, embora irregulares, definitivamente não são escandalosos; e há coisas que só viram escândalo porque a imprensa insiste em dizer que são.

O caso do terreno de R$ 30 mil, que o senador Tião Viana (PT-AC) teria omitido em sua declaração de bens, é coisa normal. O terreno foi comprado por sua esposa e está no imposto de renda dela. Não há crime, não há sonegação, não há tentativa de esconder patrimônio. O casamento é em comunhão de bens, mas as declarações de renda são separadas. O terreno, portanto, é também dele; mas, como consta na declaração da mulher, não poderia constar na dele. No máximo, ele poderia mencionar o terreno, informando que está na declaração da esposa.

O escândalo que envolveu Tião Viana, este sim um escândalo, ficou esquecido: o celular do Senado que ele emprestou à filha para uma viagem ao exterior. Tudo bem, ele prometeu devolver o dinheiro da conta ao Senado; mas faltou lembrar que celular hoje é coisa baratinha, que se compra no aeroporto. Para que, então, pegar o aparelho do Senado, como se fosse coisa rara mas essencial?

Em resumo, substituiu-se um fato muito irregular por uma bobagem.

 

Jornalista é tão bonzinho

O lateral Moreno (revelado pelo Corinthians, com passagens pelo Atlético Paranaense e Botafogo do Rio, ultimamente na Udinese) conta que resolveu voltar ao Brasil porque sua casa, em Udine, Itália, foi assaltada. Parece que aqui no Brasil não há esse tipo de coisa – aliás, o portal que o entrevistou nem lhe fez essa pergunta.

Em seguida, ele conta o que é que foi roubado. Um relógio de ouro, presente da esposa, e dinheiro que tinha reservado para a volta ao país. Se ele decidiu voltar ao país porque foi roubado, qual o motivo pelo qual o dinheiro para a volta ao país já estava reservado?

Traduzindo: Moreno foi assaltado e, claro, ficou chateado. Mas a volta ao país já estava decidida. Se até Adriano, que era o Imperador, voltou, por que não ele?

 

Um bom livro

Neste dia 2/9, às 19h, na livraria Saraiva do Shopping Center Iguatemi, São Paulo, um bom lançamento: Uma Gota de Sangue – história do pensamento racial, de Demétrio Magnoli, professor e escritor de texto preciso, lógico e extremamente lúcido. Magnoli é odiado por uma ala da intelectualidade brasileira, provavelmente por divergências ideológicas. Mas sabe o que diz: concorde-se ou não com ele, seu raciocínio é sempre articulado e tem base.

 

Mais um que se vai

Escrevia bem, seus textos eram bem-humorados e com um toque singular de ironia, seu trabalho jornalístico chamava a atenção. Mas o que os amigos mais lembram de Geraldo Mayrink, que morreu na semana passada, aos 67 anos, era o caráter. Ao longo dos anos, este colunista jamais ouviu qualquer referência a algo menos limpo oriundo de Geraldo Mayrink.

Mineiro de Juiz de Fora, Geraldo Mayrink iniciou a carreira no Binômio, um interessantíssimo jornal dirigido por José Maria Rabello (que, mais tarde, seria sócio de Mário Soares, futuro primeiro-ministro e presidente de Portugal, numa livraria, quando ambos estavam exilados na França). Depois do Binômio, Mayrink foi para o Diário de Minas, e daí para o Rio, no Globo e no Jornal do Brasil. Só então seguiria o rumo da maioria dos jornalistas mineiros da época, mudando-se para São Paulo, onde trabalhou na Veja, no Jornal da Tarde, no Estado de S.Paulo. Foi um excelente crítico de cinema; mas fez também uma biografia do ex-presidente Juscelino Kubitschek e muitas reportagens sobre a agricultura brasileira.

Um jornalista completo – quantos o são?

 

Dois pesos

Os meios de comunicação cometeram todos o mesmo erro: condenaram os plebiscitos em que Hugo Chávez, Evo Morales e Rafael Correa buscaram legitimar seus múltiplos mandatos, mas silenciaram quando o presidente colombiano Álvaro Uribe fez o mesmo, abrindo caminho para um terceiro mandato. Uribe tem um bom saldo a mostrar como presidente: reduziu a criminalidade no país, derrotou por diversas vezes os narcotraficantes das Farc, Forças Armadas Revolucionárias Colombianas, que antes dele chegaram a controlar mais da metade do território do país. Mas, se isso é suficiente para mudar a Constituição e beneficiar-se de mais mandatos, estaremos aceitando a tese de que os países precisam de homens providenciais, abençoados por Deus e bonitos por natureza – ou seja, ditadores, sejam ou não eleitos periodicamente. O continuísmo de Uribe é tão ruim e antidemocrático quanto o de Chávez, Correa e Morales; e tão ruim quanto seria o terceiro mandato para o presidente Lula.

 

Risco na Argentina

A presidente Cristina Kirchner decidiu intervir pesadamente na área de radiodifusão: enviou ao Congresso projeto de lei que limita a 1/3 as concessões a emissoras comerciais, deixando o restante dos canais ao governo, a entidades sindicais e a igrejas. O objetivo, diz a presidente, é ‘democratizar as comunicações’ e ‘evitar que a liberdade de expressão se transforme em liberdade de extorsão’; é também sufocar o maior grupo argentino de comunicações, o Clarín, de oposição. Impõe também regulamentos às tevês a cabo e internet.

Uma boa mexida legal na área de comunicações é altamente defensável: bloquear a propriedade cruzada (rádio, TV e jornal) na mesma área de influência, limitar (mas limitar de verdade, sem concessões a parentes) o número de emissoras que podem pertencer a determinadas pessoas ou organizações, tudo isso é correto – desde que seja feito democraticamente, com transparência e com o objetivo de multiplicar os canais de difusão de idéias. Mas, como no caso argentino, em que o objetivo é ocultar uma realidade desfavorável ao governo, mexer é péssimo: atrapalha o jogo democrático.

Estará nos planos da presidente Cristina Kirchner transformar a Argentina numa Venezuela com menos petróleo?

 

Bom debate na escola

O tradicionalíssimo Colégio Elvira Brandão, de São Paulo, está preparando amplo debate sobre liberdade de expressão, com destaque para os sucessivos casos de censura judicial ao noticiário. Na segunda semana de setembro, jornalistas, personalidades públicas, juristas e pais de alunos participarão dos debates. Excelente idéia, que contribuirá muito para a formação dos estudantes.

 

Mau debate na Câmara

Já a Câmara Municipal de São Paulo realizou um debate sobre ‘Mídia Democrática e Sociedade Civil’ em que os participantes tinham as mesmas idéias – é como um sanduíche de pão com pão. A proposta é do vereador petista Francisco Chagas. Alguns convidados: Franklin Martins, secretário da Comunicação do governo federal; senador Aloízio Mercadante, líder do PT no Senado (aquele que renunciou irrevogavelmente à liderança e depois renunciou irrevogavelmente à irrevogabilidade da renúncia); vereador petista José Américo; Rui Falcão, deputado do PT; Daniel Reis, secretário de Comunicação da CUT de São Paulo. Gente de outro partido? Nem pensar. Só houve uma exceção: o ombudsman da Folha de S.Paulo, escalado para servir de alvo.

 

Esporte bretão

A notícia vem da Inglaterra:

** ‘Servidora é demitida por fazer sexo com segurança dentro do tribunal’

A manchete do jornal britânico: ‘Tribunal com as calças abaixadas’. A moça e o segurança, apanhados em flagrante, pediram demissão.

Pois não é que em São Paulo houve caso semelhante?

Foi logo depois do fim do Ato Institucional nº 5. Um deputado do PCdoB foi flagrado por um segurança quando transava com uma policial militar (casada, e com um armário). O deputado, em vez de conversar com o segurança, tentou a carteirada, e acabou sendo denunciado. Foi um horror: o marido da moça queria bater no parlamentar, os programas de rádio comentaram fartamente, etc.

A coisa boa foi a manchete de Notícias Populares:

** ‘PCdoB mete o pau na repressão’

 

Como…

De um portal que registra releases:

** ‘Primeiro dia da Operação De Olho no Rolo detecta falta de mais de 70 metros em papel higiênico institucional’

Institucional. Veja só o lugar em que, no nosso país, puseram as instituições.

 

…é…

De um importante jornal interiorano:

** ‘Casa da Barbie atrai numeroso número de visitantes’

É um número tão numeroso que parece inumerável.

 

…mesmo?

De um grande portal noticioso:

** ‘Suposta queda de avião ainda é polêmica em Boca do Acre, no AM’

Veja só o que é a passagem dos anos. Este colunista é do tempo em que o avião caía ou não caía. Ninguém supunha nada a esse respeito.

 

E eu com isso?

Que história maravilhosa!

** ‘Site de campanha de secretário do Wisconsin vira página pornográfica’

Terminada a campanha, o político em questão simplesmente esqueceu a página e parou de pagar o endereço. E alguém ocupou o mesmo domínio com pornografia (explique-se: lá, ao contrário do que ocorre aqui, os acontecimentos políticos e os pornográficos nem sempre constam na mesma página eletrônica).

** ‘Fungo gay resiste a antibióticos’

** ‘Professora está grávida de doze na Tunísia’

** ‘Fernanda Torres brinca com filho em praia’

** ‘Madonna é flagrada fazendo exercícios em Bucareste’

Em Bucareste, no Rio, em São Paulo, em Tel Aviv, em qualquer lugar: Madonna adora uma academia. E como manter os músculos naquele estado sem muito exercício?

** ‘Betty Gofman vai almoçar de bicicleta’

** ‘Gato disca telefone de emergência e polícia invade casa na Inglaterra’

** ‘Cauã Reymond almoça com amigos no Leblon’

** ‘Mulher fica presa por uma semana no vaso sanitário’

** ‘Lily Allen perde a bolsinha de mão na Suécia’

** ‘Desarmada, americana tenta roubar loja só de biquíni’

Depende da mulher: há casos em que todos vão prestar atenção nela, e nem verão o que está fazendo.

 

O grande título

Há um excelente caso nesta semana: a briga de Xuxa e seu twitter com os twitteiros que criticaram um erro de grafia da filhinha Sasha. Xuxa errou: em vez de brigar, devia ter deixado o pessoal reclamar. E, cá entre nós, que gente mais chata, que tem tempo para se preocupar com a correção da grafia de uma pré-adolescente! Mas a matéria deu um bom título estilo ‘obra aberta’, num importante portal noticioso da internet:

** ‘Sasha erra no português e Xuxa briga com’

Outro título delicioso, com várias possibilidades de leitura, saiu num portal noticioso ligado a um grande jornal:

** ‘PM prende acusada de dirigir embriagada e PM’

É simples: fora da home page, o título aparecia mais completo. Era ‘PM prende acusada de dirigir embriagada e atropelar motociclistas da PM no DF’

E Bob Dylan está de volta – ele mesmo, o autêntico, longe das versões genéricas do senador Eduardo Suplicy:

** ‘Cantor quer alimentar 1,4 milhão de famílias com disco de Natal’

Bem dizem que a cultura é o alimento da alma. Mas eta, que disco mais nutritivo!

Agora, sem nenhuma dúvida, o melhor título da semana, também da internet:

** ‘Danni Carlos diz `faltar inspiração´ para tomar banho’

O problema, como diriam nossas mães, não é a inspiração. É a transpiração.

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Jornalista, diretor da Brickmann&Associados