Terminada a Segunda Guerra Mundial, nos anos 1940, um grupo de meninos assumiu a revista O Cruzeiro e levou a tiragem semanal de 11 mil a 750 mil exemplares. A população do Brasil era de 40 milhões de habitantes. Décadas mais tarde, a turma do Pasquim fez com que um despretensioso semanário chegasse a vender mais de 200 mil exemplares.
Quer dizer, é possível conquistar leitores sem recurso à baixaria. É possível fazer-se conhecido, lido, ouvido, visto, sem rebaixar aos padrões da ética e da estética.
Em causa própria, quando autores de qualquer gênero são flagrados em baixaria, logo apelam a luminares da civilização, fazendo confusões medonhas, como a que ouvi num congresso literário internacional, dando conta de que Thomas de Quincey tinha elogiado o homicídio no seu clássico O assassinato como uma das belas artes. Ou Swift teria sido pornográfico em Tale of a tub. Flaubert, Joyce, D. H. Lawrence e Gide, entre outros, também são invocados com freqüência, ao lado de Bocage, Gil Vicente, Guerra Junqueiro, Gregório de Matos, Rubem Fonseca e João Ubaldo Ribeiro, para justificar baixarias. Dos dois últimos, só mesmo ignorantes veriam baixarias em Feliz Ano Novo e A casa dos budas ditosos.
De olhos em tais referências emblemáticas em nossa imprensa é que podemos compreender a emergência de fatos como o que foi realçado pela Folha de S.Paulo (22/5, ‘Ilustrada’, ver abaixo), em matéria assinada por Laura Mattos sob o título ‘`Vai Tomar no C…´ é novo fenômeno da internet; autora vira celebridade’.
Complexidades sutis
Todos podem brincar ou lutar com palavras, ‘a luta mais vã’, no dizer de ninguém menos do que Carlos Drummond de Andrade. A criação da música ‘Vai Tomar no C…’ é obra de um casal, a atriz Cris Nicolotti e seu marido, o músico Cacá Bloise. Foi parar no Youtube, que às vezes funciona como o último reduto da liberdade da mídia, e em poucos dias tinha mais de 600 mil acessos.
A declaração da atriz é sintomática dos tempos vividos por artistas, escritores, editores e demais profissionais que há alguns anos, diante da escassez de verbas, gastam muito tempo escrevendo projetos que solicitam recursos – porque são obrigados a isso – em detrimento de uma alocação geral e intensa na atividade-fim. Imaginemos pessoas como Leonardo Da Vinci e Michelângelo sendo obrigados ao mesmo contexto. O Renascimento teria sido abortado! Ou monges medievais justificando projetos para fazer miniaturas e copiar clássicos grego-latinos!
Diz a matéria da Folha:
‘Além do teatro, Cris tem um rosto conhecido em razão do trabalho no canal de vendas na TV Shop Tour, de 89 a 99. Conta ter sido a primeira televendedora do país. E a atriz declara: `O sucesso [do clipe] veio porque, no fundo, é isso que todo brasileiro precisava dizer´’.
Nem todo brasileiro precisava dizer o que ela canta e são milhões os que se recusam a apelar deste modo. E as rédeas da vida podem e devem ser retomadas de modos dignos, sem tais apelos. (Sintomático o verbo ‘retomar’; então as rédeas estavam perdidas…).
O recurso ao palavrão é certamente um recurso artístico, mas ele tem sutis complexidades. A sua pura invocação, ainda que acompanhada de música bem composta e voz agradável e afinada, não tem a universalidade que querem atribuir a uma brincadeira de mau gosto. Todos têm direito ao mau gosto, mas todos têm igualmente direito ao bom gosto e ele tem contornos específicos, assim como o bom senso.
Algumas coisas deixamos de fazer ou fazemos por bom senso, sem que ninguém as proíba ou autorize.
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‘Vai Tomar no C…’ é novo fenômeno da internet; autora vira celebridade # Laura Mattos # copyright Folha de S.Paulo, 22/5/2007
‘Quando você mandar tomar no c… pela primeira vez, você vai retomar as rédeas da sua vida… Comigo, irmãos! [começa a música] Vai tomar no c…, vai tomaaaar no c…, vai tomar no c…, beeeem no meio do olho do seu c…’ A letra de ‘Vai Tomar no C…’ (no original, o palavrão está por extenso) não sai disso. Também conhecida como ‘VTNC’, tornou-se o novo fenômeno da internet.
Criada por brincadeira pela atriz Cris Nicolotti, 49, e seu marido, o músico Cacá Bloise, foi gravada por ela e enviada a um amigo por e-mail há pouco mais de uma semana. Propagou-se de forma impressionante, virou homenagem a chefes, Bush, políticos etc. e inspirou mais de 60 videoclipes no YouTube (www.youtube.com).
Ao ver os primeiros clipes feitos a partir de sua música, Cris decidiu produzir o ‘Vai Tomar no C… Original’. No vídeo, interpreta sua canção com uma peruca engraçada e um visual ‘meio místico, meio bispa Sônia’. Ontem, era o 20º mais visto do mundo na categoria comédia. Somado às versões, teve mais de 600 mil acessos. ‘Após 30 anos de carreira, tanta luta atrás de patrocínio, de estudar a vida inteira, faço sucesso por causa de um c…’, diz, rindo, a atriz.
Além do teatro, Cris tem um rosto conhecido em razão do trabalho no canal de vendas na TV Shop Tour, de 89 a 99. Conta ter sido a primeira televendedora do país.
‘Vendi de peixe a jazigo. No meio dos túmulos, elaborei o texto: `A gente tem que ter glamour até para morrer´. Também anunciei sapatos de plástico brancos número 43! Foi a minha grande escola de improviso.’
Já o sucesso ‘VTNC’ surgiu quando ela fazia uma festinha em seu apartamento, em São Paulo. Um vizinho, irritado com o barulho, abriu a janela e lascou o ‘vai tomar no c…’. Seu marido começou a dedilhar o violão e cantar ‘Vai tomar no c…’ e Cris emendou ‘Vai tomaaaar no c…’.
Em poucos dias, Cris virou a queridinha de blogs, Orkut, recebeu ofertas de patrocínios, propostas para gravar CD e até convite para voltar ao Shop Tour. ‘VTNC’ fará parte do monólogo ‘Se Piorar Estraga’, que Cris estréia em julho. Será cantada pela personagem do YouTube, a Roberléia (mãe fã de Roberto, pai, de Wanderléia), que cria a ‘culosofia’, baseada no ‘cusistencialismo’.
‘O sucesso veio porque, no fundo, é isso que todo brasileiro precisava dizer. Inspirou vídeos engraçados, mas alguns sérios, com imagens de políticos, da miséria. Tem uns bobos, com meninos mostrando a bunda. É bom deixar claro não falo do c… físico, mas do intelectual’, diz a bem-humorada atriz.
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Escritor, doutor em Letras pela USP, professor da Universidade Estácio de Sá, onde coordena o Curso de Letras; www.deonisio.com.br