Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

O pensamento dialético de Lula no Valor

Os repórteres do Valor Econômico Cláudia Safatle, Vera Brandimarte, Raymundo Costa e Cristiano Romero, na quinta-feira (21/6), conseguiram extrair do presidente Lula sua melhor entrevista nos últimos anos. Dela saiu um personagem curtido, maduro, pragmático, esperto, que vê a política e a economia em movimento dialético, como processo contraditório, em que os antagonismos exigem paciência para ser acomodados, sempre por meio da negação, em que a negatividade expressa a própria realidade, como destaca Hegel.

O hegelianismo trabalha a dialética que vem dos gregos. O diálogo de Platão pela boca de Sócrates é a aula magna da dialética, que Hegel aprofundou e Marx aplicou à economia e, sobretudo, à política, quando escreveu, com Engels, o Manifesto Comunista. É o contrário da visão mecanicista-cartesiana-positivista-determinista-equilibrista-neoliberal. A realidade, pela visão dialética, é, permanentemente, desequilibrante, como fator essencial de evolução da relação entre o homem e a natureza, visto o homem como extensão da própria natureza e vice-versa. Equilibrismo, especialmente, o macroeconômico, é fundamentalmente esquizofrênico.

Vícios acumulados

Enquanto a dialética vê a realidade como organismo, força orgânica, reagente auto-renovável em movimento de negação, os mecanicistas enxergam o mundo funcionando como Descartes, força mecânica, como relógio, perfeito, absoluto. A força orgânica, dialética, se renova; a mecânica, cartesiana, desgasta-se. A mecânica é programada; a dialética é autoprogramadora, autoconsciente.

Lula, sem ser especialista em Hegel nem em Marx, deu uma aula de dialética aos economistas e, conseqüentemente, aos jornalistas, submetidos ao pensamento mecanicista, graças às desestruturações ideológicas que inverteram corações e mentes na recente história econômica brasileira, pós-crise monetária de 1980. Tanto economistas como jornalistas de economia – destacando, sempre, honrosas exceções – há mais de vinte anos acumularam vícios determinados pela visão imediatista-mecanicista-positivista-cartesiana-determinista da realidade, conduzida pelo pensamento econômico desenvolvido nas escolas norte-americanas e expresso na formulação, nos anos de 1980, do Consenso de Washington.

Distorções se acumulam

A história desse tempo é uma acumulação de inversões ideológicas. O que é ideologia foi considerado ciência e a ciência foi transformada em ideologia. Os profissionais da cobertura econômica, salvo honrosas etc., subordinaram seus raciocínios ao curto prazo marshaliano, que Harvard copiou de Cambridge depois que o capitalismo norte-americano sobrepujou o capitalismo inglês, no século 20. Não tiveram condições, por isso, de desenvolver o pensamento dialético, que Marx imprimiu a O Capital, cujo primeiro capítulo, ‘Mercadoria e Dinheiro, Produção e Consumo’, ele escreveu com a Lógica de Hegel debaixo do braço, como destaca o médico-psicanalista-advogado-economista hegeliano Ubiramar Lopes, consultor legislativo do Senado.

Marx concluiu que o pensamento dialético é, na prática, o azimute da burguesia, porque sua finalidade intrínseca é expor os antagonismos e as contradições e caminhar, por meio da negatividade, para sua superação. Esta, por sua vez, no campo econômico, torna-se função da política, não propriamente da economia, pois sendo ser em movimento autoconsciente, o homem determina, não é determinado. É sujeito, e não objeto, logo, animal político, como destacaram Sócrates e Platão. Daí a economia política preponderar-se sobre a política econômica quanto mais avança a democracia, que é o movimento auto-consciente do homem por meio do Estado.

Lula, na excelente entrevista ao Valor, demonstra estar consciente de que o jogo dos contrários é a norma da vida. Ressalta ser impossível resolver um problema sem levar os dois lados que o compõem em consideração. Oposto do pensamento único que domina a economia, ditada pelos papas assessores do sistema financeiro, fontes fundamentais da cobertura econômica. Assim, a pressa para resolver algo que é essencialmente político, seja no campo econômico, seja no político, impõe-se quase como um imperativo categórico da matéria sobre o espírito, a fim de favorecer o mais forte. As contradições negarão, lá na frente, as distorções que se acumulam. É o que se observa no Brasil hoje: distorções econômicas acumuladas pela pressa que determinou decisões macroeconômicas via medidas provisórias, sem amplas discussões no Congresso. A desmoralização do Legislativo foi dada pela visão mecanicista.

Utilitarismo para obscurecer

Em sua periferia, o capitalismo tornou-se muito inseguro depois da década de 1980. Dominado pela vertente financeira, passou a exigir soluções apressadas para garantir, sobretudo, a reprodução ampliada do capital financeiro – depois que o capital produtivo entrou em colapso, elevando seu custo de manutenção pelos governos. Estes passaram a ser obrigados a cortar despesas para sobrar mais dinheiro, não para o capital produtivo, mas para o capital financeiro, garantindo-lhe uma rentabilidade cada vez maior. As distorções se acumulam tanto na economia como na política. Como evitar o desmascaramento dessas distorções sob a visão dialética? Impossível. Tornou-se indispensável fazer prevalecer a visão mecanicista, cartesiana, pois a dialética, ao expor o real concreto em movimento, deixara de ser solução para transformar-se em problema.

O capital teve que buscar outro discurso para justificar sua predominância histórico-social. Esse discurso não era para esclarecer, e sim, necessariamente, para obscurecer. Nasce o utilitarismo como ideologia suprema do capitalismo. ‘Temos que fingir para nós mesmos que tudo que é útil é verdadeiro. Se deixa de ser útil, deixa de ser verdade’, destaca o cinismo inglês do neomalthusiano lorde Keynes, o mais genial economista do século 20. O utilitarismo, no entanto, ao contrário da dialética, não navega nas ondas, mas tenta avançar contra elas. Geralmente vence, mas suas entranhas ficam cada vez mais expostas a cada embate, mostrando seu desgaste à visão dialética, à negação do mecanicismo.

Auto-condenação à alienação

Lula mostrou, na abordagem dos assuntos, a necessidade de considerar o movimento social em seu dinamismo intrínseco, dialeticamente falando. Ao contrário dos mecanicistas-economicidas, assalariados dos banqueiros, que fazem a cabeça dos jornalistas de economia, os políticos e os empresários, apesar de toda a sorte de defeitos que possuem, aprendem, no dia-a-dia do capitalismo mutante, a realidade como movimento dialético. Precisam, permanentemente, confrontar o discurso e a prática. Desconfiam do próprio discurso, quando necessitam submeter-se ao teste das urnas ou dos juros.

Os economicidas, assim caracterizados por Lauro Campos, em O PT e a história do capitalismo, não precisam fazer esse jogo. Vivem nos gabinetes, elaborando formulações da realidade com a ajuda da econometria. Caem na maldição de Hegel, segundo a qual a matemática é uma ciência que se desenvolve no exterior da realidade, não podendo, portanto, determiná-la. Na cobertura da economia na grande mídia, no entanto, tais formulações batem como se fossem verdades absolutas e são tomadas como religiosidade popular.

O mecanicismo matemático tomou conta da cabeça dos e das coleguinhas, excetuando poucos. Conseqüentemente, tornaram-se prisioneiros do imediatismo, do curto prazo. Passam ao largo da lógica do real concreto em movimento dialético que domina o pensamento de Lula. Tendem a perceber que Lula bate contra a realidade, sentem impulsos de lhe dizer que está indo contra a corrente da lógica matemática, ideológica, forjada nos bancos das universidades do Norte, quando a realidade teria batido na testa dos economistas e dos que os copiam cegamente, dominados ideologicamente pelo utilitarismo matemático inglês do século 19. Como o mecanicismo matemático não determina a realidade, evidentemente, aferrar-se a ele, como faz a mídia, é autocondenar-se à alienação. Marx, em Manuscritos econômicos filosóficos, mostra que a alienação faz com que o indivíduo veja o exterior separado de si e não extensão de si. Abstrai-se e viaja na maionese.

A história explica

Tal situação tem explicação histórica. As distorções explodem violentamente depois da crise monetária da década de 1980. Quando os Estados Unidos, em 1979, subiram violentamente a taxa de juros de 5% para quase 17% em nome do combate à inflação, para enxugar o excesso de liquidez mundial jogaram as economias capitalistas periféricas no abismo. A deterioração nas relações de trocas acelerou-se em desfavor dos países capitalistas periféricos. Na América Latina, a quebradeira foi geral.

O governo norte-americano temia que se repetisse o que ocorreu em 1929. Depois do crash, mais de cinco mil bancos que viviam na euforia especulativa foram para o ar. Na década de 1980, as economias latino-americanas, com destaque para a brasileira, encontravam-se excessivamente endividadas. Tornou-se necessário, do ponto de vista de Washington, criar situação peculiar capaz de evitar prejuízos à banca enquanto ditavam recomendações fiscais, monetárias e cambiais à periferia, para que se adequasse à nova ordem, fixada pelo Consenso de Washington.

Os mais pobres se danaram. Viram sua estratégia de desenvolvimento ir aos ares. Afinal, desde a década de 1940 preponderava a visão desenvolvimentista-keynesiana-prebischiana de que o capitalismo periférico dependia da poupança externa. Teoria da dependência. Os keynesianos, falsamente marxistas, esqueceram Marx, que disse ser a dívida externa não instrumento de desenvolvimento, mas, fundamentalmente, de dominação internacional. Essa verdade emergiu nos anos de 1980. Ela, disse Marx, se expressa nas crises cambiais, que privilegiam os países capitalistas cêntricos, exportadores de capital sobreacumulado, problemático, especulativo, em prejuízo dos capitalistas periféricos, empobrecidos.

Keynes não fez outra coisa senão seguir essa linha marxista, apesar de destacar que O Capital era um manual ridículo de economia. Cuspia no prato em que estava comendo. Poucos, no jornalismo econômico, lêem a economia pelo olho do capital em movimento, que entra nos países para buscar oportunidade e sai na hora em que vê perigo. Enxerga o processo de dentro para fora, como se o hospedeiro do capital externo – sempre problemático, porque fruto de histórica sobreacumulação atrás da qual está a própria história do capitalismo – tivesse alguma autonomia. Ao mesmo tempo, proclamam as verdades de fora, para que a autonomia de fachada se submeta a elas, sem discussões. Esse discurso introjeta-se no insconsciente e ganha incrível materialidade, quando, na verdade, é pura subjetividade, que Marx espanta com chicote, como Cristo com os vendilhões do templo.

Aula do marxista Delfim

Delfim Netto, por exemplo, sabe muito bem disso. Certa vez, quando ministro do Planejamento, disse aos repórteres que Marx sempre foi o melhor professor de economia capitalista. Sua marginalização, argumentava sarcasticamente, ocorreu porque ‘os barbudinhos de Moscou seqüestraram ele e o demonizaram no Ocidente. Mas, para acompanhar o movimento do capital, não há ninguém igual’.

Os jornalistas preferiram acompanhar o pensamento de Delfim, que era o voltado para despistá-los de Marx. Hoje, Delfim retoma Marx, semanalmente, para suas brilhantes análises na Folha e no Valor, sempre destacando a preponderância da política em última instância.

Delfim, o gênio do disfarce, faz como fez Keynes, o gênio do curto prazo, exímio matemático que jamais formulou, na montagem da macroeconomia capitalista, equações matemáticas para tal tarefa. Acabou abandonando Marshall, seu guru, em Cambrigde, e abraçou a dialética hegeliana, mesmo aceitando a crítica que a ela fizeram Nietzsche e Shopenhauer, pelos quais se pautou para chegar a sua espetacular exuberância intelectual.

A economia de guerra

Não é fácil chegar perto de Hegel e Marx, mas quando, com algum esforço, se consegue, abre-se uma clareira. Como diz Nietzsche, do pico mais alto se respira ar mais limpo. Os intelectuais de esquerda sempre quiseram, na década de 1980, levar Marx para Lula ler. Lula já era marxista sem saber, não precisou do véu intelectual. Tal prática exercitou na vida sindical, na qual o movimento dialético das negociações levou-o a conquistar PhD em política e agora, pelo que se pode ver na entrevista ao Valor Econômico, em economia também. Simplesmente porque segue a regra de Sócrates-Platão. Vê a realidade como movimento de contrários, que precisam ser considerados simultaneamente, pois ambos são um só, interativos que se negam. A política se impõe naturalmente como instrumento do homem para conviver com a dialética, já que é a dialética em movimento.

O mecanicismo matemático é insuficiente para permitir uma visão totalizante do processo econômico enquanto movimento do capital, entendido como força política no comando do Estado moderno. O Estado, depois que o padrão ouro entrou em colapso na crise de 1929, se transforma em capital. O Estado é capital, é moeda – ‘poder sobre coisas e pessoas’ (Marx) –, como demonstram os Estados Unidos, que emitem papel moeda sem lastro para dinamizar a economia global. A âncora do papel pintado, naturalmente, é a bomba a atômica, construída pela economia de guerra. ‘O capitalismo desenvolveu suas forças produtivas, entrou em colapso e passou a desenvolver as forças destrutivas na guerra’ (Marx).

Keynes, repetindo o autor de O Capital, destaca em recomendação a Roosevelt: ‘Penso ser incompatível com a democracia capitalista que o governo eleve seus gastos na escala suficiente para demonstrar minha tese – a do pleno emprego – exceto durante as guerras. Se os Estados Unidos se insensibilizarem com a grande dissipação decorrente da preparação das armas, aprenderão a conhecer sua força’ (Crise da Ideologia keynesiana, Lauro Campos). Ou seja, o âmago da economia capitalista é a guerra, movida pela moeda estatal. O equilibrismo é uma farsa.

Lula, no poder, aprendeu a fonte dessa força política, apesar de, naturalmente, não poder fazer, por ser periferia capitalista, o que Bush faz no poderoso reino de Tio Sam. A ambigüidade do discurso lulista é um vaivém da realidade em movimento, que não comporta algo aquém da política, como são as formulações mecanicistas, às quais se prende a grande mídia. Seu controle do discurso flexível representou sua essência no sentido de ir construindo seu governo obedecendo à política, a despeito de ainda estar prisioneiro das suas circunstâncias, as quais vai buscando superar.

O enfrentamento de Lula com a inflação vai se submetendo à dinâmica dialética da realidade. Exige-se dele que defina uma inflação abaixo de 4,5% para 2009. Ao mesmo tempo, reclamam do déficit da Previdência. Pregam, também, que ele imprima mais ritmo à reforma trabalhista e à sindical. Que diz o presidente? Nada de pressa. O jogo dos contrários determinará a superação da contradição na política. O titular do Planalto aprendeu, na labuta, que pressa gera antagonismos insuportáveis, algo somente superado no diálogo. Caso contrário, emergem revoluções, e o barco vira. Tal posição política é insuportável às mentes mecanicistas, programadas, antecipadamente, para percorrer caminhos pré-determinados, como se a realidade coubesse nas equações de laboratório.

Espasmos de prepotência

Nem Lula, porém, escapa, na entrevista, de derrapadas contraditórias, quando vê as coisas com excessiva confiança acontecendo ao seu lado: ‘Toda a situação e o horizonte internacional me fazem crer que o Brasil encontrou um caminho a ser seguido de forma definitiva.’ Como definitiva, se ele prega a flexibilidade contra as determinações que tentam lhe impingir no campo econômico, tentando afirmar o discurso político? Ele se supera, nesse campo, ao mostrar-se consciente de que a flexibilidade política deve predominar sobre os grandes assuntos das reformas da Previdência, a trabalhista, a sindical e, sobretudo, a política. Para esta, a flexibilidade é total: listas flexíveis, com financiamento público de campanha. Faltou defender a fidelidade partidária e a liberdade do eleitor de votar ou não no dia da eleição.

O fato é que Lula colocou a classe jornalística para fazer sua própria crítica, porque o determinismo que domina a cabeça da cobertura econômica mostrou-se inviável como solução para a renovação econômica nacional. Tal discurso, há vinte anos se mostra útil ao capital financeiro e prejudicial ao capital produtivo, que, agora sob a globalização, mostra-se inviável para competir, dada a sua baixa produtividade e rentabilidade diante dos subprodutos neoliberais que emergiram para fazer preponderar o ponto de vista da banca. O ponto de vista desta, no entanto, é parcial, mecanicista e desvirtua a capacidade de perceber criticamente a realidade.

Os repórteres continuarão com qual visão?

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Jornalista, Brasília, DF