Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O racismo que é só um branco na cabeça

O Flamengo ganhou o título, tendo no comando o grande Andrade. Imediatamente começou o noticiário vagamente ideológico sobre como os negros, embora sempre se destacassem no futebol, nunca chegaram a ser técnicos. Depois a coisa se sofisticou um pouco: admitiu-se a existência anterior de técnicos afrodescendentes e Andrade passou a ser apenas o primeiro negro a ganhar o título brasileiro. Pesquisa? Isso não, que dá trabalho.


É certo dizer que, no universo dos técnicos brasileiros, poucos são negros ou mulatos. Mas é falha de memória esquecer que Didi, por exemplo, foi técnico da seleção peruana; que Oto Glória, depois de vitoriosa carreira no Brasil, foi técnico da seleção portuguesa (aquela que nos eliminou da Copa de 1966); que Gentil Cardoso, o Moço Preto, cansou de ser campeão carioca numa época em que praticamente só havia torneios regionais no país (e chegou a dirigir a seleção brasileira por alguns jogos). Baltazar, o Cabecinha de Ouro, foi técnico; Serginho Chulapa é técnico; Zizinho e Coutinho foram técnicos de grandes clubes. Lula Pereira faz sucesso, especialmente no Nordeste. Cilinho, que montou excelentes times, é mulato; Bauer, O Monstro do Maracanã, era mulato, filho de suíça e africano; e mulato clarinho, mas longe de ser sueco, é Vanderlei Luxemburgo, que ganhou títulos brasileiros bem antes de Andrade (aliás, os dois jogavam no mesmo time, na década de 1980, época em que Vanderlei era Wanderley e ficava na reserva de Junior).


Foi Gentil Cardoso o autor de uma frase fantástica, válida no futebol e na vida: ‘Quem se desloca recebe, quem pede tem preferência.’ É dele também um pedido clássico, ao assumir a direção do Fluminense, em 1946: ‘Se me derem o Ademir eu lhes darei o campeonato.’ Deram-lhe Ademir Queixada, o grande ponta de lança, e o Fluminense ganhou o campeonato.


Racismo havia, e há: o número de técnicos negros é muito menor que o de brancos. Racismo já houve em maior intensidade: em 1960, Gentil Cardoso foi o primeiro negro a ser contratado por um clube que não aceitava negros, o Náutico do Recife. O que não há é, como se cansou de salientar o noticiário, a ausência total de negros em cargos de comando. Não são muitos, quando muitos teriam condições de exercê-los; mas existem e não é de hoje.


 


Força estranha


É interessante assistir ao futebol, hoje, e ver um negrão defendendo a seleção inglesa (como era fantástico ver Rudy Gullit na seleção holandesa). No Brasil, a presença do negro no futebol já foi muito contestada, e não faz tanto tempo assim. Friendereich, mulato de olhos verdes, não teve problemas; mas times como o Santos e o Palmeiras, por exemplo, demoraram a desistir das restrições raciais. O Santos, com seus uniformes brancos e jogadores brancos, chegou a ser conhecido como ‘As Melindrosas’. No Palmeiras, fundado em 1914 com o nome de Palestra Itália, o primeiro negro foi Og Moreira, um craque, o regente do time, contratado em 1942. Depois viria o fantástico lateral Djalma Santos, já no fim da década de 1950; e só então se abririam de vez as portas do clube. Os três times do Recife rejeitaram negros até a década de 1960 (e o próprio técnico Gentil Cardoso só foi contratado pelo Náutico porque o presidente tinha dado plenos poderes aos diretores de futebol, e quando soube do caso e quis voltar atrás não havia mais jeito). Na seleção brasileira campeã do mundo em 1958, tentou-se ao máximo evitar negros no time titular – com exceção de Didi, cujo reserva, Moacir, também era negro, e Dida ou Pelé, que fosse quem fosse o titular seria preto. Já Garrincha e Djalma Santos entraram com o torneio em andamento.


A conquista do Flamengo (que, como o Corinthians, era chamado pejorativamente por algumas torcidas adversárias de ‘time de pretos’), e com um técnico negro no comando, poderia ter motivado os meios de comunicação para reportagens sobre o que resta de racismo no futebol. Nada de adjetivos, nada de ideológico, nem de conclusões apressadas sobre ‘o primeiro negro’, essas coisas: reportagem mesmo. Nas peneiras dos clubes, há restrições a negros ou mulatos? E os salários da média dos jogadores (não, não vale colocar na lista ídolos como Adriano), variam conforme a cor da pele?


Andrade ganha bem menos que a média dos técnicos.


 


A liberdade dos outros


Os meios de comunicação até que trataram do assunto, mas com pouco vigor. A proibição dos minaretes na Suíça é um golpe terrível na tolerância religiosa e, mesmo tendo sido aprovada em plebiscito, nada tem de democrática: na democracia, prevalece a vontade da maioria, respeitados, porém, os direitos da minoria.


Os minaretes, aquelas torres típicas das mesquitas muçulmanas, de onde saíam as conclamações aos fiéis para as cinco orações diárias, hoje ficaram sem função: há outras maneiras de convocar os fiéis, sem precisar gritar lá de cima. Mas eles fazem parte da cultura, da arquitetura, da maneira de viver da população islâmica. Se os povos europeus estão preocupados com o que chamam de ‘invasão islâmica’, estão equivocados: desde que os novos moradores cheguem legalmente e aceitem as leis locais, não há motivo algum para discriminá-los – e não é possível apresentar para isso qualquer justificativa.


Não se pode, é evidente, aceitar a imposição da lei islâmica no lugar da lei civil, nem permitir pregações de ódio ou de violência. Ultrapassado este limite, chega-se à discriminação religiosa. E essa discriminação não conhece limites: quando começa, atinge a todos. E não se alegue que, em grande número de países islâmicos, há discriminação contra os seguidores de outras religiões. É verdade. Mas a luta da civilização é para mudar a barbárie, não para tornar-nos iguais aos bárbaros.


 


Lula pode


Um blogueiro situacionista costuma atacar um jornal por publicar palavrões. Mas manteve o silêncio quando o presidente Lula utilizou um termo pouco comum em salões educados – embora, diga-se, não seja considerado chulo pelo dicionário Aulete. Outros jornalistas situacionistas se apressaram em explicar que palavrão, mesmo, é uma palavra grande; um garantiu que o presidente pode falar a palavra, que isso não tem problema algum, e tanto não tem problema nenhum que ele escreveria a mesma palavra cinco vezes em seguida. Outro disse que a palavra tem origem francesa (e escreveu-a errado, sem o ‘e’ final). Na verdade, a palavra vem do latim. Declina-se ‘merda, merdae’. A explicação óbvia – de que Lula usou deliberadamente a palavra, para garantir a cobertura dos meios de comunicação a um evento bem chatinho, e para evitar que se mencionasse seu bom relacionamento atual com a família Sarney – nem foi mencionada.


Este colunista acha que o presidente pode falar o que quiser – lembrando, entretanto, que na população há pessoas, também governadas por ele, que se chocam com determinadas palavras. É como a restrição a que se impõem os jornais cuja circulação se baseia em assinaturas: as imagens mais chocantes saem da primeira página, vão para páginas internas, onde são alcançadas apenas por quem estiver interessado em vê-las. Esta, entretanto, não é uma regra absoluta: se o presidente quiser mesmo dizer algo que choque parte dos eleitores, ninguém terá motivos para considerá-lo pornográfico. Já se passaram os tempos em que as moças não ficavam menstruadas, mas ‘incomodadas’.


 


Leitura recomendável


Prólogo #1, de Mariana Portela, Raphael Gancz, Camila Fremder, Vitor Akeda e Flavia Melissa, deve ser lançado nesta quarta, dia 16, a partir das nove da noite, na rua Bahia, 1282, bairro de Higienópolis, SP. É interessante; e dá para degustar alguns textos, no endereço eletrônico http://mizebeb.wordpress.com, de Mariana Portela – filha do jornalista Fernando Portela, repórter que marcou época, e também jornalista de primeira e editora. Para todos os autores, é o primeiro livro. Vale a pena conhecê-los.


 


Como…


De um grande portal noticioso:


Gene Barry, protagonista de Bat Masterson, morre aos 90


A notícia está absolutamente correta. Mas saiu no tópico Diversão.


Tem gente que se diverte com coisas absolutamente incomuns.


 


…é…


De um grande portal noticioso:


Turista alemão é detido com 44 lagartos na cueca na Nova Zelândia


Tadinhos dos gringos! Eles pensam que esse tipo de coisa é novidade!


 


…mesmo?


Também de um grande portal noticioso, falando do presidente:


Lula precebe ‘Brasileiro do Ano’


É paralinguagem, metalinguagem, alguma coisa dessas. Ao mesmo tempo, diz que o presidente recebeu o prêmio e percebeu um monte de coisas na cerimônia.


 


A decifrar


De matéria assinada:


‘com o dobro de votos a menos do penúltimo colocado’


Alguém, com certeza, vai entender.


 


E eu com isso?


Cada coisa que a gente aprende no noticiário mais informal!


1 – Menino fica com língua presa após lamber poste de metal congelado


2 – Cantor romeno comete gafe e canta com o microfone de cabeça para baixo


Puxa, a gente tendo a certeza de que o espetáculo é ao vivo e o sujeito fazendo playback! Ainda bem que isso é na Romênia. No Brasil, com certeza, não.


3 – Mulher é presa nos EUA por bater em namorado com um bife


A carne é forte!


E temos aquelas notícias bem frufru, ótimas para fim de ano:


4 – Filho de Gisele ainda não tem nome, diz pai


5 – Coelha assanhada pula cerca e deixa Karina Bacchi intrigada


6 – Com medo de levar coice, Caco Ricci tem trabalho para cuidar de cavalo


7 – Americana é presa após oferecer sexo em troca de gasolina


8 – Ator conta como foi seu xaveco que deu certo


E sempre há alguns com errinhos engraçados, no caso suprimindo a concordância:


9 – Presas 11 pessoas por fraude de R$ 90 mi em vistos para os EUA


 


O grande título


Coisas boas, coisas boas. No rescaldo do afogão, a grande tempestade que inundou metade de São Paulo, surgiu este:


SP sai do estado de atenção e registra 0 km de lentidão


Este colunista mora na cidade e não viu lugar nenhum sem trânsito, nem agora que já se passaram vários dias, mas se o portal está dizendo é porque em algum lugar deve ser verdade.


Existe aquele título recorrente, com gramática de índio de filme americano:


PF pedir quebra de sigilo de Arruda


E há um fantástico, referindo-se ao famoso discurso do presidente:


Lula fala ‘merda’ em discurso no Maranhão


Absolutamente objetivo. E informativo.

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Jornalista, diretor da Brickmann&Associados